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45 ANOS DE NOUVELLE VAGUE

31.05.2004
Por L.G Leão
45 ANOS DE NOUVELLE VAGUE

Em 1959, com a repercussão do grande prêmio de direção obtido no Festival Internacional de Cannes por François Truffaut (1932-84), crítico da prestigiosa revista Cahiers du Cinéma, com Os Incompreendidos (Les Quatre Cents Coups), nascia oficialmente a Nouvelle Vague. A data acima talvez não esteja tão precisa, pelo menos para analistas e historiadores como o francês Michel Ciment, o inglês Peter Graham, os americanos Don Allen e Andrew Sarris ou o brasileiro Maurício Gomes Leite (figura de proa do CEC de Belo Horizonte, diretor de Vida Provisória, de 1968, falecido há alguns anos em Paris). Preferem eles situar esse nascimento em 1954, ou seja, há 50 anos, quando Truffaut publicou o manifesto sobre a chamada "politique des auteurs", e associá-lo ora à exibição do curta-metragem Une Visite (1954) e aos médias-metragens Os Pivetes (Les Mistons) e Histoire d´Eau, ambos de 1958, do mesmo Truffaut, ora aos artigos escritos à época por um grupo de críticos dos Cahiers.



Nesse grupo pontificava Truffaut, um "enfant terrible", ex-adolescente rebelde, redator desassombrado, líder natural, levado à revista e também ao semanário Arts por André Bazin, doutor em Literatura e Direito pela Sorbonne e seu protetor, "padrinho" capaz de compreender os arroubos da mocidade e de ajudá-lo. Bazin via no incompreendido François rasgos de inteligência, aguda percepção e,principalmente, afinidades com a arte do cinema. O manifesto, aliás, fora redigido quando Truffaut tinha 22 anos, daí alguns equívocos e exageros típicos de uma juventude inquieta, perplexa e em busca de seus próprios caminhos para afirmar-se. Mas as idéias ali reunidas tinham lógica e atualidade.



GÊNESE E IMPORTÂNCIA DA NOUVELLE VAGUE



Coube à imprensa francesa descrever a Nouvelle Vague como aquele pequeno grupo de amantes de cinema capaz de realizar seus primeiros longas-metragens com uma explosão de energia criativa a partir de 1958 e até mais ou menos 1964. Diferente do Neo-Realismo Italiano – do qual, como sabemos, Rossellini (de quem FT foi assistente), De Santis, Visconti, De Sica, Lattuada e Germi foram seus maiores expoentes, - a Nouvelle Vague não foi, como muitos pensam, um movimento estética ou estilisticamente coeso, mas um aglomerado de cinéfilos heterogêneos reunidos em torno de cineclubes franceses ou de uma "ideologia cinemática". Formavam eles um núcleo de críticos e estudiosos, com muita sensibilidade para a realização de filmes e levados a esse interesse por circunstâncias histórico-econômicas e psicossociais.

Partilhavam, sem dúvida, algumas idéias comuns e tinham a vantagem de escrever numa conceituada revista. As raízes da Nouvelle Vague se encontram nos textos escritos por esses jovens entusiastas, os quais, nos anos 50, tiveram seu aprendizado teórico sob orientação de Bazin, autor de livros e co-fundador, com Jacques-Doniol Valcroze, dos Cahiers. Os líderes, considerados os "fundadores" da NV, eram Truffaut, Jean-Luc Godard, Claude Chabrol, Eric Rohmer e Jacques Rivette, aos quais logo se juntaram Pierre Kast, Chris Marker, Edouard Molinaro, Claude Miller, todos naturalmente influenciados por Bazin e pelo trabalho pioneiro de Alexandre Astruc (1923), o vanguardista da "caméra-stylo" (câmara-pena).



Astruc fora autor de um manifesto intitulado "O Berço da Nova Avant-Garde: A ‘caméra-stylo´” , vindo a lume em 1948. O texto parece tímido ou óbvio, na opinião de Peter Graham) mas à época, no contexto de toda a crítica atual, foi um grito sincero por uma revolução no cinema. Para Astruc, em relação ao chamado cinema puro dos anos 20 e o teatro filmado, há muito espaço para uma maneira diferente e individual de fazer cinema. O conceito de "camêra-stylo" para seu autor é aquele segundo o qual "o cinema gradualmente se livrará da tirania do visual sobre tudo, da imagem para seu próprio bem, das demandas imediatas e concretas da narrativa para tornar-se um meio de escrever tão sutil e flexível como a linguagem escrita".



