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DIÁRIO DA CÔTE

25.05.2014
Por Ricardo Cota
Ricardo Cota comenta filmes exibidos no Festival de Cannes 2014

Essa postagem será atualizada regularmente ao longo do Festival, diretamente de Cannes



PREMIAÇÃO DE CANNES JUSTA, SEM GRANDES SURPRESAS, CONSAGRA CINEMA TURCO

Depois de um 2013 em que o júri sob o comando de Steven Spielberg surpreendeu dando a Palma de Ouro para a ousadia de Azul é a Cor Mais Quente, o 67º Festival de Cannes, presidido pela aplicada Jane Campion, sempre com seu caderno de anotações e cara de primeira da turma, não inventou e concedeu prêmios previsíveis mas justos.

Os dois favoritos da competição, Winter Sleep e Leviathan, ganharam prêmios que poderiam ser alternados. O primeiro, do turco Nuri Bilge Ceylan, Palma de Ouro, merecia até mais o de roteiro, que acabou ficando com Leviathan, escrito a quatro mãos por Oleg Neguin e o diretor Andrei Zviagyntzev. Os debates profundos entre o dublê de dono de hotel e filósofo e suas irmã e esposa foram comparados às digressões de Tchekov. Já Leviathan tem na edição tarkovyskiana e na cinematografia de Goghan Tyriaki, com longos planos naturalistas, os maiores trunfos. Ou seja, invertidos os prêmios e tudo estaria certo. Pesou o fato de, este ano, a Turquia comemorar o centenário do seu cinema, por sinal muito bem trabalhado junto à imprensa. Winter Sleep também levou o prêmio da Fipresci, Federação Internacional de Críticos de Cinema.

O Prêmio do Júri, na mais política decisão, agradou a todos, principalmente aos críticos, ao ser dividido entre o frescor do explosivo debate edipiano Mommy, do quebequense de 25 anos Xavier Dolan, e a homenagem ao currículo do franco-suíço Jean-Luc Godard e seu cifrado Adeus à Linguagem. Já o Prêmio do Júri, com o dedo visível da Presidente Campion, única mulher a ganhar a Palma de Ouro em Cannes, foi para Le Meraviglie, da italiana Alice Rohrwacher, um ensaio poético sobre a decadência da vida rural na Itália. Deve ter sido dura a decisão entre este e o simbolista Still Water, da japonesa Naomi Kawase, que recebeu quatro estrelas do crítico brasileiro da Screen International José Carlos Avellar.

Juliane Moore, como a atriz desequilibrada de Maps to the Stars, era barbada. Já Timothy Spall, em seu tour de force como o pintor William Turner, no biópico Mr. Turner, de Mike Leigh, desbancou com louvor a interpretação maceteada, cavadora de prêmio, de Tommy Lee-Jones no new western The Houseman.

Para Melhor Direção, a escolha de Foxcatcher, dirigido por Bennet Miller, o mesmo de Capote, foi a que mais incomodou este crítico. Baseado na história real de dois campeões de luta greco-romana que se envolvem tragicamente com um excêntrico herdeiro de fortuna, o thriller, por seu convencionalismo, é mais uma peça correta hollywoodiana a caminho de um Oscar. Porém está a léguas de distância da paleta solar, reflexiva, poética e denuncista dos abusos fundamentalistas do Timbuktu de Abderrahmane Sissako, este, talvez o maior injustiçado. Mas assim são os festivais de Cannes, doze dias de som e fúria em que a realidade é tudo aquilo que gira em torno do cinema. Alegria dos críticos, preocupação dos cineastas e desespero dos distribuidores.



PRIMOROSO, "LEVIATHAN" EXPÕE OS ELOS ENTRE JUSTIÇA, PODER PÚBLICO E RELIGIÃO NA RÚSSIA DE PUTIN

Demorou mas apareceu. Último longa exibido na mostra competitiva, Leviathan, quarto filme de Andrei Zvyagintsev, é a obra-prima de Cannes 2014. O título refere-se tanto à encarnação bíblica de satã quanto ao Estado de um soberano absoluto defendido por Thomas Hobbes no século XVII em livro homônimo.

