Boyhood
A ideia em si já traz ao filme um atrativo especial. Boyhood traça a história de uma família comum norte-americana, se isso é possível, ao longo de 12 anos. Ok, até aí nada. Porém a produção REALMENTE se passa ao longo de 12 anos, e a mudança física dos personagens, sobretudo do casal de irmãos Mason (Ellar Coltrane) e Samantha (Lorelei Linklater) - que acompanhamos da infância à pós-adolescência - faz parte essencial da narrativa e do desenvolvimento dramático do filme, o que torna o desafio no mínimo cativante. Afinal, como o diretor conseguiu segurar o pulso e filmar ano a ano durante mais de uma década a mesma história dando coesão a um filme, não a um seriado? Nada mais ambicioso passou por Berlim
Diante disso, difícil reclamar dos 164 minutos de duração. Embora um corte de 15 não fizesse mal algum. Mas há que se imaginar a aflição do diretor. Afinal, proporcionalmente, 15 minutos representariam, no mínimo, um ano de produção no lixo. Mas esqueçamos por ora os atrativos especiais. Boyhood, ao utilizá-los com total procedência, é um filme que revela com adorável desenvoltura as agruras de uma disfuncional família americana na última década.
Impossível pensar um roteiro prévio pré-definido a partir do momento em que algumas situações, como a eleição de Obama, ocorrem no decorrer de sua filmagem. Mesmo assim Linklater não perde a mão e mantém fluência admirável, justamente reconhecida pelos entusiasmados aplausos na sessão do público e da crítica no Berlinale Palast.
Olivia (Patricia Arquette, candidatíssima ao Urso de Melhor Atriz), é uma matriarca de vida atribulada devido às confusas escolhas matrimoniais, que a levam constantemente a mudar de casa com os filhos. Mãe precoce de Mason e Samantha, ela mantém uma boa relação com o pai dos filhos, vivido com igual excelênca por Ethan Hawke, enquanto pula de casamento em casamento. Seu personagem cresce com os tombos, ao contrário dos filhos, crianças enérgicas e vibrantes, que ao longo dos anos mergulham na catatonia, adotando um olhar cool sobre o mundo.
Boyhood não é um banho de mel. Lá estão o bullying, o alcoolismo, o patriotismo cego, o apego às armas, a religiosidade caipira e as rotineiras exigências por que passam os adolescentes. Mas assim como nas suas experiências anteriores - como a trilogia Antes do Amanhecer (1995), Antes do Pôr-do-Sol (2004) e Antes do Anoitecer (2013) - filmes cuja história de um casal também se desenvolve ao longo de décadas, Linklater encara tudo com um distanciamento por vezes cínico, por vezes surpreendentemente critico, mas nunca amargo diante do tempo e suas consequêncas. E ainda faz piadas de grande sutileza com isso.
Se não é um filme de risadas largas, tampouco está longe do tédio sebento da visão dos personagens adolescentes. Boyhood reúne uma série de instantâneos de uma América difícil de se ver: humana, frágil, complexa, que assusta e seduz com a mesma nonchalance. Sem a fragmentação obsessiva típica dos produtos americanos, o tempo no filme de Linklater expõe o que há de mais comum num país que se pretende sempre acima do comum: a vida como ela é.
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Diplomatie
Foi por alguns dedos de prosa que a famosa frase "nós sempre teremos Paris" não desapareceu de vez das citações universais. Pelo menos é o que defende, com assumida dose de imaginação, Diplomatie, novo, e ótimo, filme do tarimbado cineasta alemão Volker Schlöndorff, exibido fora da mostra competitiva de Berlim.
Vencedor da Palma de Ouro e do Oscar de Melhor Fiilme Estrangeiro com O Tambor, de 1979, Schlöndorff buscou inspiração na peça homônima do dramaturgo francês Cyril Gélly, de 46 anos, para tratar de um tema cuja universalidade certamente o levará de novo à trilha do Oscar internacional: por que os nazistas estiveram a um triz de detonar uma das mais belas capitais do mundo? Gélly assina a quatro mãos o roteiro com Schlöndorff, o que dá ao filme um equilíbriio em que o teatral não se sobrepõe à dinâmica da narração cinematográfica e em que a visão do jovem autor se equilibra com a experiência de Schlöndorff.