Os "Nouvelle Vagueurs" absorveram muitas das idéias de Bazin e Astruc, como frisamos anteriormente, mas as reformularam em parte para ajustá-las a sua cosmovisão e à importância das formas motovisuais. Tudo isso levou à rejeição do "cinema do papai", do formato fora-de-moda e desgastado do cinema suave, mas impessoal e contrário a um estilo livre e mais pessoal de filmar, independente das restrições dos padrões estabelecidos pela indústria cinematográfica. Do lado prático, a NV ganhou ímpeto com empreendimentos semi-independentes, tidos como seus precursores, a saber Le Silence de la Mer, de Jean-Pierre Melville (1949), Le Rideau Cramoisi, de Astruc (1953) e La Pointe Courte, de Agnés Varda (1955), todos aliás bem recebidos pela critica.



A ruptura da NV com a "mainstream" do cinema francês foi parcialmente facilitada, segundo afirma Ephraim Katz, pelo êxito bilhetérico de E Deus Criou a Mulher (Et Dieu Créa Ia Femme) (1956), dirigido pelo jovem e então desconhecido Roger Vadim. O filme, escusado dizê-lo, não era de modo algum revolucionário e seu sucesso comercial se devia principalmente ao seu conteúdo erótico, ao misto de inocência e sensualidade revelado por Brigitte Bardot. Mas Vadim convenceu os produtores da viabilidade comercial dos filmes das gerações emergentes feitos por realizadores com pontos-de-vista novos sobre como fazer cinema. Irônico é o fato de um filme com BB ter, de certa forma, aberto o caminho para as produções da NV.



Quebradas as influências e o poder restritivo dos produtores, as comportas se abriram para a rápida onda de filmes dos "novos". Chabrol foi o primeiro do círculo intimo da NV a derrubar portas fechadas com Nas Garras do Vício (Le Beau Serge) (1958), filme parcialmente patrocinado por ele, com dinheiro herdado da mulher. Truffaut seguiu-o com Os Incompreendidos (1959), visto por muitos exegetas e teóricos como o filme-marco da NV, êxito artístico e bilhetérico surpreendente. Custou ao todo 37 milhões de francos mas foi vendido nos EUA por 100 mil dólares, i.e., 50 milhões de francos, e a diferença a favor deve ter ajudado Truffaut no reforço econômico de sua produtora, a "Films du Carrosse". Le Signe de Lion (1959) foi o filme seguinte, dirigido por Eric Rohmer, e Acossado (A Bout de Souffle), roteirizado por Truffaut com "mise-en-soène" de Godard, tornou-se outro marco da NV (1960).



Vários nomes iriam surgindo depois, muitos deles já cineastas e amigos do grupo original, como Alain Resnais, e outros nem sempre levados a sério por alguns "vagueurs", como Louis Malle, em realidade um cineasta de primeira linha, tendo estabelecido suas credenciais com filmes polêmicos ou inteligentes como Les Amants e Ascensor para o Cadafalso (Ascenseur pour L´Echafaud), ambos de 1958, ou de forte impacto como o irretocável Trinta Anos Esta Noite (Le Feu Follet) (1963), considerado um dos melhores filmes daquele ano por críticos de vários paises. Muito antes, em 1956, Malle já surpreendera com O Mundo Silencioso (Le Monde du Silence), antológico documentário sobre o microcosmo submarino. Quanto a Resnais, também documentarista excepcional, veio a fazer dois filmes-revolução: Hiroshima Mon Amour (1959) e Ano Passado em Marienbad (1961), este tido por Jacques Brunius, crítico da Sight & Sound, como o melhor filme já feito até então e para ele insuperável.



Autores como Jean Douchet dividem a NV em duas gerações: (1) realizadores nascidos entre 1918 e 1925, os intelectuais/cineastas como Valcroze, Kast, Astruc, Rohmer, Resnais, Marker, entre outros; (2) os nascidos entre 1928 e 1932, como Rivette, Godard, Chabrol, Truffaut, Rozier, Demy e outros. Douchet cometeu o equívoco de incluir Bazin no primeiro grupo quando este jamais fez um filme, outra era sua atuação como o homem-chave dos "Cahiers", como já se disse tantas vezes.