Kolya (Alexei Sebryakov) vive com Elena (Elena Lyadova, ótima) numa gélida cidade litorânea a alguns quilômetros de Moscou. Completa a família o adolescente Roma (Sergey Pokhadaev), filho do primeiro casamento de Kolya, que bate de frente com a madrasta. O problema parece menor diante da batalha judicial que Kolya trava com o inescrupuloso prefeito local Vadim Shelevyat (Roman Madyanov, maravilhoso), que usa de todos os recursos, sobretudo os ilegais, para tomar as terras do humilde proprietário e construir um grande empreendimento imobiliário. A seu lado, Kolya conta com o advogado Dmitri (Vladimir Vdovitchenkov), um velho camarada que irá trazer mais problemas do que soluções para sua até então pacata vida longe da grande cidade.

Na kafkiana tragédia existencial de Kolya, vários serão os obstáculos. Burocracia, corrupção, traição e violência são alguns deles. Mas é a desilusão religiosa, que remete a outro clássico literário, Dostoievsky, que dará o tom final da desventura moral. O roteiro, escrito a quatro mãos pelo diretor e por Oleg Negin (o mesmo do anterior Elena), compensa o drama com toques de comédia social, seja através dos diálogos, quase todos com os personagens bêbados (ninguém os interpreta melhor do que os russos), seja através de referências diretas aos líderes políticos da antiga União Soviética e da nova Rússia.

O uso da relação espaço-tempo inspira-se assumidamente no cinema de Andrei Tarkovsky, de quem Zvyagintsev herda também a harmonia entre o ritmo da narrativa e a música que a acompanha, aqui retirada da sinfonia Akhnaten, de Philip Glass, cujo nome foi aplaudido merecidamente durante a sessão de gala quando exibido nos créditos. A Rússia contemporânea pode até ter se modernizado com celulares, telas de plasma e carrões como os que aparecem em cena. Mas a essência de seus dramas morais remetem aos clássicos do século XIX e à milenar ortodoxia católica. Derrubar os Leviatãs, portanto, ainda é uma missão. Que venha a Palma.



IRMÃOS DARDENNE CORREM POR DENTRO; ARGENTINO "RELATOS SELVAGES", POR FORA

De Jean-Pierre e Luc Dardenne espera-se sempre o melhor.  Presenças constantes em Cannes, com duas Palmas na prateleira por Rosetta (1999) e A Criança (2005), seus filmes sempre estão entre os cogitados para o prêmio principal. Não é diferente com Two Days, One Night, exibido na competitiva.

Tocando na ferida sócio-econômica-política da Europa contemporânea, a dupla se debruça sobre a história de Sandra (Marion Cotillard, sempre precisa), trabalhadora de uma pequena empresa de energia solar de alguma cidade pequena da Bélgica. Frágil e depressiva, seu cotidiano é alterado quando divide a responsabilidade de sua possível demissão com os colegas de trabalho. Diante da necessidade de corte de custos, 16 trabalhadores são convocados para votar entre receber um bônus de mil euros ou demitir a frágil e depressiva Sandra. Na primeira, Sandra perde e pede uma segunda oportunidade ao patrão, que lhe concede. Resta então à mãe de dois filhos casada com um marido extremamente solidário dois dias e uma noite para reverter o quadro.

O ponto de partida colocado pelo roteiro já expõe, de imediato, os desafios morais e éticos que seguirão. Em sua campanha pelo sustento do emprego, Sandra enfrentará humilhação, desamparo, tristeza e decepção. Conhecerá também solidariedade, respeito e leadade. Mas acima de tudo, a missão irá levá-la ao autoconhecimento e o espectador a uma viagem pela crise econômica europeia e suas consequências na política de cortes, na vida dos imigrantes, no dia-a-dia das famílias, no esvaziamento dos sindicatos e no abalo sísmico em valores outrora caros à solidariedade trabalhista. O realismo poético dos Dardenne continua buscando ar mesmo no sufoco dos tempos que correm. Felizmente.

