Docs premiados em Brasília
Passado o festival, posso enfim comentar filmes da competição oficial de documentários, de cujo júri fiz parte junto com as documentaristas e professoras Ana Johann e Erika Bauer, a cineasta Julia Murat e o colega jornalista Marcelo Lyra.
O longa vencedor, O Mestre e o Divino, lança uma camada a mais de observação e complexidade ao modelo de trabalho da Vídeo nas Aldeias. Temos aqui um realizador branco (Tiago Campos) que filma a interação entre um cineasta xavante (Divino Tserewahú) e um missionário alemão que vive e filma entre os índios há mais de 50 anos (Adalbert “O Mestre” Heide). O projeto lança a todos numa trama de evocações históricas, ambiguidades da relação entre índios e catequistas, discussões sobre representação cinematográfica e vínculos pessoais que desafiam estereótipos comuns da convivência interétnica.
Com seu jeitão de Jacques Tati na terceira idade, o Mestre é um personagem e tanto. Cenas impagáveis de seus filmes revelam o desejo de não só filmar os índios, mas se construir como herói entre eles, uma espécie de cacique forasteiro. O modelo do herói-mártir indígena Winnetou, criado pelo autor alemão Karl May, pautou um ideal romântico que o Mestre procurou semear entre os índios e o fez ser reconhecido até hoje como um elemento ao mesmo tempo invasivo e constitutivo da identidade xavante atual. Divino foi seu aluno na missão salesiana na aldeia de Sangradouro, e um certo laço paternal não é dissimulado.
O Mestre e o Divino tem humor, inteligência na dupla catalisação do processo de filmagem e a revelação de uma figura e um acervo fílmico inestimável. Abre avenidas para uma compreensão mais profunda do papel do cinema na construção de um saber antropológico. Além de melhor filme, ganhou também melhor trilha sonora - não só pela música original de Johann Brehmer, mas também pelo uso inspirado da música diegética (tocada dentro da cena) ao longo do filme.
Os prêmios de melhor direção, fotografia e som para longa doc ficaram com Morro dos Prazeres, conclusão da trilogia de Maria Augusta Ramos sobre a relação entre cidadãos e Justiça (no caso aqui, mais a Segurança). Quem conhece o trabalho da Guta não esperaria mesmo correrias e tiroteios pela favela. Ela não está interessada no morro pacificado como espetáculo, mas como lugar de vivências, negociações, espera e tentativa de se construir uma normalidade. O que vemos é sobretudo uma favela relativamente silenciosa, entregue à rotina, como ocorre na maior parte do tempo. Do processo de observação, seleção e montagem emergem os vários ângulos da comunidade ocupada pela UPP: a moradora que reclama da pouca vigilância dos policiais e aqueles que se queixam do oposto, ou seja, da ocupação fardada que ainda provoca rejeição; o carteiro e orientador de adolescentes, que atua como uma espécie de ponte entre moradores e policiais; as conversas entre agentes da ordem, as rondas pelas vielas, as revistas rotineiras, a retórica comunicativa do coronel instrutor, o depoimento de uma policial que prefere esconder sua condição fora do serviço por medo de preconceitos.
O trabalho da diretora, que parte da observação wisemaniana mas avança na fronteira entre o flagrante e, digamos, a encenação documental, requer naturalmente um acesso combinado às situações. Até porque a composição do quadro e o padrão técnico que ela procura não seriam possíveis em procedimentos mais improvisados. Isso gera a impressão de um filme “autorizado”, mas é dentro mesmo dessa circunstância que Guta procura extrair o melhor. Morro dos Prazeres acumula insights, elege calmamente seus personagens condutores e faz o espectador submergir paulatinamente no ambiente do lugar. Daí nasce uma percepção mais matizada para as discussões em torno da política de pacificação. O filme entra em cartaz em novembro.
Nosso júri deu um Prêmio Especial à pesquisa de Outro Sertão, doc de Adriana Jacobsen e Soraia Vilela que explora a vida alemã de Guimarães Rosa no fim dos anos 1930, quando ele era vice-cônsul em Hamburgo. Um belíssimo material de arquivo e uma sugestiva trilha de O Grivo pontuam esse relato da admiração de Rosa pela cultura alemã e sua progressiva conscientização dos horrores do nazismo. Ele chegou a facilitar a emigração de dezenas de judeus para o Brasil, alguns dos quais (ou seus descendentes) são entrevistados pelas diretoras. Um destaque magnífico vai para uma entrevista inédita de Rosa à TV alemã, onde ele fala com mineira pachorra do Brasil, de literatura e "explica" Grande Sertão: Veredas.