Ocioso seria citar mais nomes, mas na histórica foto de conjunto podem ser vistos 16 cineastas: da esquerda para a direita, na primeira fila, fácil é reconhecer Truffaut ao lado de Vogel, Felix, Séchan; na segunda, Molinaro, Baratier e Valére; na terceira, Reichenbach, Hossein, Pollet, Vadim e Camus; na última, Chabrol, Valcroze, Godard (de óculos pretos) e Rozier. Não aparecem Rohmer e Kast (dois fundadores), tampouco Resnais e Malle, por motivos já mencionados. Vadim está na foto, mas nunca foi inteiramente aceito na "igreja” dos críticos dos "Cahiers", mas recebeu elogios de Truffaut por ter dirigido Brigite Bardot, sua jovem mulher, “fazendo-a reproduzir diante da câmara os gestos de todos dias, gestos anódinos, como brincar com a sandália, ou menos anódinos, como fazer amor em pleno dia, mas todos igualmente reais".



Quase ao mesmo tempo do surgimento da Nouvelle Vague (seja-nos permitido breve parêntese), verificou-se na Inglaterra um movimento liderado por jovens diretores, os quais, nos fins dos anos 50, desafiavam por igual a corrente dominante do "establishment" inglês, com manifestos impressos e uma série de filmes parcialmente patrocinados pelo British Film Institute e exibidos de 1956 a 1959. Os líderes do movimento conhecido como “Free Cinema” foram Lindsay Anderson, Karel Reizs e Tony Richardson, seguidos depois pelo veterano Jack Clayton, de Almas em Leilão (Room at the Top) (1958). Também se destacam Ainda Resta uma Esperança (A Kind of Loving) (1962) e Billy Liar (1963), ambos de John Schlesinger, e This Sporting Life (1963), de Anderson.



O "Free Cinema" inglês, surgido da mesma atmosfera política inspiradora do começo da Nova Esquerda, conforme assinalam F. Klein & R.D. Nolen, atacava o cinema comercial britânico por não compreender as novas demandas do público e por não mostrar-lhes temas e enredos relevantes para suas próprias vidas. Em suma, o FC advogava "o uso expressivo e pessoal do veículo cinematográfico". O manifesto publicado resumiria assim os objetivos do FC: "Implícito em nossa atitude está uma crença na liberdade, na importância das pessoas e na significação do dia-a-dia". De alguma forma, um eco às palavras do manifesto de Truffaut.



O termo Nouvelle Vague, assim como "Free Cinema", é necessariamente impreciso, não corresponde a um novo "ismo", não se trata de uma escola, de uma tendência, de um movimento ou manifesto (como tem sido denominado por uma ou outra destas palavras), mas antes, como bem acentua Peter Graham (v.bibliografia), "de uma revolução na produção, na atitude do público e, em particular, dos produtores". Essa transição em bloco e dentro do espaço de um ano, de um grupo de cinéfilos vindos da atividade crítica - ou, se quisermos, da(s) teoria(s) do cinema, pois seus ensaios eram sempre de caráter teórico, - e saindo para a criação cinematográfica, ainda conforme o pensamento de Graham, "não teve paralelo na história do cinema e talvez de todas as artes”.



A denominação Nouvelle Vague (uma "catchphrase” ou frase de efeito, como os ingleses se referem a certas expressões logo assimiladas e tornadas populares) nasceu de uma pesquisa publicada na "L’Express" pela jornalista Françoise Giraud sobre a juventude francesa em geral e sobre como os adolescentes viam os novos tempos. A locução ganhou as ruas e foi usada na mesma revista para referir-se à juventude mostrada no filme do veterano Marcel Carné intitulado Os Trapaceiros (Les Tricheurs) (1958), “filme extraordinariamente vulgar” para o às vezes intolerante Robert Benayon, crítico de Positif e rival de analistas dos Cahiers. Carné, cineasta da velha escola do cinema francês, iniciada por Abel Gance, Marcel L’Erbier e Jacques Feyder, era infenso a trabalhar em locação, quando podia criar seus exteriores em estúdios, e veio, justificadamente ou não, a simbolizar a "estagnação" do cinema tradicional aos olhos da jovem crítica dos Cahiers e de outros comunicadores para quem Carné estava ultrapassado, apesar de obras meritórias nos anos 30-40, como Cais das Sombras (Quai des Brumes), Os Visitantes da Noite (Les Visiteurs du Sair) e o supervalorizado Boulevard do Crime (Les Enfants du Paradis).



