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A ARTE DA CRÍTICA: LITERATURA

23.03.2004
Por Adriana Lisboa
ESTRADA DE MÃO DUPLA

No devastador artigo sobre a exposição de Anita Malfatti em 1917, Monteiro Lobato incluiu-a num grupo de artistas que surgiam “lá e cá como furúnculos da cultura excessiva.” Para ele, a arte de Anita ficaria bem nas paredes de um manicômio, mais um “produto ilógico de cérebros transtornados pelas mais estranhas psicoses.” A crítica marcou definitivamente a carreira da pintora, ainda que a exposição de 17 seja considerada um dos bastiões do modernismo no Brasil. Nem sempre a história se cumpre com justiça, mas aqui a depreciação de Anita por Lobato veio a ser, décadas depois, responsável pela depreciação de Lobato. É um caso extremo de crítica retrógrada e agressiva que acaba perecendo em sua própria fogueira.



Na estrada de mão dupla pela qual passa sua relação com o público, o artista se vê necessariamente diante da mediação da crítica. A arte se faz para o público. Em literatura, já há muito se anunciou que o livro só se completa com a leitura. As obras mais instigantes são justamente aquelas que oferecem “lugares vazios” a serem ocupados através de uma leitura ativa e criativa. Em sua mediação, a crítica fornece interpretações, análises, mas às vezes cede à tentação de buscar supostas verdades, de que o supremo equívoco vem a ser o juízo de valor.



Quando um escritor responde a uma crítica, mais do que angariar solidariedade ele causa constrangimento. Assim, sem o toma-lá-dá-cá, o crítico corre o risco de se transformar num cobrador de pedágios extorsivos que, por ter ganho a concorrência da privatização da estrada, organiza como bem quer a sinalização.



Mas não precisa ser assim. Para o filósofo Vilém Flusser, é possível encarar de duas formas a obra literária: como resposta ou como provocação. À primeira atitude corresponderia a crítica, e à segunda, a especulação. Quando uma obra é tida como resposta a outros textos e situações, o crítico busca descobrir e analisar essas relações. Quando, por outro lado, é tida como provocação, torna-se um ponto de partida, um substrato para que o pensamento possa ir mais longe. À ilusão paralisante da verdade contrapõe-se a dúvida criativa, que estimula a seguir adiante: é o que diferencia o dogmático do cético.



O escritor e professor Gustavo Bernardo lembra que à especulação corresponde “a atitude da simpatia, no sentido grego da palavra: co-vibração. Esta palavra, simpatia, pertence ao mesmo campo das palavras respeito, atenção e cuidado.” São valores a se prezar na mediação entre autor e leitor. O crítico que segue valores como humildade e simpatia presta um favor à arte e à crítica. O outro, o displiscente e leviano, ou a “metralhadora giratória,” reedita os equívocos que, aqui e ali, esterilizaram carreiras como a de Anita Malfatti. Quem sai perdendo?



Ressaltemos ainda que crítica, ensaio e ficção são gêneros que freqüentemente se intercomunicam. A voz da crítica é apenas uma narrativa erguida um grau acima do texto a que se refere. Nas cada vez mais indistintas fronteiras entre o ficcional e o não-ficcional, a ferramenta da dúvida é, se não a mais confortável, ao menos a mais honesta. Crítica como arte – ou, melhor ainda: como especulação.



Adriana Lisboa é escritora.



Texto publicado no Jornal do Brasil em 08-03-2004

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