Elegemos como melhor curta e melhor trilha sonora (Fabio Baldo) o original Contos da Maré, de Douglas Soares. Num simpático flerte com o gênero do horror, o filme reúne relatos de assombrações e bizarrices no Complexo da Maré. A favela é vista, assim, por um ângulo inesperado, como uma cidade do interior onde se contavam histórias do tipo ao pé da fogueira. O uso de máscaras de animais cria um distanciamento divertido, que se completa ao final quando são reveladas as identidades dos participantes. Um curta "redondo", que resolve muito bem sua proposta relativamente modesta mas surpreendente.
Os paranaenses Rafael Urban e Terence Keller ganharam o prêmio de direção de curtas por A que Deve a Honra da Ilustre Visita este Simples Marquês? Num formato semelhante ao usado em Ovos de Dinossauro, quadros fixos são "entregues" ao personagem para que ele desenvolva sua autonarração/performance. No caso, um velho colecionador e estudioso das coisas paranaenses ("paranistas") que apresenta os diversos cômodos da sua casa e conta sua história pessoal. Por menos que possam interessar os fatos e objetos apresentados, não há como negar o efeito poderoso do dispositivo, que revela ao mesmo tempo em que esconde um personagem inusitado.
O Canto da Lona, de Thiago Brandimarte Mendonça (Piove, Il Film di Pio) ganhou fotografia e som direto entre os curtas. Em preto e branco com detalhes vermelhos, o filme teatraliza as memórias de antigos astros e empresários de circo, sem faltar um tempero nostálgico e romântico. Baseado em depoimentos e pequenas performances, dá seguimento ao interesse do diretor pela abordagem de uma cultura popular do passado.
Por fim, demos o prêmio de montagem para o trabalho de Ivan Costa e Dácia Ibiapina em O Gigante Nunca Dorme, curta dirigido por Dácia. A diretora vem acompanhando há anos o Movimento Passe Livre em Brasília e aproveita as manifestações de junho para revisitar essa história que começou muito antes. Filme calcado na simpatia pelo movimento, falha no roteiro ao não fechar sua linha temporal, mas consegue articular muito bem os materiais de arquivo de diversas qualidades e suportes.
Uma observação adicional: comentei aqui os concorrentes de ficção, mas me abstive sobre o vencedor Exilados do Vulcão, de Paula Gaitán, por não tê-lo assistido. Enquanto ele era exibido, junto com os curtas Quinto Andar e Tremor, nosso júri se reunia para as decisões finais.
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Estética coquetel molotov
Em seu primeiro longa de ficção, exibido ontem na mostra competitiva do Festival de Brasília, Paulo Sacramento mantém-se fiel ao propósito de unir experimentação narrativa com depoimentos fortes sobre a realidade do país. Riocorrente reúne três personagens mais ou menos emblemáticos: um jornalista e guia turístico (Roberto Audio) afeito a compromissos formais e desconfiado da “ditadura do novo”; um ladrão de automóveis (Lee taylor) de comportamento agressivo e veleidades incendiárias; uma mulher (Simone Iliescu) que é amante dos dois e divide entre eles o seu tempo e os seus desejos; e um menino negro (Vinicius dos Anjos), chamado Exu e adotado pelo ladrão, que passa o tempo vagando pelas ruas e, segundo a sinopse do filme, “é o porvir”.
Com esses elementos, o filme constrói um ensaio audiovisual sofisticado na forma, mas nem sempre nas relações metafóricas que procura estabelecer. Os ratos que devoram pilhas de um jornal paulista, por exemplo, não chega a ser uma figura de linguagem das mais sutis. A narrativa é pontuada por anotações à margem, que revelam um certo didatismo: “é preciso separar os mestres e inventores dos diluidores e beletristas”; “as ideias precisam voltar a ser perigosas”, e por aí afora. Volta e meia aspectos documentais ou pseudodocumentais invadem a pauta ficcional, como o incêndio do Joelma, um homem caído sobre as grades de um prédio, uma minipalestra de Marcelo Grassman sobre as produções do inconsciente ou um menino-prodígio da sinuca que exibe seus dotes. Esses elementos parecem funcionar como signos de contaminação da ficção pela realidade ao redor.