A “POLITIQUE DES AUTEURS”



Citamos de passagem a "politique des auteurs" (ou "auteur theory", como a cunhou o crítico Andrew Sarris), termo francês aplicado a certos diretores cinematográficos chamados de "verdadeiros autores” do filme e a principal força criadora de uma obra levada ao "écran". Essa "politique des auteurs", como não o desconhecem os cultores da 7ª Arte, surgiu em princípios dos anos 50 pelas mãos de Bazin, popularizada depois por seus discípulos Truffaut e Godard. Nos EUA, a causa foi assumida por Sarris e Manny Faber, os quais concordavam com as idéias de Bazin e seguidores. No entanto, ele mesmo escreveu: "Não vejo o papel do ´auteur´ no cinema da mesma forma como o vêem Truffaut ou Rohmer, por exemplo, mas isso não me impede de acreditar, numa certa extensão, no conceito de ´auteur´ e muitas vezes partilho as opiniões deles, embora nem sempre o faça com paixão".



Essa revolução da "politique des auteurs" repercutiu forte no modo como os filmes de Hollywood eram vistos e compreendidos e ajudou a elevar o papel do diretor cinematográfico junto ao público. Ao mesmo tempo, a Nouvelle Vague abriu os olhos dos americanos para o trabalho de realizadores hollywoodianos veteranos ou de maior experiência, pois de outra forma eles poderiam ser negligenciados ou esquecidos.

Cineastas de gênio e diretores "comerciais", voltados para o entretenimento ou "divertissement”, e cujos filmes revelavam artesanato competente ou boa carpintaria (e não menos como arte), subitamente viam seus trabalhos estudados em universidades dos EUA: Orson Welles, John Ford, William A. Wellman, Samuel Fuller, Anthony Mann, Nicholas Ray, Joseph H. Lewis, Don Siegel, Raoul Walsh, Mervyn LeRoy, Howard Hawks (e gente mais nova como Robert Aldrich e Stanley Kubrick), para citarmos apenas uns poucos. Com exceção do impacto revolucionário de Welles, aqueles diretores nunca foram levados a sério pelo "establishment" crítico até o advento da teoria do autor defendida pelos franceses, Bazin à frente.



A "auteur theory" é, portanto, aquela na qual o diretor é o "autor" de um filme. O raciocínio conducente a essa conclusão, segundo Klein & Nolen, é aquele segundo o qual o bom filme é uma obra de arte e como tal está estampada na personalidade do seu criador. Então é o diretor, acima de qualquer outro, quem dá ao filme a sua qualidade distintiva (veja-se o caso clássico de Welles em Cidadão Kane, Othello ou O Processo, por exemplo). É claro, quando o "regisseur" for um mero contratado, com pouco poder decisório, sem maior acesso à montagem final, dependente de produtores vesgos ou só de olhos nas bilheterias, então temos um simples "guarda de trânsito" a gerir duas horas de imagens em movimento de roteiros convencionais e falas supérfluas ou intermináveis.



O debate sobre a "autoria" artística de um filme - um veículo dependente da colaboração e criatividade de muitos artistas e técnicos (diretor de fotografia, desenhistas de produção, roteiristas, atores e, a espaços, de produtores conhecedores do metiê, como o personagem vivido por Kirk Douglas em Assim Estava Escrito (The Bad and the Beautiful), - remonta aos primórdios da(s) teoria(s) do cinema. Debates sérios estreitaram o campo para o diretor e o autor do "screenplay". Recorde-se a posição de Villegas López para quem o êxito do filme depende antes da simbiose entre os dois, tal como ocorreu com Resnais e Marguerite Duras em Hiroshima ou entre Resnais e Robbe-Grillet em Marienbad, entre Godard e Truffaut em Acossado ou entre Truffaut e Jean Grualt em La Chambre Verte ou entre Kubrick e Diane Johnson em O Iluminado, para citar apenas alguns títulos exemplares. Melhor é quando próprio diretor é o autor do "screenplay", caso de David Mamet em Sucesso a Qualquer Preço (Glengarry Glen Ross), O Jogo das Emoções (House of Games) e O Assalto (Heist), o primeiro dos quais com muito cinema dentro do espaço limitado de uma sala de trabalho.