A peça mostra o encontro entre o Comandante da Paris ocupada, General Dietrich von Choltitz (Niels Arestrup), e o Cônsul sueco Raoul Nordling (André Dussolier) para debater a decisão irremediável de Hitler de destruir a capital francesa. Embora fosse admirador confesso da arquitetura da cidade, o führer tinha como motivação mais um dos abjetos argumentos de sua irracionalidade. Para ele Berlim e Paris eram as mais belas cidades do mundo. Logo, se Berlim fosse destruída, não haveria razão para Paris, sob o comando nazista, continuar a existir.
Embora o encontro entre os dois jamais tenha existido na forma como apresentada no filme, Diplomatie consegue através de diálogos concisos dar ao espectador a dimensão do drama dos dois protagonistas. É didático sem ser prolixo, e reflexivo sem se apegar à facilidade do julgamento moral. No fundo, o que se discute é o limite entre seguir às cegas os comandos dos líderes ou lidar com a ética. Há um eco do Glória Feita de Sangue de Kubrick, mas o recado parece mais direto aos dias que correm do que aos rescaldos da Segunda Guerra.
Enquanto o alemão afunda-se na sua agonia de não cumprir uma ordem que pode levar ao assassinato da mulher e dos filhos pela Gestapo, o sueco pondera sobre os três milhões de franceses que poderiam morrer a partir da decisão e a irresponsabilidade de entrar para a história como o homem que destruiu um patrimônio histórico da humanidade. Cabe à diplomacia mediar o gelo fino que separa a razoabilidade entre a ordem dos governantes e a responsabilidade dos executores.
Dilpomatie retoma o diálogo como base das discussões políticas. Muito oportuno num momento em que se discute a predominância da ação sobre a razão em vários conflitos mundo afora. Schlöndorff volta com força à cena internacional e convoca o público a apreciar a potência do diálogo e o risco iminente a cada decisão de que o mundo não tenha o mesmo destino da Paris da Segunda Guerra.
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Praia do Futuro
Há uma linha temática unindo os filmes do cineasta brasileiro Karim Aïnouz, que encontra em Praia do Futuro seu melhor desenvolvimento. Trata-se de um olhar cada vez mais meticuloso voltado para uma estética e uma ética do desapego. Do interesse pelo personagem libertário de Madame Satã, descolado dos valores morais de seu tempo, ao sonambulismo pós-romântico da protagonista de Abismo Prateado, seus personagens parecem vagar por um lugar-algum solitário em que a fuga é o movimento em si. Seja para onde for.
Praia do Futuro aprofunda esse sentimento já na poderosa sequência inicial, em que dois motoqueiros em alta velocidade circulam pelas dunas cearenses até abandonarem suas motos para mergulhar nas altas ondas da praia-titulo. O resultado é trágico: um se afoga e o outro, o alemão Konrad (Clemens Schick), é salvo pelo salva-vidas Donato (Wagner Moura). Da tragédia nasce um inesperado e intenso romance, que aos poucos tornará Donato da família e o levará a uma viagem sem volta para a Berlim do seu amante.
Esta primeira parte do filme, solar, mostra um Donato disciplinado, dedicado ao trabalho e principalmente ao irmão Ayrton (interpretado por Jesuíta Barbosa na fase adulta). O envolvimento cada vez mais intenso com Konrad, no entanto, oferece uma nova perspectiva ao salva-vidas, que decide sair do Brasil para conhecer a Alemanha.
O que seria uma viagem de semanas vai lentamente prendendo Donato. Não apenas a insistência do amante, mas uma forma de caminhar pelas ruas, de sentir o frio, de viver uma liberdade física e mental que ele não conhecera até sair do Brasil. Parodiando o titulo de um outro filme de Karim, o personagem parece viajar porque precisa e não volta porque ama.
A segunda, e melhor, parte de Praia do Futuro começa anos depois, com a chegada do revoltado Ayrton a Berlim, em busca do irmão amado e desaparecido. O reencontro entre os dois gera uma das mais fortes sequências do filme, em que ódio e amor se mesclam numa luta de corpos. Ayrton não tem muito o que perguntar e Donato, nada a responder. O reencontro não abafa o ressentimento, mas afasta a indiferença do mais velho e aplaca a ira de Ayrton.
