Especiais


PAIXÃO PELO REAL

26.03.2004
Por Carlos Alberto Mattos
PAIXÃO PELO REAL

Ao som dos cocos e das vozes rachadas das três ceguinhas de Campina Grande, começou no Rio a 9ª edição do Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade. A Pessoa É para o que Nasce, o esperado longa-metragem de Roberto Berliner e equipe da TV Zero, agradou em cheio com seu retrato saudavelmente despudorado das cantoras-pedintes paraibanas, todas cegas de nascença.



O filme é um exercício no fio de uma lâmina. Nada mais arriscado do que filmar quem não vê – e portanto não controla a forma como se dá a ver. Apesar da consciência de estarem sendo “estrelas de cinema”, que Berliner trabalha habilmente numa seqüência inesquecível, o fato é que as três irmãs não estão habilitadas a se “construírem” diante das câmeras, como fazem todos os que enxergam. Documentá-las, portanto, é viver o difícil dilema de penetrar na sua intimidade sem no entanto explorá-las além do que elas estariam dispostas a aceitar.



Nesse aspecto, o filme é quase irretocável. Pode-se fazer alguma restrição à seqüência em que uma delas é instada a usar um telefone, provocando risadas constrangidas na platéia. Pode-se reprovar o uso metafórico de um passarinho na seqüência final. Ou perceber uma perda de densidade no bloco da Bahia, quando “as meninas” se apresentam no Percpan coadjuvadas por um Gilberto Gil paternalizante. Mas tudo isso fica insignificante diante de uma jóia cinematográfica que encanta a cada minuto.



Seria inócuo optar por um documentário distanciado e “objetivo” sobre essas três mulheres afastadas das imagens do mundo, mas não da experiência dele. Berliner conviveu com elas em quatro períodos desde os anos 1980, a ponto de Maria se apaixonar por ele. Num momento já famoso do filme, o diretor explica a suas personagens que o seu carinho e interesse por elas não deve ser confundido com amor.

Esse envolvimento com o objeto do documentário se reproduz, por exemplo, no uso da música, despudorado a ponto de soltar os violinos de Ennio Morricone na paisagem nordestina. Outro achado maravilhoso foi pontuar com música a auto-apresentação oral de cada uma, realçando o caráter musical de suas vozes, cada uma no seu tom.



Muito ainda se vai falar desse deslumbrante documentário nos próximos meses, e certamente voltaremos a ele aqui no criticos.com.br.



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O 9º É Tudo Verdade acontece pela primeira vez em três cidades: Rio de Janeiro, de 25 de março a 4 de abril; São Paulo, de 26 de março a 4 de abril; e Brasília, de 6 a 11 de abril. Além das competições brasileira e internacional e da tradicional mostra informativa O Estado das Coisas, há este ano uma retrospectiva de documentários musicais brasileiros (os dez melhores segundo uma consulta a críticos e cineastas), uma homenagem a Jean Rouch, a nova mostra Foco Latino-americano e, exclusivamente em São Paulo, a 4ª Conferência Internacional do Documentário, com o tema O Documentário Hoje. Haverá, ainda, o lançamento dos livros Cara, Cadê Meu País?, de Michael Moore, O Documentário de Eduardo Coutinho: Televisão, Cinema e Vídeo, de Consuelo Lins, e Eduardo Coutinho: O Homem Que Caiu na Real, de autoria deste que vos fala.



A programação pode ser consultada no site do festival. Alguns filmes podem ser recomendados por conhecimento prévio ou reputação evidente. No primeiro caso, há que se destacar o novo documentário de Evaldo Mocarzel, As Mensageiras da Luz, que leva adiante sua proposta de indagação sobre o ato de documentar, presente em À Margem da Imagem. O universo agora é o das parteiras da Amazônia, entrevisto a partir de conversas bem temperadas, onde elas também opinam sobre o que deve ou não ser mostrado no filme. Há também um ensaio simbólico sobre os paralelos entre o nascimento de uma criança e o surgimento de um filme. Mocarzel filma o parto do seu próprio filho num asséptico hospital de São Paulo, estabelecendo uma dicotomia com os trabalhos “naturais” da selva. Em atitudes como essa, o autor se abre, num misto de ingenuidade e engenho, para a experiência transformadora do documentário e deixa uma série de ótimas indagações no ar.