Se Two Days, One Night confirma o que se espera dos seus autores, Relatos Selvajes, do argentino Damián Szifron, é a melhor surpresa da competitiva. Experiente diretor de séries para a televisão, Szifron leva a tarimba dos relatos rápidos e de comunicação imediata para os seis episódios que compõem este filme que combina ação, violência gráfica, comentário social, humor e cinema da melhor qualidade. Fosse Tarantino o presidente do júri, a Palma já era dos hermanos.

O roteiro consegue driblar o clichê de que filmes em episódios são irregulares. À exceção do episódio estrelado por Ricardo Darín, uma pertinente crítica ao sistema de controle de trânsito argentino, porém de final questionável, os demais sustentam-se pelo impacto imediato e pela capacidade de convencer o espectador em um curto espaço de tempo do potencial de pequenas histórias, como o conto anedótico que antecede os créditos.

Produzido por Pedro Almodóvar e seu irmão, Relatos Selvajes tem a mesma impressão visual dos filmes do espanhol, com um requinte do tratamento visual expresso através de subjetivas inesperadas, grandes planos, travellings circulares, esmero fotográfico e decupagem bastante elaborada.  A trilha de Gustavo Santaolalla dá o refinamento definitivo a este filme que tem no último episódio sua pièce de resistance. Uma festa de casamento chique que aos poucos revela o espetáculo da decadência das convenções sociais. Nelson Rodrigues aplaudiria.



CANNES FERVE: GODARD DÁ ADEUS À LINGUAGEM, LEE JONES HOMENAGEIA WESTERN E CRONENBERG DETONA HOLLYWOOD

Evento mais esperado em Cannes, a estreia mundial da mais recente provocação do franco-suíço Jean-Luc Godard frustrou as expectativas em diversos sentidos.  Primeiro pela ausência do cineasta no tapete vermelho. De acordo com o Presidente do Festival, Gilles Jacob, que se aposenta este ano, Godard não veio porque não queria deixar seu melhor amigo sozinho: o cachorro.  Cachorro este, por sinal, que tem uma atuação destacada no filme do cineasta.

A maior frustração, no entanto, é o filme em si.  Mesmo para uma plateia de muito boa vontade, com direito a um espectador gritando ‘‘Godard forever“ ao apagar das luzes, a experiência em 3D de um dos mais importantes cineastas do mundo acrescenta pouco a sua carreira.  Adeus à Linguagem é um corriqueiro exercício de imagens com os habituais cortes metalinguísticos e as frases intelectuais remetendo ao Gulag, Guevara, Mao e ao proletariado.  As intervenções em 3D, com direito a close do amigo cachorro, também não empolgam.  Há um achado especial, que não entrego, mas que parece muito pouco para os 76 minutos do filme.  Godard continua ousado, verdade, mas seus exercícios de linguagem envelheceram.

Da fragmentação a uma homenagem avant la lettre aos clássicos, The Homesman reverencia o western à moda de Clint Eastwood.  Não é um bang bang, mas sim um “horse movie" exatamente na linha de Três Enterros, o filme anterior de Tommy Lee Jones.  Aqui seguimos o protagonista (Tommy Lee Jones cavando uma Palma de melhor ator) na difícil missão de acompanhar uma solitária fazendeira (Hillary Swank) de sentimentos nobres em relação a três mulheres que enlouqueceram na solidão agreste do interior de Nebraska.  Elas sucumbiram aos desafios da conquista do western e agora serão levadas de volta para a cidade.  Como em Três Enterros, Lee Jones faz uma ode à lealdade e ao cumprimento das promessas,  Há um toque de comédia negra, sobretudo nos diálogos entre o casal principal, que dá ao filme uma conotação especial em relação ao gênero que homenageia. Destaque para a fotografia naturalista de Rodrigo Prieto.

Bem longe das homenagens, Map to the Stars, é uma paulada nos bastidores das celebridades hollywoodianas.  O título refere-se aos guias de Los Angeles que vendem tours pelas casas de celebridades.  Aqui o roteiro, escrito a quatro mãos por Cronenberg e Bruce Wagner, é devastador.  O ponto de partida é uma família disfuncional cuja filha (Mia Wasikowska) foi expulsa de casa por tentar botar fogo nela e no irmão (Evan Bird, revelador), um monstrinho de 14 anos a la Justin Bieber que usa o estrelato para humilhar os outros e desfilar sua arrogância.  John Cusak interpreta o pai, um terapeuta picareta de práticas nada ortodoxas, e Olívia Williams, a mãe impotente e depressiva. Sobra ainda espaço para uma atriz decadente e invejosa (Julianne Moore, rumo à Palma), agentes insaciáveis e a participação bem pertinente de Carrie Fischer em private joke.