Praia do Futuro é um filme de tempos longos, mas nunca vazios, como os de Abismo Prateado. O tempo do filme é o da descoberta, da reflexão, da busca de um sentido não para a vida, mas para o movimento. A cinematografia espetacular de Ali Olcay Gozcaya ilustra o filme com imagens soberbas, quase sempre ligadas à água, elemento definidor do filme desde a sequência inicial. Karim Aïnouz está sempre equalizando o real e o conceitual, como na sequência final, em que as motos dos protagonistas seguem ao infinito já não em alta velocidade, mas em outro tempo, o tempo de quem se movimenta sem tanta pressa e total desapego. Seja para onde for.
Praia do Futuro enfrenta tubarões na competitiva de Berlim, como Alain Resnais, George Clooney, Wes Anderson e Richard Linklater. Mas os arpões brasileiros estão afiados e cada vez mais sensíveis à estética de um novo cinema contemporâneo. Pode dar pé.
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Homofobia e colonialismo na Panorama Dokumente
A mostra Panorama Dokumente, dedicada exclusivamente a filmes documentais, continua sendo um dos melhores atrativos do Festival de Berlim. Este ano, pelo menos dois filmes tiraram o foco dos espectadores dos flashes dos tapetes vermelhos: Felice chi è Diverso, de Gianni Amelio, e Concerning Violence, de Goran Hugo Olsson.
O italiano não esconde a pretensão de traçar um quadro antropológico da homofobia, do fascismo aos dias de hoje. Amelio reúne um grande número de depoimentos e de imagens de arquivo, que expõem a crueldade por trás da galhofa moralista contra os "diversos". O resultado é um longo relatório de violência física e moral. O diretor capta casos nos mais distintos estratos sociais, da comunidade rural aos célebres protagonistas da política, como Andreotti, ou da intelectualidade, como Pasolini.
Ainda que o título, extraído de um poema de Sandro Penna, fale em felicidade na diversidade, na tela o que se vê é um mosaico por vezes excessivamente melancólico e indulgente da realidade homossexual na terra das noites bravas. Deixa a impressão de que o filme precisa ser melhor editado, até mesmo para aproveitar melhor citações rápidas - que poderiam engrandecer o debate - de comentários homofóbicos em filmes como Aquele que Sabe Viver, de Dino Risi, e Ontem, Hoje e Amanhã, de De Sica. Mas, que se faça justiça, a ideia principal, resumida por um senhor gay da Democracia Cristã, perpassa todo o filme: "Na Itália, o homossexualismo só poderá ser um partido se fosse um partido transversal, pois está em toda a parte".
Bem mais potente, direto e político, Concerning Violence parte do texto clássico Os Condenados da Terra, do filósofo e psiquiatra martinicano Frantz Fanon, para questionar sem meias palavras a política de colonização ocidental do terceiro mundo. Com extrema inteligência, Olsson, que já apresentara com sucesso no Festival de Sundance The Black Power Mixtape 1967-1975, elabora seu documentário a partir de imagens da luta de lbertação africana nos anos 1960 e 70, o que reforça a ideia de universalidade do tema da colonização.
Narrado com envolvimento e personalidade marcantes pela cantora Lauryn Hill, Concerning Violence usa, e na maioria das vezes expõe na tela sobre as imagens, trechos literais da obra de Fanon para reafirmar seu compromisso com o discurso, o debate e o combate ao colonialismo. Texto, imagem e narração afunilam-se no intuito de provocar o espectador a refletir sobre contradições permanentes. Como bem disse o cineasta ao público após a exibição, "eu poderia ter escolhido imagens contemporâneas do Oriente Médio, da América Latina ou da própria Afriica. Mas o que se quer aqui é debater a atemporalidade do tema. A imagem da mãe mutilada por napalm amamentando seu bebê, também mutilado, infelizmente poderia estar em outras partes do mundo contemporâneo." E é por essas e outras que, pelo menos na Panorama Dokumente, a luta continua.