Em matéria de auto-exposição, a princípio nada poderia se comparar a Todas as Garotas que Já Amei, de Henrique Goldman, o brasileiro radicado em Londres que resolveu filmar as memórias de suas ex-namoradas sobre a relação que mantiveram com ele. Há garotas italianas, inglesas, brasileiras e uma bósnia, cada qual com uma expectativa diferente em relação à figura masculina. Elas falam para ele, sobre ele e algumas vezes contra ele. Mas o filme na verdade é sobre as mulheres. Até mesmo sobre as duas que, por motivos diversos, se recusaram a atender ao convite. Através desse estratagema esperto, Goldman também realiza virtualmente uma típica fantasia masculina, que é a de reunir suas ex-mulheres para uma conversa franca, civilizada e, até onde possível, carinhosa.



Os Arturos, de Thereza Jessouroun, mostra a forma de organização e as festas de uma comunidade de descendentes de escravos em Minas. Os Arturos têm na congada um modo de regulamentação social e uma defesa ferrenha contra os perigos “exteriores” do crime e da droga. Há quem sinta falta de uma perspectiva mais crítica da parte da realizadora, mas o filme fornece, ao menos nas entrelinhas, os instrumentos para essa análise. E revela a beleza dos rituais, o orgulho dos arturos, assim como confirma a sensibilidade de Thereza Jessouroun para acessar as camadas mais íntimas de uma comunidade.



Concorrente ao Oscar de documentário este ano, The Weather Underground deve ser um título a não perder. Reconta as peripécias do grupo de ativistas Weathermen, que nos anos 1960 jogavam bombas contra objetivos simbólicos americanos e contra a guerra do Vietnã. Outro grande sucesso internacional é Touching the Void, que vem batendo recordes de público para documentários na Inglaterra e evoca a aventura de sobrevivência de dois alpinistas nos Andes peruanos, em 1985, quando um deles quebrou a perna. Por sua vez, Checkpoint flagra o dia-a-dia em postos de controle da Cisjordânia e da Faixa de Gaza, onde situações trágicas e tragicômicas se sucedem entre palestinos e israelenses. Amir Labaki, diretor do festival, escolheu este filme para abrir os trabalhos em São Paulo, confiante na contundência de suas cenas.



O festival tem documentários sobre a escalada política de Arnold Schwarzenegger (Como Arnold Conquistou o Oeste), a operação cardíaca de dona Lúcia Rocha (Abry), a trajetória de imigrantes nos EUA ao longo de quatro anos (a série Os Novos Americanos), a vida na fronteira do Oiapoque (Do Outro Lado do Rio). Entre os ilustres personagens de filmes, constam ainda o pintor Cícero Dias, o fotógrafo Evandro Teixeira, o produtor cinematográfico Antonio Polo Galante, o Barão de Itararé, o pianista João Carlos Martins, o caricaturista Miécio Caffé, a escritora Carolina Maria de Jesus, o crítico Jean-Claude Bernardet, o cineasta argentino Raymundo Glazer, o matemático Story Musgrave e a dupla Eisenstein-Meyerhold.



Frederick Wiseman, João Batista de Andrade, Carlos Nader, Mario Carneiro, Ricardo Miranda e Carlos Adriano estão entre os cineastas de peso que mostram seus novos filmes no festival. O comparecimento maciço do público nos dois primeiros dias, concomitantemente ao lançamento, nos cinemas, do oscarizado Sob a Névoa da Guerra, de Errol Morris, e o sucesso do Glauber de Silvio Tendler, indica que o documentário está no ponto para se transformar em uma nova paixão nacional.



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