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MOSTRA BR DE CINEMA-SP 2004: UM GUIA CRÍTICO

22.10.2004
Por João Mattos
MOSTRA BR DE CINEMA-SP 2004: UM GUIA CRÍTICO

Assim como a complexa relação de amor-e-ódio de São Paulo com o Rio de Janeiro pode render vários volumes de enciclopédias, as diferenças e semelhanças entre a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, o outro mega evento brasileiro anual de cinema de todo o mundo, e o Festival do Rio, poderiam virar um livro, notável pelo cunho sócio-cultural (e econômico), e bem mais complexo e multifacetado do que parece. Em primeiro lugar, é preciso assinalar uma coisa: a Mostra SP tem as mesmas características desde seu início (em 1976), com mudanças ocasionais, mas mantendo uma unidade admirável; o Festival do Rio é fusão recente (seis anos) das mostras organizadas pelo Grupo Estação (que tiveram nomes diferentes) e o antigo Rio Cine, e resultou num evento que tem a avassaladora marca Rio de Janeiro (a Cidade Maravilhosa, tão famosa no mundo, antiga capital da República), que funciona e muito, apesar dos problemas que vive a cidade, ajudando na construção da imagem e conteúdo do Festival, tanto no próprio Brasil como no exterior.



São Paulo também se beneficia de seu gigantismo, do fato de ser uma das poucas megalópoles do planeta (tal como Nova York, Los Angeles, Cidade do México, Tóquio), para articular uma comunicação cosmopolita com os frequentadores e convidados. A marca Mostra SP tem, por sua permanência, um valor incrível, presente até em fatos históricos ligados ao cinema – o acordo de co-produção européia entre diversos países para a realização do premiado filme sobre a guerra da Bósnia, Terra de Ninguém, foi fechado em encontro informal na cidade de São Paulo.

Se no geral, as duas cidades vivem numa alternância de colaboração com rivalidade (ambas as coisas, saudáveis), no caso desses festins de cinema, não é diferente. Filmes são disputados por um lado e pelo outro, para figurar na lista final de exibição de cada evento, e às vezes o que passou em determinado ano numa cidade, passa na outra no seguinte. Sem falar que na mesma edição anual, há várias obras que acabam passando nas duas localidades.



No primeiro caso, se o Rio passou este ano A História de Marie e Julien e Sob o Céu do Líbano (atrações de SP em 2003), Sampa exibe agora A Quimera dos Herói eJagoda e o Supermercadp, que o Rio viu ano passado. Este ano 78 filmes (incluindo 18 brasileiros) que foram exibidos no Rio passarão também em São Paulo. Felizes são aqueles que fazem parte do (pequeno, porém significativo) grupo de cinéfilos que tem a oportunidade de freqüentar as duas celebrações cinematográficas.



Segue uma lista de sugestões baseada em filmes vistos, recomendações de amigos cinéfilos e colegas críticos, leituras de revistas, etc, e toda a sorte de investigações que suscita o amor pelo cinema.



Antes, vale repetir, ipsi litteris, os conselhos de Marcelo Janot em artigo sobre o Festival do Rio.



1 - Ao consultar a programação do Festival, observe se o filme que você pretende ver está legendado ou tem legendas eletrônicas. Se a cópia já está legendada, significa que ele foi comprado por alguma distribuidora brasileira e deve ser lançado comercialmente. Às vezes entra em cartaz logo após o fim do evento, às vezes pode demorar quase um ano. Para quem tem paciência, vale a pena esperar e ocupar seu tempo com os filmes com legenda eletrônica, que poderão ficar inéditos comercialmente para sempre. O mesmo vale para os filmes nacionais da seção Première Brasil (com exceção dos curtas, é claro).



2 – Fique atento à duração dos filmes. Caso você vá assistir vários filmes no mesmo dia, em diferentes cinemas, dê um intervalo razoável entre eles, porque é comum sessões atrasarem ou serem interrompidas no meio por problemas com a legendagem.