Há ainda o argumento de alguns críticos segundo os quais o "script" poderia existir independentemente, porquanto não poderia haver filme sem roteiro e "découpage". Então o próprio roteirista é quem dirigiria o filme? Outros demonstram por a + b como o mesmo "scénario" dirigido por dois cineastas resultaria em dois filmes diferentes... O debate se tornou mais apropriado para Hollywood, onde o controle dos estúdios (e das discussões entre o diretor e vários produtores, das quais se queixava Don Siegel, ao lembrar-se de tempos bons, quando só trocava idéias com um único produtor) travava freqüentemente a expressão individual, e menos para o cinema europeu. Lá os "metteurs-en-scène" têm controle amplo sobre a produção. Quando a questão explodiu nas páginas dos "Cahiers" em 1954, ela foi usada para solapar as filosofias tradicionais do cinema francês. Filmes hollywoodianos despretensiosos e cineastas americanos esquecidos foram ressuscitados e um panteão de "auteurs" criado por realizadores cuja visão ou personalidade dominou seus filmes através de um tema ou estilo mais ou menos consistente.



Mas a teoria falha, de certa forma, no tocante a nomes como Michael Curtiz, prolífico profissional contratado pela WB, ou Mervyn LeRoy, da MGM, criadores de bons filmes, porém sem evidenciarem forte "visão pessoal". Desde 1970 as abordagens críticas, tais como o estruturalismo, a semiótica (ou semiologia), o darwinismo, o freudianismo e o marxismo tiraram a ênfase no "autor" e a puseram em favor da análise do "texto" do filme ou do seu "específico fílmico", expressão tão em moda naqueles tempos. Ainda assim, a teoria do autor tem tido uma influência duradoura. Tanto nos veículos eruditos como nos populares, o diretor cinematográfico é considerado agora como a coisa mais próxima do criador de um filme, particularmente quando há o diretor-produtor ou se discutem películas de elevado valor artístico.



Desde o artigo de Truffaut, "Uma Certa Tendência do Cinema Francês", de 1954, várias escolas de críticos defensores dos "auteurs" se desenvolveram. Umas salientavam a consistência do tema (ou tudo quanto se pretendia afirmar sobre o assunto, daí a distinção entre "subject" e "theme") e outras estavam mais preocupadas com o estilo formal do realizador, com a eficácia de sua "mise-en-scène".



Críticos daqui e dali, conforme se lê nas fontes citadas mais adiante, apontaram fraquezas na teoria do autor, pelo menos no caso americano, mais notavelmente na desatenção quanto à natureza colaborativa de um filme. No ponto mais extremado desses analistas, a teoria do autor negligencia a valiosa colaboração dos atores ("Sem eles e a credibilidade de sua representação nada podemos fazer", saudemos Welles de passagem). De fato, como se poderia fazer cinema sem os intérpretes, sem o Jack Nicholson de O Iluminado, o garoto prodígio Danny Lloyd e Shelley Duval desse mesmo filme, por exemplo? Como conceber Othello sem Welles, sem Suzanne Clotier (Desdêmona) e Michael MacLiammoir (Iago)? Exemplos sem conta poderiam ser acrescentados.



Seria possível fazer um filme sem fotógrafos, desenhistas de produção, montadores, continuístas? Sem equipamento de qualidade, sem aparelhos de gravação de som direto, sem os homens do laboratório? Não, evidentemente. Sem a fotografia em p & b de Douglas Slocombe, em Freud, Além da Alma, o filme teria fracassado, afirmou John Huston. “Dependi muito de Lewis John Carlino na adaptação e de Wong Howe na fotografia para o êxito artístico de O Segundo Rosto”, frisou John Frankenheimer. Sem Kubrick não teríamos Spartacus nem 2001, sem Richard Brooks não veríamos À Procura de Mr. Goodbar, sem Joseph Losey não haveria O Mensageiro (The Go-Between) nem O Criado nem Citizen Klein, sem Louis Malle não apreciaríamos Pretty Baby ou Atlantic City, sem Polanski não conheceríamos O Pianista. Sem o labor do maestro a orquestra não funciona e a música se perde ...