Drogas lícitas e ilícitas, crises de depressão, arrivismo, grana. competição e inconsequência são os pontos turísticos do mapa para as estrelas cronenberguiano. Há  ainda espaço para alucinações fantasmagóricas que projetam os personagens para um ambiente em que o real e o imaginário se confundem a todo instante. Ninguém parece viver no presente.  A moça piromaníaca busca resolver o passado, o jovem irmão não quer ser um ídolo infantil, o pai terapeuta teme pela sua reputação e Juliane Moore anseia por viver o papel da mãe morta, também atriz, num remake.  A crônica cruel do estrelato expõe as vísceras hollywoodianas num ritual de autoflagelação que já rendeu grandes filmes e que mostra que ainda não é hora de Cronenberg dar adeus à sua linguagem.  Fica só uma perguntinha:  o que faz Robert Pattinson no filme?  A presença de um ídolo num papel para lá de secundário só pode ser mais uma das private jokes do mordaz Cronenberg.



FALHA NA PROJEÇÃO DE DOCUMENTÁRIO SOBRE ROGER EBERT LEVA CANNES A CONSTRANGIMENTO

Vida de crítico não é mole.  Mesmo quando somos homenageados. Um dos mais esperados documentários do festival, Life Itself, sobre o crítico de cinema Roger Ebert, teve sua exibição interrompida a 30 minutos do final por uma falha na projeção, gerando revolta nos espectadores.  Pior.  Ninguém da direção do festival apareceu para prestar satisfação, obrigando o cineasta Steve James (o mesmo do ótimo Hoop Dreams) e a esposa de Ebert a subirem no palco para, com muita simpatia, responder a perguntas da plateia e cobrar alguma providência, que não veio. Ficamos assim a 30 minutos do fim, ironicamente após o trecho em que Roger Ebert demonstra seu fascínio pela efeméride de Cannes. Foi na Sala Buñuel do Grand Palais. Imagina no Brasil. Imagina na Copa.

Bom, até onde este crítico viu, Life Itself é um tocante documentário que flagra a dignidade dos últimos momentos de Ebert enfrentando um câncer que devastou sua mandíbula, tirou-lhe os movimentos das pernas e o obrigou a se comunicar por meio do teclado de um computador integrado a um sintetizador. O exemplar, e admirável, bom humor de Ebert é alternado com entrevistas de diretores, críticos e familiares, além de trechos de suas críticas e de suas atuações na tevê ao lado de Gene Siskel, que popularizaram os críticos internacionalmente.

Ebert é apresentado como um editor talentoso aos 21 anos, dedicado à total fidelidade ao Chicago Sun-Times. Bon vivant, destacava-se pela presença na noite e no bar mais próximo da redação, onde se aproximava de personagens bizarros. As amizades servem para entender o fascínio de Ebert pelo cineasta para lá de alternativo Russ Meyer, de quem se torna amigo e corroteirista do marcante Beyond the Valley of the Dolls. Por sinal um dos melhores depoimentos, de um emocionado Martin Scorsese, explica a montagem genial da cena de sexo filmada no interior de um Bentley. Enquanto Martin fala, vemos a sequência no filme de Russ Meyer. Aula de cinema.

Scorsese, como outros, ratifica a conhecida generosidade de Ebert, que descobriu o cinema do realizador vendo Who's Knocking at my Door, de 1967. Para Ebert, em 20 anos Scorsese seria o novo Fellini. Curiosamente, em 10 anos Scorsese estava destruído, consumido pelas drogas e por relacionamentos infelizes. Quem o tirou da lama? Roger Ebert , com a experiência do alcoolismo, e Siskel. Ambos inventaram um prêmio para levantar a bola do diretor. Na lista de gratos ao crítico estão ainda Werner Herzog, que lhe dedicou um filme, Errol Morris e uma lista de jovens cineastas revelados em Sundance.