E tente fazer em São Paulo, uma coisa que, mesmo o cinéfilo/crítico brazuca mais bem informado (que procura descobrir tudo o que está acontecendo no cinema mundial), só consegue fazer aqui no Brasil na Mostra SP ou no Festival do Rio: assistir a um filme completamente no escuro, sem nada saber dele além do título em português, nem mesmo o título original, a que país pertence, muito menos a sinopse. Você pode se deparar com uma bomba, mas também pode ter a felicidade, que eu tive, por exemplo, ao ver (repito, no escuro) o filme português Durante o Fim, uma obra-prima que me proporcionou a sessão mais relevante da minha prospecção no Festival do Rio.



A Mostra SP não é subdividida em tantos programas como o Festival do Rio, e as dicas a seguir se referem a tipos diferentes de filmes, tantos os de cineastas já estabelecidos, como filmes que concorrem ao prêmio da Mostra (o Bandeira Paulista), no qual competem obras de diretores que fizeram até três filmes, e cujo formato interessante mescla uma primeira filtragem feita pelo voto do público, com uma votação em segundo turno feita por júri de composição internacional, e com nomes importantes.



Agora, aos filmes da 28ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.



- Los Muertos, de Lisandro Alonso – Segundo filme de jovem diretor argentino (primeiro a ser exibido no Brasil), que dizem praticar um cinema de arte radical, com influências (seriam reais) de Andrei Tarkovski, provocando muito debate.



- Um Mundo Menos Peor, de Alejandro Agresti - Outro argentino, este já estabelecido, que fez sucesso no Brasil este ano no circuito com Valentim, teve vários filmes exibidos na 16ª Mostra (92). O novo filme mostra os efeitos da ditadura na Argentina anos depois dela ter acabado.



- Olhos de Vampa, de Walter Rogério – Este filme brasileiro de terror do diretor do talentoso Beijo 2348/72 levou seis anos para ficar pronto.



- Casa Vazia, de Kim Ki-Duk – Recém-premiado em Veneza, é o segundo filme de 2004 de diretor de reputação crescente no mundo e no Brasil, onde teve obras exibidas em festivais, com Primavera, Verão, Outono, Inverno... e Primavera fazendo sucesso no circuito de arte este ano.



- Old Boy de Park Chan-Wook – Mórbida obra de suspense sobre vingança do mesmo autor do excelente Join Security Area, ganhou o Grande Prêmio do Júri em Cannes, já teve direitos comprados para refilmagem nos EUA, e tem chocado platéias em todo o lugar.



- Niceland, de Fridrik Thor Fridriksson – O autor do lindo Filhos da Natureza estará em São Paulo para fazer parte do júri do Bandeira Paulista. Novo filme é sobre romance entre deficientes mentais.



- Filhote, de Luis Miguel Albaladejo – Diretor espanhol do bom A Primeira Noite da Minha Vida mostra dentista homossexual que precisa criar sobrinho.



- O Milagre de Candeal, de Fernando Trueba – Documentário do autor do ótimo Sedução sobre o trabalho musical e social desenvolvido por Carlinhos Brown na região em que o cantor nasceu em Salvador.



- Dandelion, de Mark Milgard – Elogiada estréia sobre o amor entre casal de jovens.



- De Outros Mundos, de Barry Strugatz – Outra estréia elogiada, sobre dona de casa entediada que descobre disco voador no jardim de casa, e tenta decifrar o fato com a ajuda de imigrante africano.



- O Porão, de Eric Werthman – Psicoterapeuta estréia na direção de cinema com trama sobre homem casado que mantém relacionamento extra-marital fixo com dominatrix, tudo com conhecimento e aprovação da esposa.



- Sideways, de Alexander Payne – Pode-se gostar ou não do cinema de Alexander Payne, mas com apenas três longas ele já construiu uma obra com características significativas, uma cara própria, isto fazendo três comédias de diferentes estilos e tons de humor. Primeiro filme dele a passar na Mostra SP, este quarto longa mostra a viagem de dois amigos em direção à região vinícola dos EUA. Papéis principais são feitos pelo soberbo Paul Giamatti, e o não menos talentoso Thomas Hadden Church.