À medida que evolui na tela, Riocorrente vai se confirmando como um estudo enviesado das pulsões presentes na sociedade paulista contemporânea, mas também na brasileira de maneira geral: um desejo de ordem e de prazer convivendo com uma indignação meio catártica. O impulso incendiário das “vanguardas de rua” está ferozmente representado pelo fogo que faz explodir carros, cabeças e paisagens. Esse é apenas um dos aspectos de um brutalismo deliberadamente buscado nas imagens e sons do filme. Galhos esmagados, objetos espatifados, portas arrombadas, motores em combustão, rosnar de animais, serra elétrica, trepadas ríspidas se sucedem na estonteante montagem de Idê Lacreta e na edição sonora de Ricardo Reis. A fotografia, que explora muito bem o contraste entre tons cinzas e clarões, foi a última do grande Aloysio Raulno.
O incômodo provocado na plateia procura ser produtivo para uma certa proposta de “expandir o pensamento” no rumo de um inconformismo que lateja por aí. Mas vejo esse desconforto também como o limite a que se chega com a política e a estética do coquetel molotov, dentro do filme como fora dele.
Dois curtas acompanharam Riocorrente na sessão competitiva de ficção. Fernando que Ganhou um Pássaro do Mar é uma alegoria a quatro mãos e dois países por Felipe Bragança e Helvécio Marins Jr. Um papagaio segue num barco do Rio de Janeiro para uma ilha portuguesa e é recebido pelo tal Fernando, que passa a enviar missivas ao remetente desconhecido. As cenas portuguesas têm um sabor algo pedrocostiano (embora Marins Jr. negue qualquer relação), enquanto as brasileiras sugerem um perfume bressaniano. Índios atacando a administração pública brasileira, offs comentando a crise econômica de Portugal e uma sereia tropical completam essa diletante experiência de criação conjunta.
O curta de animação Ed, já exibido no Anima Mundi, é para mim o melhor do gênero exibido até agora. Trata das diversas personificações de um coelho astro do cinema, evocadas enquanto ele prepara o suicídio. É o Holy Motors da computação gráfica brasileira. Tecnicamente impecável, tem também uma trilha sonora irresistível.
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Chupa que é cinema
Um jorro de simpatia emanou da plateia do Festival de Brasília durante e após a exibição de Amor , Plástico e Barulho, longa da mostra competitiva. O filme de Renata Pinheiro, corroteirizado por seu marido Sérgio Oliveira, faz uma crônica da cena da música brega em Recife. É uma sucessão quase ininterrupta de boas sequências socadinhas de humor, erotismo e insights sobre aquele ambiente em que amor rima com mel e sucesso não rima com esperança.
No centro do filme há um esboço de dramaturgia em torno de duas cantoras do brega: a superestrela Jacqueline Carvalho (Maeve Jinkins) e a “novata” Shelly (Nash Laila). A evolução do relacionamento entre as duas, da admiração à rivalidade e a outros desdobramentos, catalisa os demais elementos. Em boa parte, Amor, Plástico e Barulho é um ensaio etnográfico ficcional disfarçado, repartido em vinhetas deliciosas. O que faz o charme de tudo é a capacidade de síntese, a fuga à descrição óbvia e o talento empregado em cada elemento.
O cinema pernambucano vai mostrando que tem não só uma linguagem particular (este filme tangencia formatos de Cláudio Assis, Marcelo Gomes e Kleber Mendonça Filho) e uma temática obsessiva (o descartável da vida urbana em Recife), mas também um star system próprio, no qual Maeve e Nash são divas e Irandhir Santos é um astro.
Salta aos olhos, no filme de Renata, a visão carinhosa e ao mesmo tempo crítica que lança sobre a cena brega, sem fazer ironias nem alimentar preconceitos. O gosto com que os atores se lançam nos seus personagens chega intacto ao espectador. A cena em que Maeve Jenkins chora cantando Chupa que é de uva foi a primeira a suscitar aplausos durante a projeção aqui em Brasília. Desconfio que este seja um dos maiores favoritos a prêmios, juntamente com o baiano Depois da Chuva e o paulista Avanti Popolo.
O curta de animação Engole ou Cospervilha, de Marão e mais sete animadores, é uma coletânea de vinhetas criadas a partir do mote “bizarro”. Cada um fez o que quis, mas prevalece um humor ácido e escatológico aparentado ao de Bill Plympton. Eu me diverti bastante, mas houve gente que achou “over”.
Não escrevo sobre o curta de ficção Todos Esses Dias em que sou Estrangeiro, de Eduardo Morotó, porque não pude assisti-lo com a devida atenção.
