A estreia de Tabu vinha sendo aguardada como um dos acontecimentos cinematográficos mais importantes do ano. Cultuado em festivais estrangeiros (exibido em Berlim, em 2012, ganhou o prêmio Alfred Bauer, voltado para trabalhos inovadores, e o prêmio Fipresci, concedido pela crítica) e brasileiros (passou no Festival do Rio e na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo), esse filme de Miguel Gomes tem fascinado as plateias por meio de uma história contada em dois tempos.
Na primeira parte, intitulada Paraíso Perdido, o espectador se depara com três mulheres num prédio em Lisboa: a octogenária Aurora (personagem interpretada em fases distintas por Laura Soveral e Ana Moreira), sua empregada, a cabo-verdiana Santa (Isabel Cardoso), e a amiga Pilar (Teresa Madruga). Aurora pede que elas procurem um homem, Gian-Luca Ventura (Henrique Espírito Santo/Carloto Cotta). “As personagens da primeira parte expressam desejo por ficção. É o que leva Pilar a entrar na sala de cinema. Santa revela interesse em ler Robinson Crusoé. Aurora precisa construir suas ficções tal como uma velha diva de teatro”, observa o cineasta, em entrevista ao Críticos.com.br, realizada durante sua visita à Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, mencionando o célebre romance de Daniel Defoe (1660-1731). Gian-Luca traz à tona o passado de Aurora, apresentado em flash-back na segunda parte, chamada Paraíso. No passado, ambientado na África portuguesa, Aurora e Gian-Luca foram amantes e se envolveram num melodrama de contornos trágicos.
Através dessa história, o diretor de Aquele Querido Mês de Agosto (2008) presta uma homenagem ao próprio cinema. “Tenho a impressão de que o cinema de hoje contém a memória de outros tempos. Há uma ligação entre memória e cinema, uma arte que não consegue esquecer os fantasmas do passado. Então, que venham todos”, afirma Miguel Gomes. O passado vem à tona já no título desse filme português, coproduzido por Brasil, França e Alemanha, uma referência direta ao clássico de 1931 de F.W. Murnau (1888-1931). “Murnau é uma referência central para quem tiver visto sua obra. Para mim, ele é a materialização mais pura do cinema. Talvez seja o maior diretor de todos os tempos”, elogia. Inicialmente, o filme se chamaria Aurora, citação a uma célebre obra de Murnau de 1927. “Mas Cristi Puiu deu esse título para seu filme. Achei, então, que poderia roubar o título de uma obra de Murnau realizada há pouco mais de oito décadas, mas não de uma produção romena tão recente (Aurora, de Puiu, é de 2010)”, justifica Gomes, que decidiu filmar em preto e branco.
Esse novo Tabu surpreende o público com o afastamento do registro realista. “Se o cinema tentar copiar a vida, perderá sempre. O que me interessa é um cinema que possa inventar suas regras de funcionamento, sua mecânica, que tenha vínculo com o mundo real, mas sem ambicionar sê-lo. Queria que a forma como Ventura relatasse o que aconteceu com ele e Aurora não fosse realista e que tivesse elo com algo da literatura do século XIX”, diz o diretor. A originalidade do filme também pode ser comprovada no uso da narração em off e na apropriação de Miguel Gomes das características do melodrama. “É um gênero que propicia uma relação com a vida sem ser uma reprodução dela. Mas hoje, quer no cinema mainstream, quer no de autor, o naturalismo e o psicologismo vêm preponderando. Não me interessam muito”, aponta.
Miguel Gomes assume a improvisação durante o processo. É uma opção que se deve à determinação em praticar um cinema autoral e a uma saída econômica. “Na segunda parte, não nos guiamos pelo roteiro. Na verdade, não havia dinheiro para fazer o roteiro original. Então, improvisamos. Sabíamos a história em geral e reinventamos”, confirma o diretor, que detecta ligação entre a inventividade e a limitação financeira. “Em Portugal, nós fazemos filmes mais baratos – e também em menor quantidade – do que em países como Espanha, Inglaterra e França. Como há menos dinheiro, a pressão é menor. O mercado português é pequeno. Lá, a maioria das pessoas quer ver televisão ao invés de ir ao cinema. Da década de 50 para cá, quando começou o Novo Cinema Português com Os Verdes Anos (1963), de Paulo Rocha, e Belarmino (1964), de Fernando Lopes, vários diretores, como Pedro Costa, conseguiram fazer cinema pessoal. Eu me sinto devedor desses grandes realizadores”, assinala.
A abertura ao acaso na forma de trabalhar influencia na condução dos atores. “Não tenho método com eles. É diverso com cada um – às vezes, a cada dia, a cada cena. Em Tabu, eu me reuni com as atrizes da primeira parte e ensaiamos. Com os atores da segunda parte foi diferente. Para Ana Moreira, que faz Aurora jovem, pedi que lesse o livro As Verdes Colinas de África, de Ernest Hemingway (1899-1961), e que aprendesse a atirar. Também quis que Carloto Cotta, que faz Gian-Luca Ventura, aprendesse bateria”, exemplifica Miguel Gomes, que incluiu no elenco o brasileiro Ivo Müller, que interpreta o marido de Aurora.
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