Mas nem tudo são flores no caminho do crítico. Suas intervenções com Siskel na tevê são alvos de, como não, crítica pelos admiradores de Pauline Kael e Andrew Sarris, que os consideravam vulgarizadores da opinião especializada. Crítica dura de sustentar, ainda mais quando se sabe que um dos maiores defensores de Ebert é o inconformado Michael Moore. Ebert popularizou sim, mas vulgarizar não. As brigas entre Siskel e Ebert na emissão e nos bastidores do programa televisivo proporcionam um dos melhores momentos do documentário, que ressalta tanto o humor corrosivo quanto a generosidade e a humildade do mais popular crítico do mundo, que só gostava de uma coisa mais do que o cinema: a vida ela mesma.



À SOMBRA DOS JOVENS EM FLOR - CANNES SE RENDE AOS FLMES SOBRE ADOLESCENTES

Gênero em alta em Cannes, os filmes sobre adolescentes espalham-se por toda parte. A começar pela Semana da Crítica, cuja seleção é dedicada ao primeiro ou ao segundo filme dos realizadores selecionados. Em pelo menos três filmes, de tratamentos completamente distintos, o período de transição para a vida adulta está em foco.

O italiano Darker Than Midniight, de Sebastiano Riso, trata da crise de identidade de Davide, jovem de 14 anos contagiado pela androginia projetada por ídolos como David Bowie. Seu fascínio o levará a buscar refúgio no bas-fond, entre travestis e garotos de programa que lhe acolhem com mais ou menos restrições. Paralelamente Davide enfrenta uma crise familiar contra um pai machista e violento que não aceita as particularidades do filho. Os estereótipos generalizados se sobrepõem ao realismo duro do tratamento e impedem que o filme realize seu intento de sensibilizar os que condenam o "way of life" que promove. Dificilmente a Itália repetirá o êxito de Salvo, vencedor da Semana da Crítica do ano passado.

Identidade sexual também é o tema de Respire, da jovem e bela cineasta francesa Mélanie Laurent. Inevitável compará-lo com o drama da adolescente Adéle de Azul é a Cor Mais Quente, de Abdelatif Kechiche, vencedor da Palma de Ouro de 2013. Também protagonizado por duas talentosas beldades juvenis, Isabelle Carrè e Joséphine Japy, Respire mostra o jogo de sedução, e sobretudo manipulação, entre duas amigas de escola. Menos carnal e totalmente platônico, aqui a sensualidade não se impõe, mas sim a violência cruel de uma jovem sobre a outra, o que levará a uma discussão maior sobre o bullying do que sobre a homoafetividade. Bem dirigido, bem interpretado, carece de um roteiro menos redundante e precipitado em relação ao final desnecessariamente exagerado. Pode ser o filme da crítica.

Completam a lista It Follows e Catch me Daddy. O primeiro, inexplicavelmente selecionado pela crítica, é um pretenso exercício de horror moderno produzido nos Estados Unidos e dirigido por David Robert Mitchell. Adolescentes são perseguidos por fantasmas dos pais castradores e afirmam a velha máxima de que a salvação está no grupo e não no indivíduo. O pior é que quando crescem, para alegria do sistema, muda tudo. Para segundo filme, Mitchell já deixou de ser promessa. Finalmente, Catch me Daddy, exibido no mercado, filme de estreia do inglês Daniel Wolfe, inspira-se no realismo social de Ken Loach para contar a dura vida de uma jovem subempregada em conflito com um namorado violento e o pai persecutório. Este promete.



POR QUE VAIARAM CAPTIVES DE ATOM EGOYAM?

Em primeiro lugar, porque merece. Captives, de Atom Egoyam - vencedor de dois prêmios da crítica, FIPRESCI, por Exotica (1994) e O Doce Amanhã (1997), este também prêmio do Júri em Cannes - aborda de maneira confusa um fato ocorrido no rigoroso inverno do interior canadense: o sequestro de uma menina que aguardava no banco de trás do carro sua mãe fazer compras. Oito anos depois, os familiares recebem sinais de que a menina estaria viva e mobilizam polícia e sociedade em sua captura.