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Memória e melancolia
A mostra competitiva de ficção do Festival de Brasília apresentou ontem um dos filmes mais esperados da edição deste ano. Avanti Popolo tem sido apreciado em diversos festivais internacionais por sua maneira inovadora e minimalista de se reportar aos tempos da ditadura militar no Brasil. Na verdade, quase nada se fala diretamente de política. Um homem recém-divorciado se hospeda na casa do pai e tenta trazer a luz de volta à quele lugar meio lúgubre e depauperado. A luz vem não só de uma janela que ele procura abrir, mas também da memória que ele quer devolver ao velho através de filmes Super 8 rodados nos anos 1960 e 70 por seu irmão desaparecido há 30 anos.
Que o pai seja vivido por Carlos Reichenbach (sua despedida da frente das câmeras) e o filho pelo pesquisador e professor de cinema André Gatti é a principal – mas não o único – vínculo que Avanti Popolo quer criar entre cinema e política, entre cinema e vida. A presença no elenco do crítico e realizador Eduardo Valente, do “cineasta artesanal” Marcos Bertoni e de uma cachorra ficcionalmente chamada Baleia acrescenta camadas a esse diálogo, ora bem-humorado, ora quase exasperante . Tudo isso atribui ao filme um valor afetivo importante para quem compartilha o meio cinematográfico, mas a admiração de tantos críticos internacionais indica que o trabalho vai além das referências internas.
O estilo rigoroso do diretor Michael Wahrman (uruguaio que cresceu em Israel e se radicou em São Paulo desde 2004) confere uma personalidade muito própria ao filme, que dentro do panorama do cinema brasileiro parece um objeto melancólico vindo da Rússia ou da Romênia. Além de um longo prólogo filmado no parabrisa de um carro rodando na madrugada e de duas ou três sequências passadas em lugares distintos, o essencial da história é contado através de três composições fixas que se repetem, claustrofóbicas e inalteradas. A “janela” que temos são os filmes Super 8, que não parecem interessar tanto ao velho “Sr. Gatti” (Carlão), mais empenhado em descobrir o paradeiro de sua cachorra Baleia. Nem mesmo ao filho parece intreressar tanto o contato com o pai quanto com suas próprias ruminações.
Um sutil processo de substituições se opera. O filho desaparecido pela cachorra, a realidade pelos filmes, a lutas que ficaram para trás pelos hinos remanescentes. É difícil separar o que há de humor e de tristeza em Avanti Popolo. Assim como é difícil prever o que esse filme dirá a uma plateia que não se sintonize com suas pachorrentas idiossincrasias.
O curta pernambucano AuRevoir, de Milena Times, também lida com uma substituição. Uma jovem brasileira estudando na França preocupa-se com a mãe doente no Brasil e descobre numa vizinha solitária um objeto para dedicar seus cuidados. O filme conduz esse fiapo de trama com passos de veludo. A atriz Rita Carelli (filha de Vincent Carelli) faz um belo trabalho de interiorização e demonstra um domínio perfeito do tempo de fala. Um curta sensível e forte, o melhor de ficção que vi até agora.
A animação Faroeste – Um Autêntico Western, de Wesley Rodrigues (Goiás), mescla de forma um tanto atabalhoada ingredientes do bangue-bangue, do imaginário urbano e do filme de samurai para contar uma história de massacre e vingança entre animais. Não me animou muito, mas agradou ao animador Marão, presente aqui em Brasília.
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1984, quando éramos jovens
Na televisão Tancredo Neves conclama os jovens à tarefa cívica de ajudar seus pais a cuidar do país. Num colégio de Salvador, os adolescentes se dividem entre a defesa de um socialismo libertário com tintas anarquistas e a catarse desrepressora dos baseados, do rock e dos shows transformistas. Estamos em 1984, no alvorecer da Nova República, época em que a estudantada ainda cantava Vandré, rodava seus panfletos e fanzines em mimeógrafo, e criava rádios piratas para expressar sua inconformidade com a democracia meia-bomba que se instalava no país.
Depois da Chuva, concorrente baiano na competição de longas de ficção no Festival de Brasília, é uma encarnação perspicaz de um momento raramente abordado no cinema brasileiro pela perspectiva do ativismo estudantil. No centro do furacão está o menino Caio (Pedro Maia), personagem bertolucciano até a medula. Ressentindo-se da ausência do pai, morando com uma mãe com quem não tem diálogo, ele deriva entre o tédio, a doçura e uma revolta surda que o leva a ser ameaçado de expulsão da escola. À sua maneira, vai se tornar uma liderança capaz de contestar outro líder mais engajado.
