As curadoras Jeanne Dosse e Tatiana Devos Gentile trouxeram de fato algo novo ao circuito de cinema carioca com a mostra Cine Doc Fr – O Cinema Documentário Francês Contemporâneo, recém-finalizada na CAIXA Cultural/RJ. O destaque especial foi a minirretrospectiva do documentarista Denis Gheerbrant, um completo desconhecido para cinéfilos, críticos e professores brasileiros. O cinema de Denis é solitário: somente ele com uma câmera e um microfone entrevistando pessoas em diferentes locações apenas unidas por um tema previamente definido. Ao mesmo tempo em que filma sem qualquer equipe, ele pratica um cinema de encontro, de intimidade, e consegue extrair belos depoimentos sobre a condição humana. A câmera, às vezes, parece estar ali sem ser notada por ninguém, como se ele posicionasse de maneira privilegiada o espectador. Na entrevista exclusiva, Gheerbrant fala sobre seus processos de filmagem e deixa uma mensagem para jovens realizadores.
Qual é a sua primeira lembrança de cinema?
Denis Gheerbrant: Eu não me lembro do nome em inglês, mas era uma produção do Walt Disney intitulada “Mundo Selvagem”, ou algo semelhante a isso. O que me recordo bem era que havia uma briga entre uma cobra e um mangusto. Fiquei completamente aterrorizado assistindo aquilo. Minha mãe ficou preocupada, pois foi ela que me levou ao cinema (risos). Logo em seguida, minha mãe, não sei como, me levou para assistir “Napoleão” (1927), de Abel Gance. Outro filme de terror para uma criança (risos). Fiz logo cedo uma espécie de cine psicanálise. Não penso que tirei alguma referência dessa cena da luta entre animais, mas quem sabe?
Quando começou seu interesse por documentário?
Na realidade, eu estava realmente envolvido com fotografia. Isso quando era jovem, entre 14 e 15 anos de idade, decidi entrar numa escola de cinema, o IDHEC. Nessa época não estava claro para mim que queria fazer documentário, mas o mais importante era trabalhar com cinema. Quando vimos filmes do Cassavetes, como “Shadows” (1959) e “Faces” (1968), fiquei muito impressionado, ainda que não entendesse nada do que eles estivessem falando, porém era tudo tão estranho. Era a vida e tão forte na nossa frente. Então, eu vi “Crônica de um Verão” (1961), de Jean Rouch e Edgar Morin, e percebi que era algo especial filmar o processo de filmagem. Era fascinante ver um work in progress. Acho que não foi algo tão forte para meus companheiros de classe, mas para mim foi um divisor de águas e pensei: ‘eu quero fazer isso’. Hoje você encontra muita informação e material sobre documentários, entretanto quando comecei não havia esse acesso tão fácil e tantos nomes consolidados. Havia Jean Rouch, os diretores do Cinema Direto, e como estávamos no pós-maio de 68 a ideia de obras políticas estavam impregnadas nos cineastas. Levou mais de uma década para formarem teorias e entenderem aquele momento do documentário. Houve uma reflexão coletiva. Quando comecei a exercer a profissão, eu era diretor de fotografia e trabalhei em alguns filmes de baixo orçamento. Também realizava fotos profissionais, mas não relacionado à imprensa diária. Logo quando saí da escola de cinema, comprei uma câmera Leica e ficava tirando fotos nas ruas e no metrô. E essa foi uma das minhas lições de cinema. Tive fotos publicadas em revistas e jornais, como o Le Monde. Dessa forma, eu consegui levantar uma grana de uma organização governamental e pude gastar da maneira que quisesse. Então, em 1978, eu pude fazer o meu primeiro filme, “Spring from the Public Garden”: peguei sobras de película da televisão e assim ter tempo para rodar. Era sobre jovens em um distrito da França no último ano colegial: repleto de músicas e drogas. Algo como uma geração Woodstock formada por imigrantes. Foi muito difícil de ser exibido na TV, em relação a direitos, porque tem uma sequência na qual duas garotas escutam a música “Hotel California”, do Eagles, inteira.
O quanto o trabalho como fotógrafo contribuiu para o seu cinema?
