A Mostra de Tiradentes (que chegou à sua 17 ª edição) se notabilizou como espaço de difusão de filmes autorais, que muitas vezes não desembarcam no circuito comercial, realizados por cineastas em suas primeiras investidas no terreno do longa-metragem. Além da reunião de produções de pequeno porte, a Mostra promove discussões cinematográficas consistentes por meio de debates sobre filmes específicos exibidos durante o evento e mesas centradas em discussões sobre determinadas características do cinema brasileiro contemporâneo.
A última edição reafirma a personalidade da Mostra, a julgar pelos filmes selecionados para a Aurora, a parte competitiva do festival. Há predomínio de produções mineiras – casos de A Mulher que amou o Vento, de Ana Moravi, A Vizinhança do Tigre, de Affonso Uchoa, Aliança, de Gabriel Martins, João Toledo e Leonardo Amaral, e O Bagre Africano da Ataleia, de Aline X e Gustavo Jardim – e de natureza experimental – como Aquilo que fazemos com as nossas Desgraças, de Arthur Tuoto.
A programação também contou com dois dos três longas do projeto Operação Sonia Silk – O Uivo da Gaita, de Bruno Safadi, e O Rio nos Pertence, de Ricardo Pretti. O projeto, influenciado pela experiência da produtora Belair (objeto de um documentário de Safadi e Noa Bressane), que concretizou filmes em pouquíssimo tempo, consiste na realização de filmes em duas semanas, com a mesma equipe (os atores Leandra Leal, Mariana Ximenes e Jiddu Pinheiro, o diretor de fotografia Ivo Lopes Araujo, a diretora de arte Luísa Horta). O nome do projeto faz referência à personagem de Copacabana mon Amour, de Rogerio Sganzerla, interpretada por Helena Ignez. O terceiro exemplar, que ainda não está pronto, é Meta Mancia (título provisório), assinado por Safadi e Pretti.
O público presente a Tiradentes também teve a oportunidade de assistir a algumas produções de outros festivais brasileiros recentes: Exilados do Vulcão, de Paula Gaitán, venceu a última edição do Festival de Brasília, onde foram exibidos (e premiados) Riocorrente, de Paulo Sacramento, Amor, Plástico e Barulho, de Renata Pinheiro, e Depois da Chuva, de Cláudio Marques e Marília Hughes. E De Menor, de Caru Alves de Souza, ganhou o Festival do Rio, prêmio dividido com O Lobo atrás da Porta, de Fernando Coimbra. A seleção da Mostra também contou com Já Visto, Jamais Visto, de Andrea Tonacci, Cidade de Deus – 10 Anos Depois, de Cavi Borges e Luciano Vidigal, Passarinho lá de Nova York, de Murilo Salles, O Homem das Multidões, de Marcelo Gomes e Cao Guimarães, e Amador, de Cristiano Burlan (ver crítica abaixo).
Se na edição passada a Mostra prestou homenagem à atriz Simone Spoladore, nessa o escolhido foi Marat Descartes, ator de formação teatral que tem se destacado no cinema nos últimos anos, especialmente após Os Inquilinos – Os Incomodados que se Mudem, de Sergio Bianchi. Formado na Escola de Arte Dramática (EAD), Descartes vem priorizando trabalhos autorais, não só no cinema como no teatro, fazendo eventuais concessões a projetos assumidamente de mercado. A Mostra exibiu, na abertura, o novo filme que Descartes protagoniza, ao lado de Antonio Fagundes – Quando eu era Vivo, de Marco Dutra, que acaba de entrar em cartaz nos cinemas –, e outras produções representativas da trajetória do ator, como o longa Uma Dose Violenta de Qualquer Coisa, de Gustavo Galvão, o média E Além de Tudo me Deixou Mudo o Violão, de Anna Muylaert, e curtas como Fala Comigo Agora!, de Karina Ades e Joaquim Lino, no qual contracenou com Cleyde Yáconis, e Uma Confusão Cotidiana, dirigido pelo próprio Descartes.
EM DESTAQUE: AMADOR
A partir da circunstância de um teste para selecionar atores para um filme, o diretor Henrique começa a lançar perguntas altas, abrangentes, aos candidatos – e também ao espectador de Amador, novo filme de Cristiano Burlan: “o que é amor para você?”, “o que é verdade para você?”, “o que é cinema para você?”, “o que significa fazer um filme?”.
Aos poucos, as questões começam a ser direcionadas para a relação com o trabalho artístico. Num determinado momento, o personagem do diretor sentencia: “o espectador tem que se esforçar para ver o filme”, diz, referindo-se à importância da coautoria do espectador, que deve se propor – e ser incentivado – a uma postura ativa diante de uma determinada obra.
A partir de dado instante, Burlan concentra o foco no ofício do ator, tratado como campo enigmático. “Como eu posso fazer com que um ator me mostre o que ele nem sabe que tem?”, pergunta o personagem do diretor. Numa passagem, uma atriz procura encaminhar a outra a um estado emocional, extrair aquilo que se convencionou mencionar de verdade interpretativa.
Uma recomendação se impõe em outra sequência: “não quero que interprete, mas que seja você mesma”. Não por acaso, em Amador, os atores emprestaram seus próprios nomes aos personagens. Burlan parece ter encaminhado os atores a um registro em primeira pessoa. Não permitiu que utilizassem os personagens como proteções, como defesas a uma exposição inerente à própria profissão do ator.
Cristiano Burlan defende uma visão de cinema artesanal, desvinculado dos apelos tecnológicos tão comuns nos dias de hoje. Relaciona a magia do cinema ao barulho do projetor, à figura do projecionista, elementos ameaçados na contemporaneidade. Evoca a liberdade, o descompromisso próprio do amador nesse filme realizado em preto e branco, no qual distribui referências que evidenciam seu apreço por cineastas emblemáticos ou veteranos (Ingmar Bergman, Robert Bresson, Tomás Gutierrez Alea, Bertrand Blier, Glauber Rocha) sem perder de vista totalmente a atualidade (Lars Von Trier).
Também cita Hamlet, a célebre pela de William Shakespeare (seu próximo filme será sobre uma trupe de teatro montando Hamlet e contará no elenco com a presença de Jean-Claude Bernardet, também presente nessa produção), e, curiosamente, Filumena Marturano, texto do napolitano Eduardo De Filippo lida pela atriz Yolanda Gentileza.