Os diretores Cláudio Marques e Marília Hughes criam uma narrativa lacunar, mas que se organiza principalmente na deambulação de Caio. Os encontros dele com uma protonamorada (Sophia Corral) são particularmente encantadores, com diálogos juvenis muito plausíveis e uma química notável entre os dois ótimos atores. Em outros momentos, a direção não obtém a mesma fluidez, sobretudo quando parece optar por uma desdramatização um pouco forçada.
De alguma maneira, Depois da Chuva dialoga não só com os filmes “jovens” de Bertolucci, Assayas e Ken Loach, como também com a realidade brasileira atual, quando mais uma vez a juventude se questiona sobre o seu papel numa democracia que não atende a alguns de seus mais fortes anseios. Não se trata de comparar 1984 com a atualidade, claro, mas de identificar um impulso semelhante, que tem a ver tanto com o prazer de viver quanto com o desejo de participação social.
Um pouco sobre os curtas de ficção e animação da noite de ontem. Ryb, de Deco Filho e Felipe Benévolo (Brasília), é um exercício em animação 3D sobre rãs coloridas que se multiplicam num laboratório provocando o caos. Tecnicamente bem feito, o curtinha de quatro minutos resulta bastante confuso como roteiro. Já Lição de Esqui, de Leonardo Mouramatheus e Samuel Brasileiro (Ceará), é um ensaio de ficção em camadas, em que dois amigos treinam a maneira como vão encenar uma briga no supermercado onde trabalham para fazer jus a um certo seguro e viajar para o Canadá (se é que entendi bem a proposta). O filme se estende em cenas repetitivas e vazias, planos carregados de pretensão, evidenciando uma superestimação do próprio argumento para além do que ele pode render. Questão, aliás, que tem sido muito frequente em boa parte dos curtas de ficção live action de realizadores jovens e mais ambiciosos.
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O ataque dos diabinhos do digital
Depois da abertura feliz na terça-feira, os diabinhos do digital entraram ontem na arena da competição do Festival de Brasília. Depois de três interrupções por conta de travamentos na projeção da mídia DCP, a exibição do longa Os Pobres Diabos, de Rosemberg Cariry, foi cancelada definitivamente por volta da metade do filme. Os jurados verão o filme na reprise, mas a sensação de frustração para a equipe e o público foi inevitável.
Até onde pude ver, Os Pobres Diabos é menos uma narrativa coesa e mais uma sucessão de vinhetas protagonizadas por uma trupe de circo no interior do Ceará. Cariry procura um certo humor poético que, teoricamente, se coaduna bem com a estrutura de esquetes, mas, pelo visto, acaba perdendo fôlego justamente em função da fragmentação. Mas seria leviano fazer maiores considerações sobre um filme visto pela metade, embora já tenham ficado claras as qualidades do elenco (Chico Diaz, Silvia Buarque, Gero Camilo, Everaldo Pontes, Zezita Matos) e da iluminação de Petrus Cariry.
Dois curtas foram apresentados sem problemas na sessão. A animação Deixem a Diana em Paz, de Júlio Cavani, é uma fábula sobre uma mulher que se entrega à fantasia de nadar e dormir até morrer. No curta pernambucano, os desenhos em bico de pena de Cavani Rosas (pai do diretor) se baseiam na anatomia da bela Joana Gattis, e são eles que se impõem, mais que o exercício de animação propriamente dito, que é bem discreto. A narração de Irandhir Santos projeta uma perspectiva masculina sobre as imagens de nudez, o que banaliza um pouco a proposta.
O curta de ficção paranaense Sylvia trata do encontro casual entre uma camelô de discos piratas e uma agente da polícia federal numa academia de boxe de Londrina. O diretor Artur Ianckievicz optou por uma narrativa puramente visual, sem falas. Se isso por um lado evita a confrontação óbvia entre as duas personagens em lados opostos da lei, por outro resfria bastante o filme e o torna um tanto apático.
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Abertura + Revelando Sebastião Salgado
A noite de abertura do 46º Festival de Brasília contou ontem com pelo menos três fatos alvissareiros: uma chuva que vinha sendo esperada há meses na sequíssima capital, um concerto com belíssimos solos de um Stradivarius autêntico e um pequeno grande documentário sobre Sebastião Salgado.