- Terra da Fartura, de Wim Wenders – O alemão que tem uma história antiga de relação com os EUA e a mitologia do país, abriu a 28ª Mostra (para convidados) com obra que enfoca os efeitos do 11 de setembro junto à duas gerações de norte-americanos, tio e sobrinha.



- Bad Santa, de Terry Zwigoff – Comédia de humor negro escatológica e hilariante, do autor dos sensacionais Crumb e Mundo Cão, sobre bandido que vive de golpes vestido de Papai Noel. Para rir muito e comprovar o talento do diretor.



- 5X2 – Cinq Fois Deux, de François Ozon – Competiu em Veneza, a obra mais recente do cineasta francês que já tem fãs no Brasil, e que mostra em etapas (e por flashback) a dissolução de um casamento.



- Bem-Me-Quer, Mal-Me-Quer, de Maria de Medeiros – Bela atriz e boa diretora, a portuguesa trata neste documentário da sempre tensa, mas vital, relação entre a classe artística e os críticos.



- Borboleta, de Yan Yan Mak – Nem bem começou sua carreira internacional, este drama sobre lesbianismo já foi alçado à condição de obra-prima.



- O Último Filme de Terror, de Julian Richards – Ouvi maravilhas de uns, e rejeição braba de outros, sobre trama em que assassino-em-série tenta fazer filme sobre seus crimes. Foi comparado à um cult belga dos anos 90 Aconteceu Perto da Sua Casa.



Apenas um Beijo, de Ken Loach – Retrospectiva carioca sobre o diretor inglês ficou eclipsada por rolar durante o Festival do Rio deste ano. Este filme mais recente, que competiu em Berlim, fala do caso de amor meio Romeu e Julieta entre muçulmano e católica.



- Campo de Batalha, de Joseph Cedar – Acabou de ganhar o prêmio da crítica no prestigiado festival de Chicago, este drama passado na Israel do começo dos anos 80 sobre viúva com duas filhas adolescentes que sofre para levar uma vida feliz.



- Ágata e a Tempestade, de Silvio Soldini – Adorado no Brasil graças à Pão e Tulipas, Soldini parece que voltou ao clima de seu grande sucesso neste drama surrealista sobre dona de livraria que receita livros aos clientes como cura para males, e que leva vida amorosa peculiar.



- O Revólver Amado, de Kensaku Watanabe – Ex-assistente e ator em filmes de Seijun Suzuki (homenageado em retrospectiva na 23ª Mostra SP, em 99), jovem diretor parece que confirma aqui que é mesmo herdeiro de certas características do estilo de Suzuki (psicodelia visual em filmes de gangsteres, com personagens fortes), em filme intricado sobre conflitos entre três criminosos e uma jovem em crise.



- A Paz, de Krzysztof Kieslowski – Filme do falecido gênio polonês feito para a TV que nunca passou no Brasil e teve circulação restrita no mundo. No papel de jovem saído da prisão, Jerzy Stuhr, que estará em São Paulo para badalar dois filmes, pois também é ator, diretor e roteirista de

O Tempo, Amanhã, obra que fala sobre homem que rompe isolamento com o mundo depois de passar 17 anos em monastério. Dois outros filmes de Stuhr passaram na 24ª Mostra SP e foram muito bem recebidos.



- O Quinto Império – Ontem Como Hoje, de Manoel de Oliveira – O nonagentário português Oliveira, que tem uma bela e profunda ligação com a Mostra SP, e é um dos maiores diretores em atividade no mundo, lida com a figura do lendário Dom Sebastião, um dos reis de Portugal. Por tudo isso, é absolutamente obrigatório ver este filme.



- Sonhos de uma Noite de Inverno, de Goran Paskaljevic – O diretor do ótimo Barril de Pólvora (que esteve em cartaz nos cinemas brasileiros), e que teve outras obras exibidas na Mostra, volta a tratar de temas sérvios, ao contar a história de homem que retorna à Sérvia depois de dez anos e é obrigado a conviver com mulher que cria sozinha filha autista, ambas habitando o apartamento que foi dele.