O APÓS-NOUVELLE VAGUE



A Nouvelle Vague chegou ao seu ápice em 1962, quando os Cahiers devotaram todo um número da revista sobre ela. Mas como tudo se desgasta diante desse esmeril, o tempo a fugir célere, o impacto vocoverbovisual da NV (a aglutinação é do saudoso José Lino Grunewald) começou a murchar. Cada um dos seus realizadores principais tomou outros rumos, exceto o crescentemente militante e prolífico Godard, o qual prosseguiu com sua carreira individual comercial bem sucedida. No fim dos anos 60, a segunda e a terceira ondas emergiram, mas como débil reação à complacência dentro do "establishment” cinematográfico. Pouco ajudou a década de 70, quando a força da NV se dissolveu tanto como ímpeto para novas idéias como poder revitalizador nas bilheterias.



De qualquer forma, o legado deixado pela NV, ou seja, o conjunto de suas realizações e suas idéias renovadoras, influenciou inegavelmente as gerações de cineastas de toda parte, como o Cinema Novo no Brasil e o "Cine Liberación" na Argentina. A marca da passagem da NV dificilmente será esquecida nestes cem anos de cinema. A extrema diversidade do cinema francês contemporâneo, como escreveu Michel Ciment, torna difícil avaliar com precisão a influência da NV. De alguma forma ela se diluiu, mas sua presença pode ser sentida em muitos lugares. “A NV permaneceu como referencial para os novos cineastas, os quais oferecem todo ano quatro ou cinco bons filmes de estréia. Neles a invenção formal testemunha uma preocupação com o cinema como forma de expressão. O interesse na técnica é certamente maior hoje em dia em relação há dez ou quinze anos, porque eles têm mais treinamento profissional, sua iluminação e o trabalho de câmara são tratados com uma flexibilidade impossível de ser concebida sem a ruptura de caminhos abertos por ‘cinernatographers’ como Henri Decae e Raoul Coutard. A moda da filmagem ‘on location’ (originariamente mais uma questão econômica e menos estética da NV) foi sucedida por abordagem mais heterodoxa em relação ao problema, alguns novos diretores como Jean-Jacques Beinex, Claude Miller, Yves Boisset, Jean-Claude Missiaen têm favorecido a filmagem em estúdios”.



O atual cinema francês, conclui Ciment, parece haver encontrado um compromisso entre a inovação e a tradição, a auto-expressão e as exigências do público cada vez mais interessado ou mais ávido pelo bom cinema. Provavelmente é um sinal da maturidade após alguns excessos e equívocos dos anos 60. Realizadores mais amadurecidos da NV permanecem na ativa, consistentes com eles mesmos e mais ousados em relação aos seus colegas mais jovens. Eles nos ficam lembrando da década por eles anunciada e devido à qual os cineastas de toda parte rejeitaram a necessidade de conformar-se quando os filmes eram "jovens" mas não "infantis".



No livro sobre a História do Cinema Francês (1895-1965), pode-se ler esta afirmação relevante: "Muitas das obras da NV indiscutivelmente permanecerão e a experiência de 70 anos de cinema francês impõe a certeza segundo a qual a NV terá a glória e a responsabilidade de uma tradição iniciada com os irmãos Lumière, pois esta não se perderá enquanto não desaparecer a receptividade do homem à poesia, ao humor, à pungência de imagens feitas à semelhança do próprio homem, as quais vivem sobre a tela para o seu prazer e libertação”.



Estas as considerações julgadas de interesse sobre a NV, merecedora, pela sua importância, de um registro mais detalhado e mais eloqüente. Lembremos apenas às novas gerações deste século XXI, em tempo fértil de impacto visual e do domínio dos "mass media", o fato inconteste: o cinema de hoje (de modo geral dominado por interesses comerciais, técnicas de videoclipe, efeitos digitais, milhares de cortes, câmaras trepidantes e excesso de primeiros planos sem justificativa formal) tem dívida impagável com os cineastas de outras décadas; no caso da NV, também com aqueles idealistas de fins dos anos 50 e começo dos 60, à frente dos quais sempre esteve a figura ímpar de François Truffaut.