O filme, a princípio, pretende trazer para o debate a ação das redes de pedofilia que encontraram na internet a rede para pescar suas vítimas. O desenrolar da trama, no entanto, se perde ao dividir em pelo menos três núcleos a ação, levando o espectador a um estado de confusão que aos poucos se transforma em desinteresse. Deu saudades de A Caça, de Thomas Vinterberg.

Enquanto os pais se martirizam pela culpa, os tiras à caça do sequestrador se atrapalham e o vilão em si (interpretado por Kevin Durand) se apresenta como uma mistura de John Waters, pela aparência física, e Dr. Mabuse, pelo olhar absoluto que controla a vítima, sua mãe e uma policial também mantida em cativeiro. A composição levou críticos mais impiedosos às risadas.

A mudança mais significativa na trama é que a distração pelo sequestro aqui cabe ao pai (Ryan Reynolds, excessivamente dramático). A crítica declarada ao comportamento masculino, seja pela impotência seja pela crueldade, é o que há de mais interessante na abordagem, que naufraga ao sugerir uma improvável síndrome de Estocolmo na pequena Cassandra. Nem mesmo a sutileza do erotismo voyeur característico dos filmes de Egoyam se destaca neste suposto thriller cujo tédio se multiplica com a impositiva trilha sonora de Mychael Danna, vencedor do Oscar por As Aventuras de Pi. Bola fora.



DISCUSSSÃO SOBRE ISLAMISMO, TIMBUKTU TEM BOA RECEPÇÃO EM CANNES

Há razões extra filme para acreditar que Timbuktu, do cineasta da Mauritânia Abderrahmane Sissako, pode se destacar neste 67 Festival de Cannes. Sua produtora, Sylvie Pialat, viúva do cineasta Maurice Pialat, sabe circular pelos bastidores da Croisette como poucos. Ano passado, O Desconhecido do Lago, produzido por ela, foi beneficiado por um forte boca a boca que lotou sessões e arrebatou o prêmio de melhor direção da mostra Un Certain Regard. Além disso, a presença da cineasta Jane Campiion, única mulher a ganhar uma Palma de Ouro por O Piano, na presidência do júri deste ano reforça o impacto de um filme que tem na violência contra as mulheres um dos seus principais temas.

Mas Timbuktu, para além de suas possibilidades extra-tela, é um grande filme, que afirma Sissako, vencedor do prêmio FIPRESCI da mostra Un Certain Regard em 2002, com Esperando a Felicidade, como um cineasta cuja carreira se consolida a cada obra. Sem o tom documental do anterior Bamako, Timbuktu possui uma narrativa cíclica baseada na rotina de terror vivida por um território ocupado por religiosos fundamentalistas contrários a um Islã mais aberto e tolerante.

O roteiro, que se divide em pelo menos três núcleos, foca na intervenção dos fundamentalistas no cotidiano dos moradores de Timbuktu. Um modesto criador de gado que mata acidentalmente um pescador, uma mulher que se recusa a usar luvas para vender peixes e outra condenada a chicotadas pelo simples ato de cantar são algumas das vítimas de um regime marcado pela intolerância. Mas engana-se quem vê no material o caminho para uma abordagem direta e panfletária.

Timbuktu destaca-se pela narrativa seca, marcada por silêncios e introspecção, em que o flagrante da violência pode estar tanto na condenação brutal dos protagonistas quanto em pequenas trocas de olhares, que revelam o mais íntimo sofrimento de homens e mulheres. O cineasta também foge da condenação moral evidente ao inserir na trama um personagem dividido entre as perspectivas do islamismo. Um personagem que observa, fuma às escondidas e até mesmo flerta com o tai chi chuan. Duvida, mas não brinca com a palavra divina. Abderrahmane Sissako, anotem, não é carta fora do baralho de Cannes.

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Outros comentários
    1516
  • Marcos Florião
    20.05.2014 às 08:54

    Excelente cobertura e comments, Ricardo. Grato !