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PRÊMIO NÃO É CONSOLO

25.08.2004
Por Ricardo Cota
PRÊMIO NÃO É CONSOLO

O que ocorreu no recém-encerrado Festival de Gramado é apenas o exemplo mais grosseiro de uma prática recorrente em Festivais de Cinema, seja no Brasil ou no exterior. Cada vez menos premia-se por reconhecimento cinematográfico. O fenômeno da correção política gerou monstrengos terríveis. No último Festival de Brasília, por exemplo, Carlos Reichenbach recebeu um prêmio de melhor argumento por Garotas do ABC. Com a franqueza que lhe é habitual, comentou: “O que é isso, meu Deus?” Premia-se para homenagear, premia-se por oportunismo político, premia-se para atender objetivos comerciais, e agora, com Gramado, está criado o prêmio por cotas. Este ano a cota foi para negros, ano que vem, quem sabe, para idosos. Que venham os estudantes da rede pública!



Se o ocorrido em Gramado não chega a ser novidade, surpreendeu a franqueza do Presidente do Júri, o crítico Rubens Ewald Filho, que alegou ter sido a premiação programada como reconhecimento a um filme com seis atores negros realizado no Rio Grande do Sul. A declaração infeliz gerou revolta na equipe que ameaçou devolver os Kikitos. Rapidamente o crítico se retratou e passou, em carta publicada no Jornal do Brasil (LEIA ABAIXO), a explicar as razões por que o filme ganhou o prêmio.



Na carta há pelo menos uma contradição gritante. O mesmo crítico que considerou o festival “sofrível” elogia os dez ou quinze minutos iniciais de Filhas do Vento”. Recebidos com “alegria e júbilo”, os minutos iniciais são “indiscutivelmente uma obra-prima”. Isso sem contar a “esplêndida cena da entrada na igreja (que já nasceu antológica)” e a observação de que é “difícil encontrar um filme brasileiro com interpretações tão notáveis, elenco tão harmonioso, tão perfeito”. O “sofrível” Festival de Gramado, portanto, premiou uma das mais importantes obras cinematográficas do cinema brasileiro dos últimos tempos. Tudo na visão de Ewald, bem entendido.



O grande problema dos Festivais é a desvalorização de uma peça fundamental: a redação da justificativa das premiações. Tivesse o júri divulgado ou mesmo se pronunciado através de uma justificativa com os argumentos acima, em que não há qualquer referência à origem gaúcha do filme ou à presença de atores negros em cena, não haveria tamanha confusão. Ainda que possamos discordar dos critérios de Ewald, não há dúvida de que as adjetivações são usadas para realçar o filme, e não supostas virtudes extra-fílmicas.



Que ninguém seja pueril de pensar que júris não agem por motivações políticas, ideológicas, estéticas ou econômicas. Os júris existem justamente para aguçar as contradições na busca de um consenso. Ao redigir uma justificativa, por menor que seja, o júri expõe seus motivos, age com transparência. Pode ser chato, pode ser cansativo, pode não ser glamuroso, mas é absolutamente necessário. Um dos méritos dos júris da Federação Internacional de Críticos de Cinema, dos quais já tive oportunidade de participar, é a insistência de uma justificativa concisa e consistente. Mas não é preciso ir muito longe. Um dos melhores júris dos quais participei foi um de cinema universitário, em Niterói. A redação das justificativas ocupou grande parte da reunião que contava com as presenças do já citado Reichenbach, do fotógrafo Mário Carneiro e do ator e diretor Xavier de Oliveira, irmão do Denoy. Foi trabalhoso, agradável, elucidativo e transparente. Aliás, como devem ser os Festivais de Cinema.





LEIA A CARTA DE RUBENS EWALD FILHO, PRESIDENTE DO JÚRI:



"Um dos problemas para um crítico, quando faz parte de um júri como o do Festival de Gramado, é não poder se expressar livremente em nome do sigilo e do suspense. Recusei um convite para comentar uma transmissão da festa de entrega de prêmios por causa disso. Mas gostaria de ter tido a oportunidade de me colocar melhor, principalmente da admiração que eu - e na verdade, todo o júri - teve por Filhas do Vento, de Joel Zito Araujo. É difícil comentar a alegria e júbilo com que o filme foi recebido por nós, em particular nos primeiros dez ou quinze minutos, que são indiscutivelmente uma obra-prima. Que coisa mais brasileira, mais encantadora, mais perfeita. Começando com a esplêndida cena da entrada na Igreja (que já nasceu antológica), depois em toda a deliciosa mineirice do romance das irmãs. É difícil encontrar um filme brasileiro com interpretações tão notáveis, um elenco tão harmonioso, tão perfeito. Justamente por isso ficou até difícil conceder os prêmios. Uma saída talvez fosse dar um prêmio coletivo. Mas, de certa maneira, não destacaria os nomes com o devido respeito. Optamos, então, por uma estratégia realmente planejada. Equilibrada (respeitando também as qualidades do outro filme, Vida de Menina). As melhores atrizes só podiam ser as duas grandes divas, Ruth de Souza e Léa Garcia (até porque o conflito básico é um duelo entre elas). Impossível optar entre as duas, cada uma com seu estilo peculiar, mas trazendo sua história, seu carisma, sua humanidade. Poderíamos premiar como coadjuvantes as outras presenças femininas do elenco, que são igualmente competentes e marcantes. Mas preferimos destacar Thaís Araújo (mesmo já sendo uma estrela no cinema e TV) e Thalma de Freitas, até porque nos pareceu coerente o fato delas fazerem os mesmos personagens das protagonistas. Assim demonstrávamos como haviam sido bem desenvolvidas estas personagens. Quanto ao Milton Gonçalves não houve sequer discussão.



Ele é um dos melhores atores brasileiros e raramente teve um personagem tão bom (o causo que ele conta é uma maravilha). E Rocco Pitanga, melhor coadjuvante, tem a simpatia do pai, mais a figura do galã, pronto para ser confirmado como um grande ator. Também fizemos questão de premiar Zito como realizador, justamente pela harmonia de seu trabalho, de sua proposta e realização.



Em momento algum houve condescendência ou paternalismo; o fato de serem atores negros nem sequer foi levantado. Até mesmo porque esse é um dos méritos do filme.



Eles são antes de tudo humanos, brasileiros, gente como a gente. E por isso mesmo admiráveis.



Qualquer outra explicação para a premiação não tem justificativa ou razão de ser, embora não possa esconder uma certa satisfação com o fato de que Zito tenha conseguido fazer um filme como esse, que deu chance para ver brilhar tanta gente que nós admirávamos.



PS: Deixando mais claro, mas um pouco fora de contexto. A premiação foi planejada sim. Mas no equilíbrio (no fato de cada um deles ter recebido cinco prêmios, Filhas e Vida), em lembrar de O Quinze no que tinha de melhor, e de Araguaya, no resgate e na parte técnica."





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