A conexão entre o trabalho de fotógrafo e cineasta é bem simples: eu costumava fazer fotos de pessoas à distância. Mas conversava com eles e tentava entender o que era importante para cada um. De certa forma, fazer filmes é colocar palavras ao lado de imagens. Claro que em parte não é só isso. É uma mistura entre você e o outro, com a paisagem e a vida. É uma conexão intensa: como você se conecta com os outros através das palavras. A paisagem é uma necessidade orgânica para fazer ressoar. É como a trilha sonora de um filme. A ideia da música num filme é fazer com que seu sentimento e suas emoções se aflorem. A paisagem cria uma base para o espectador, uma passagem entre os capítulos, então passamos para a história seguinte. No meu filme “A Vida é Imensa e Cheia de Perigos” (1995), há uma forma de lidar com o tempo com planos de janelas. É uma história de um jovem menino que tem câncer. A janela torna real o tempo da doença e se eu tirasse as cenas das janelas não teria o filme, não teria a sensação do tempo passando.
Antes de começar a filmar, o senhor já delimita o tema, pensa na dramaturgia, ou isso só surge depois de ligar a câmera e ir a campo?
Eu tenho que incorporar de certa forma o mundo que vou filmar. Preciso observar e explorar; encontrar algo. Quando rodei “E a Vida” (1991) fiquei na locação por cerca de três meses. Antes de filmar eu vou aos lugares e faço conexões entre o espaço e as pessoas. E quando de fato filmo, eu normalmente misturo personagens que já conhecia com desconhecidos das ruas. É realmente algo que necessito: colocar marcas no percurso e pavimentá-lo. Assim não me sinto perdido no processo. Quando comecei a filmar “E a Vida”, adicionei uma marca ao material para saber exatamente quantos personagens já tinha. Mas o formato geral do longa ainda não estava inteiramente claro para mim. Eu tinha um acordo com um canal de televisão para entregar uma obra com três horas. Trabalhei com o Thierry Garrel, que teve a ideia de que seria melhor só fazermos apenas 1 hora, que seria o formato perfeito, de outra forma poderia enveredar para um estudo sociológico – algo que não queria de antemão. Eu não posso filmar algo ou alguém sem entender ou compreender bem o outro.
Nos seus filmes, o senhor, na maioria das vezes, filma de longe os personagens para depois se aproximar e revelá-los para o espectador. Como você escolhe os seus personagens?
Em “E a Vida” primeiro editei sozinho todos os personagens. E fiz um pequeno filme de cada um deles, com início, meio e fim. Então, esse material passou para o editor e nós juntos fizemos as conexões entre eles. Lentamente vamos tirando partes de cada personagem, mas no final nós chegamos à conclusão que a conexão entre todas as pessoas é que elas precisam da câmera para dizer aquilo que expressam. Meu trabalho está ligado na palavra, no nascimento da fala. Quando falam diante de mim, a ideia é que eles acabem descobrindo a si mesmos. Estamos sempre livres: eu, o personagem e o espectador. Algumas vezes na edição talvez a primeira imagem colocada de um personagem seja a dele à distância, mas não necessariamente foi a primeira a ser filmada.
O seu cinema é solitário à medida que a equipe é formada apenas pelo senhor e a câmera a tiracolo. É um cinema de encontro, de ouvir o outro. Essa simplicidade sempre esteve na gênese do projeto cinematográfico? Quais equipamentos utiliza?
No começo era só uma evidência: você filma as pessoas e sugere questões. Progressivamente com o tempo, você percebe outras coisas. Quando fiz o meu primeiro filme, notei que algo importante em filmar o outro está na troca de aprendizado. Quando se filma crianças ou jovens imigrantes não é para se ter pena, e soar como alguém acima daquilo. A pior coisa que pode nos acontecer é a pena. ‘OK, então por que você os filma?’. Eu filmo esses jovens porque eles vivenciaram coisas que não passei. E isso é uma via de regra com todo mundo que filmei até então. Realizo experimentos de condição humana, que não é a minha. Em “Crônica de um Verão”, um personagem questiona o diretor: ‘o que você quer com o filme?’. E recebe como resposta: ‘quero descobrir como as pessoas lidam com a vida’. Um filme é como uma bricolagem, no qual o personagem se revela em frente à câmera. Algo que acontece entre o diretor, a câmera e o outro. No início, filmava sempre com uma pequena câmera 16mm e um gravador pequeno, talvez como esse que usa na nossa entrevista, e um microfone, pois não tinha estéreo. Depois comecei a rodar com uma Betacam e podia ter dois microfones, então o som ficou bem mais interessante nos meus filmes a partir de “E a Vida”. Um microfone ficava na câmera e o outro pegando a ambiência da locação.
Há um momento bastante significativo em “Questões de Identidade” (1986) no qual o próprio entrevistado questiona o filme e fala sobre roubar a imagem através da filmagem. Qual é a questão ética/moral que se impõe ao documentarista?