Pode parecer inusitado terminar estas notas com uma afirmação de Madonna em recente entrevista: "Todos os grandes filmes já foram feitos, como afirmou Bogdanovich, não há mais nada de novo. Hoje os cineastas dependem dos produtores ávidos, em sua grande maioria, pelos lucros, e dos efeitos especiais gerados por computadores. Os filmes, quando ´novos´, são fraquíssimos ou descartáveis; quando bons, são refilmagens sempre inferiores àqueles dos quais são papel-carbono”

Ficamos por aqui.



OS DEZ MELHORES DA NOUVELLE VAGUE



A relação a seguir reúne os dez melhores filmes da Nouvelle Vague, selecionados ao longo do tempo por autores, analistas e críticos de revistas do porte de Sight & Sound, American Film, Nouvelle Revue Française, Image et Son e naturalmente do próprio Cahiers du Cinema. Foi possível colher os nomes de alguns dos votantes: Michel Marie, Antoine de Baecque, Raymond Borde, André S. Labarthe, Philippe Pilard, Peter Graham, Michel Ciment, Roman Gubern, Mauricio Gomes Leite. Dado o caráter subjetivo de qualquer seleção, mesmo após as chamadas "revisões", há sempre divergências, como, por ex., Michel Marie (v. fontes bibliográficas), o qual só incluiu sete títulos, enquanto A. de Baecque destaca apenas quatro filmes e chega a incluir Hiroshima Mon Amour, de Alain Resnais, mas este pouco tem a ver com a Nouvelle Vague, exceto o fato de ser um intelectual e documentarista de escol, com ligações de amizade com Truffaut e outros e afinidades com algumas idéias defendidas pelos integrantes da NV, definida aliás pelo seu líder (FT) como "apenas um esforço no sentido de se largar o estúdio e se recuperar a realidade das aparências".



Eis os filmes, todos eles dirigidos e roteirizados ou co-roteirizados pelo núcleo de cineastas da NV, contemplando-se apenas um pioneiro (Pierre Kast), naturalmente deixando de fora Alexandre Astruc e Agnés Varda:



"Os Incompreendidos" (Les 400 Coups), de François Truffaut (1959);

"Acossado" (A Bout de Souffle) ,de Jean-Luc Godard (1960);

"Paris Nos Pertence" (Paris Nous Appartient) ,de Jacques Rivette (1959);

"Uma Mulher para Dois" (Jules et Jim), de François Truffaut (1961);

"Nas Garras do Vicio" (Le Beau Serge), de Claude Chabrol (1959);

"Amores Fracassados" (Le Bel Âge), de Pierre Kast (1958);

"Os Primos" (Les Cousins), de Claude Chabrol (1959);

"Amor Livre" (L´Eau à Ia Bouche), de Jean-Luc Godard (1960);

"Uma Mulher É uma Mulher" (Une Femme Est une Femme), de Jean-Luc Godard (1961);

“O Signo do Leão” (Le Signe du Lion), de Erich Rohmer (Jean-Marie Maurice Scherer) (1961).




OS PRINCÍPIOS DA NOUVELLE VAGUE



Os denominados princípios da "escola artística" da Nouvelle Vague são resumidas desta forma pelo livro-chave de Michel Marie, com pequenos acréscimos de Truffaut:



"O Corpo Doutrinário" - Os fundamentos críticos da NV se apóiam na "politique des auteurs" primeiramente promulgada em artigo de Truffaut, então critico dos Cahiers de Cinema, no nº 31, em 1954.



"O Programa Estético" - Decorre do primeiro princípio, ou seja, com filmes pessoais, escritos e concebidos por seus autores.



"A Estratégia" - É a do baixo orçamento e da autoprodução, economizando em setores onde estão costumeiramente os itens mais caros: vedetes e estúdios.



"O Manifesto" - É o texto de FT no qual seu autor investe contra o tradicionalismo e a estagnação do cinema francês.



"O Suporte Intelectual" - Naturalmente o dos Cahiers du Cinéma.



“A Estratégia Promocional” – Concebida e posta em prática por FT, notadamente nas páginas do semanário Arts, no qual sua ação decidida o transforma em líder da NV.