Nacionalistas mais ferrenhos desdenharam a escolha da Orquestra do Teatro Nacional Claudio Santoro para a apresentação festiva, sob a regência do maestro Claudio Cohen: o concerto para violino e orquestra de Erich W. Korngold. Um compositor hollywoodiano na Sala Villa Lobos para abrir um festival de filmes brasileiros?! De minha parte, adorei. Vi ali o “país cinema”, além de me deliciar com os solos quase ininterruptos do violinista austríaco (como Korngold) Benjamin Schmid num legítimo violino Stradivarius.
A noitada prosseguiu com um Stradivarius da fotografia. Eu tinha muita desconfiança do título do doc de Betse de Paula, Revelando Sebastião Salgado, ganhador do Prêmio Especial do Júri em Gramado e exibido em Brasília fora de competição. Achava-o pretensioso e arriscado. Mas depois de ver o filme consigo justificá-lo quase plenamente. A partir de apenas três jornadas de entrevistas na casa do fotógrafo em Paris, Betse conseguiu de fato revelar diversas facetas – algumas praticamente desconhecidas – de Salgado. O filme é um perfil biográfico, que cobre desde a descoberta da fotografia, quando ele levava uma câmera para clicar informalmente suas viagens de economista pela Organização Mundial do Café, em fins dos anos 1960, até o mais recente trabalho monumental, o projeto Gênesis.
As circunstâncias que o levaram a fotografar minuciosamente o atentado a Ronald Reagan em 1981, trabalho que culminou sua consagração no mundo do fotojornalismo, nunca foram relatadas com tantos pormenores. Histórias fascinantes como sua amizade com o rei da Bélgica, os problemas que enfrentou em Serra Pelada e a condição de exilado político durante a ditadura são contadas em depoimentos bem-humorados e cheios de verve fabulatória.
Ao mesmo tempo, o filme é uma master class sobre fotografia que não pode deixar de interessar a nenhum apreciador do métier. Salgado fala de sua opção exclusiva pelo preto e branco a partir de 1987, de como combina a fotografia digital com procedimentos tradicionais da foto analógica e exibe/explica seus arquivos impecavelmente organizados. O hábito de cantarolar enquanto fotografa ou examina seus contatos é um dos traços que o filme não só menciona, como de fato mostra.
Não há, porém, imagens em movimento de Salgado na ação de fotografar. Elas existem, mas estavam todas reservadas para o filme que Wim Wenders está fazendo sobre o projeto Gênesis. Betse de Paula trabalhou com algumas limitações em função disso, mas o filme não se ressente, uma vez que compensa certas ausências com outras tantas presenças inestimáveis. Salgado aparece em ação nas fotos de sua mulher e colaboradora, Lélia Wanick Salgado, trabalho este que acaba sendo revelado pelo filme. Outro elemento compensatório fundamental é a intimidade que permitiu um tom bastante descontraído nas entrevistas (as famílias da cineasta e do fotógrafo são amigas há mais de 20 anos).
Tão importante quanto as revelações históricas e técnicas é a revelação de um homem meticuloso a nível quase maníaco, que a visita ao apartamento deixa entrever. Salgado dá mostras de obsessão por limpeza, ordem e equilíbrio. Fala de sua relação com o filho portador de Síndrome de Down e expõe sua admiração por grandes colegas ao mostrar as fotos deles penduradas pelas paredes de sua casa.
O público de cerca de 1500 pessoas que aplaudiu vivamente o filme ontem no Teatro Nacional estava prestigiando também o cuidado com que foram tratadas as imagens e os sons. A fotografia de Jacques Cheuiche encontrou matizes discretos entre a cor e o PB, evitando “competir” com as fotos de Salgado mas também homenageando as preferências dele. A edição sonora de Virginia Flores pontuou o filme com ruídos sugestivos que ampliam a imersão no trabalho do fotógrafo, juntamente com a trilha sonora de Naná Vasconcelos. A montagem de Dominique Paris não esconde o caráter de filme-entrevista, mas o dinamiza de maneira extremamente agradável.
Saber ser um documentário pequeno pode levar a ser um grande documentário. Nesse sentido, Revelando Sebastião Salgado se aproxima da experiência de pureza documental e sábia simplicidade que vimos em A Música Segundo Tom Jobim, de Nelson Pereira dos Santos. Desde que se tenha, claro, a música do Tom ou as fotos do “Tião”.