Eu decidi fazer esse filme, pois existia uma questão sensível a ser abordada relacionada a uma segunda geração de imigrantes na França. Toda a mídia naquele momento, nos anos 80, estava focando nesse tema, não pelo lado social, apenas pelo político. O preconceito era grande e iniciaram os protestos; uma situação terrível para aqueles jovens. Partidos de extrema direita diziam que eles eram bandidos e perigosos, e os socialistas afirmavam que eles eram boas pessoas e que não havia problema algum nessa integração. Então, para eles era complexa essa ideia de várias identidades. Porém, de fato cada um de nós têm várias identidades, que se dividem entre a vida profissional e pessoal com gostos distintos. Você não consegue se aproximar de uma pessoa e dizer claramente: ‘você é isso!’. Quando filmo, eu tento fazer com que o outro se expresse, que consiga dizer tudo que tenha em mente, mesmo que seja contrário ao meu pensamento. Nós estamos conscientes apenas da condição humana que nos cerca, mas quando me aproximo de alguém com pensamento diferente tudo se torna mais rico. Por isso, que eu gosto do trabalho como documentarista. Primeiro deve interessar a mim, porque se não me interessar então o espectador não vai se importar também. Eu sou a referência, sou o primeiro espectador. E não sou um produtor de televisão que trabalha com mídia e marketing. Se eu ficar preocupado com algo dito ou alguém, com certeza outros estariam. Então, não filmo ou paro de rodar.
O único momento em que há um contato externo com o material filmado é através dos montadores. Como funciona esse processo e o quanto outros olhares agregam ao produto final?
Depois de terminar inteiramente a rodagem para um filme, eu edito completamente sozinho uma versão da obra. Nesse instante, alguns cineastas e pessoas do meio também assistem ao corte e emitem opiniões. O processo de edição é uma parte do próprio filme. Edição é o momento em que percebo claramente a relação entre as pessoas que filmei e eu. A obra está em algum lugar entre esses dois pontos. Essa é a excitação da montagem: descobrir o que você fez. Claro que é interessante fazer esse trabalho com outra pessoa próxima, com outro olhar sobre o material. Mas também isso pode interferir bastante com aquilo que você quer realizar. Eu tenho necessidade de ficar sozinho com meu filme quando ele está quase pronto. Busco encontrar um pequeno detalhe particular que não pode ser compartilhado com mais ninguém. É normal na profissão de realizador convidar algumas pessoas para assistirem ao corte mais próximo da versão final e com o tempo percebi que isso era algo ruim, pois cada um emite uma opinião distinta: ‘eu não gosto disso ou gosto daquilo. Corta, diminui, aumenta.’ (risos). E não entendem sobre o que se trata o filme em si. Geralmente ao fim da edição, eu percebo onde tenho incerteza. Então, sei quem pode ser bom para me dar um conselho naquela direção. Também já reuni um grupo de pessoas que não me conheciam para assistirem ao filme e opinarem como espectadores comuns ao fim da sessão. Você passa muito tempo com o filme, então de fato é necessário ao menos ouvir outra opinião.
Quais são as influências no seu trabalho como documentarista?
Uma descoberta da geração foi o trabalho de Johan van der Keuken e do outro lado Frederick Wiseman. Eles são como dois pilares do documentário entre os quais você coloca a sua filmografia. Depois têm realizadores como Robert Kramer. Claro que Jean-Luc Godard e Chris Marker, mas não vejo conexão direta com o meu trabalho. Eu gosto bem mais de literatura do que sociologia e antropologia. Cinema é uma arte do tempo, de contar histórias. A realidade às vezes lhe concede um roteiro perfeito, como uma greve, uma doença. É difícil dizer realmente o que forma um homem (risos).
Uma mensagem para jovens documentaristas?
Seria a mesma mensagem para um jovem realizador brasileiro ou francês. Quando eu comecei a filmar o cinema era muito caro, cada parte do processo era bastante custosa. Mas isso mudou, como exemplo meu filme “De Greve” (2014) custou 6 mil euros como um todo até a cópia final de projeção. Sendo cineasta você tem que ganhar a vida ao mesmo tempo que exibir os seus filmes. Para levar o mesmo filme a uma distribuição de cinema custou 20 mil euros, que é três vezes mais do que custou rodá-lo. Para um jovem realizador, ele tem que se conectar com pessoas que confia e construir uma economia para realizar os seus projetos. Ter o filme exibido num cinema é fundamental, essa experiência contribui bastante para sua carreira. Cinema é sempre uma reflexão coletiva: veja filmes, indique aos amigos e discuta em conjunto. É uma forma de seguir em frente.