"O Teórico" - É André Bazin (também o ideólogo da NV, apesar de divergir politicamente de muitos dos seus integrantes), autor das teorias da ontologia e do realismo cinematográfico. O ponto-de-vista dominante nos Cahiers será o de Bazin, exposto por Godard em O Pequeno Soldado (Le Petit Soldat), de 1960/63: "A fotografia é a verdade; o cinema, a verdade 24 vezes por segundo".



"Os Adversários" - Os críticos da NV e todos quantos, em revistas e jornais, resistem às mudanças propostas.





CARACTERÍSTICAS RECORRENTES DOS FILMES DA NV



Algumas características recorrentes dos filmes da Nouvelle Vague foram resumidas esquematicamente pelo citado Michel Marie. Ei-las: (a) o autor-diretor; (b) a improvisação responsável; (c) o cenário natural ("Recuso-me, a não ser em situações excepcionais, a filmar em estúdio. Não é uma questão de princípio, mas de economia e estética" - FT) ; (d) a equipe "leve", ou seja, não há necessidade de tantos assistentes, operadores e pessoal de apoio; (e) o som direto; (f) a película de alta sensibilidade; (g) o equipamento de filmagem da melhor qualidade; e (h) a utilização freqüente de atores não-profissionais. (Ironicamente, o menino inexperiente Jean-Pierre Léaud, utilizado por FT em Os Incompreendidos, logo se transformaria num dos atores profissionais preferidos do cinema francês, participando até mesmo,em 1972,de O Ultimo Tango em Paris de Bernardo Bertolucci, ao lado de Marlon Brando e Maria Schneider . Léaud atuou ainda em vários filmes de FT).



FONTES BIBLIOGRÁFICAS



Quatro das obras citadas a seguir, nestas incluídas as entrevistas de Truffaut reunidas por Anne Gillian, bem como a coletânea de números atrasados dos Cahiers e a revista American Film, são publicações indispensáveis nas estantes dos cinéfilos interessados em conhecer tudo (ou quase tudo) sobre a Nouvelle Vague. Os livros podem ser adquiridos na Livraria Francesa, de São Paulo (tel. 011/231-4555). Ei-las:



- "La Nouvelle Vague" - Une École Artistique", de Michel Marie, Ed. Nathan,128 págs., um dos melhores trabalhos sobre esse núcleo de novos cineastas e o seu legado (1984).



- "La Nouvelle Vague - Portrait d’une Jeunesse", de Antoine de Baecque, Ed. Flamarion, 160 págs. Gênese, desenvolvimento, realizações e saldo positivo de uma geração de Jovens (1983).



- "Nouvelle Vague", de Jean Douchet, Ed. Hazan, 360 págs. - Embora encomendado pela Cinemateca Francesa (edição de luxo, rica de material iconográfico) e escrito por alguém credenciado para historiar um movimento do qual foi participante desde a primeira hora, quer como crítico e cineasta, é um livro decepcionante e mal organizado, contendo uma série de temas desconexos e digressões irrelevantes e prolixas para o tema abordado. Para Lúcia Nagib, jornalista atuante em Paris, há confusões graves numa obra caríssima e pouco instrutiva, além de erros de avaliação quanto à permanência do legado da NV num mundo em rápida transformação (1986).



- "The New Wave", de Peter Graham, publicado pela Secker & Warburg, com análises e seleção de textos sobre pontos críticos (1968).



- "La Nouvelle Vague par Les Cahiers du Cinéma" (1957-64). 320 págs. Raízes, nascimento e conquistas, ensejando ao leitor visão em leque e profundidade da NV e dos seus grandes homens de cinema (1957-64).



- “O Cinema Segundo François Truffaut” (textos reunidos por Anne Gillain) ed. Nova Fronteira. Visão panorâmica da NV e do pensamento do seu líder, "cujos filmes",de acordo com Gillain, "o perpetuam como autoridade incontestável em matéria de cinema" (1990).



- "Les Enfants Terribles", de Michel Ciment, longo ensaio publicado na revista "American Film", durante o qual mostra como ainda há pequenas ondas deixadas pela “New Wave". Para o autor, "Truffaut trouxe à tona sua faceta de crítico polêmico e iconoclasta, mas essa faceta contrasta com o cineasta equilibrado, inventivo e essencialmente lírico" (1984)





L.G. MIRANDA LEÃO é Mestre em Literatura Americana, Crítico de Cinema (Caderno Cultura-DN) e um dos pilares do Clube de Cinema do Ceará.

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