- Quatro Espectros do Assombro, de Tomas Alfredson – Estréia no cinema de grupo de comediantes suecos em quatro historietas que (parece) são repletas de humor nigérrimo e de qualidade.



- Chapéu Verde, de Liu Fendou – Jovem assaltante leva fora da namorada por telefone enquanto executa roubo. Estréia na direção de roteirista que escreveu o belo texto de Banhos.



- Passagens , de Yang Chao – Recebeu menção especial no Câmera D’Or (premiação para estreantes) em Cannes este ano.



- Delamu, de Tian Zhuangzhuang – Documentário dirigido pelo autor de dois filmes excelentes: O Papagaio Azul e Primavera Numa Pequena Cidade (que foi atração do Festival do Rio BR 2002) .



- Caçados por Sonhos, de Buddadeb Dasgupta – Talentoso diretor indiano foi homenageado com retrospectiva na 25ª Mostra (2001). Filme novo entrelaça as histórias de três pessoas retratando a Índia moderna.



- Estradas para Koktebel, de Boris Khlebnikov e Aleksei Popogrebsky- Passou como Caminhos para Koktebel no Fstival do Rio, e tem semelhanças com outra produção russa, O Retorno (ainda em cartaz em algumas cidades), por também lidar com o relacionamento entre um pai e seu filho (em O Retorno , eram dois filhos), ao longo de uma viagem literal e simbólica. À primeira vista é mais materialista e menos metafísico do que seu filme-colega, mas no duro, tem sensibilidade muito mais aguçada, natural e sem a pose de O Retorno, alcançando por isso uma densidade espiritual mais efetiva. Desde o primeiro e instigante plano, podemos perceber que algo relevante está por vir. Sem firulas ou derivações falhas, cenas antológicas (a do pendurar as roupas no varal, por exemplo) constroem uma narrativa daquelas que cativa por um bom tempo e até melhora com o passar dos dias.



Filmes que passaram com título diferente no Rio de Janeiro (cuidado para não vê-los de novo por engano):



-Amor em Pensamentos, de Achim Von Borries, passou como Pra Que Serve O Amor Só Em Pensamentos?

-A Prostituta e a Baleia, de Luis Puenzo, passou com seu título original, La Puta Y la Ballena

-La Niña Santa, de Lucrecia Martel, passou traduzido como Santa Menina

-O Lado Escuro da Lua, de Robert Lepage, passou como A Face Oculta da Lua

-Nas Suas Mãos, de Annete K. Olsen, passou como Em Suas Mãos

-Perder Es Cuestíon de Método, de Sergio Cabrera, passou traduzido literalmente, como Perder É uma Questão de Método

-Tormento, de Jonathan Caouette, passou com o título original, Tarnation

-Viagem do Coração, de Jean-Paul Rappeneau, passou com o título original, Bom Voyage

-Cold Light, de Hilmar Oddsson, passou traduzido literalmente, como Luz Fria

-Questão de Imagem, de Agnès Jaoui, passou sem tradução, como Comme Um Image

-Estradas para Koktebel, de Boris Khlebnikov e Aleksei Popogrebsky, passou como Caminhos para Koktebel



RETROSPECTIVA ABBAS KIAROSTAMI



Esta é uma afirmação incontestável (que até quem não gosta dele tem que admitir): Abbas é o principal responsável por ter tornado a cinematografia iraniana, um assunto de enorme impacto entre cinéfilos e críticos de todo o planeta dos anos 90 até hoje, e tem presença assegurada em qualquer lista dos melhores cineastas em atividade. Homenageado com dois livros a serem lançados durante a Mostra, e uma exposição, ele estará (mais uma vez) na cidade para ministrar um workshop para alguns felizardos. Embora todos os filmes do diretor de 1990 para cá tenham sido exibidos no Brasil (em eventos ou no circuito mesmo), o prazer de (re) vê-los na tela grande é inegável. Mas os destaques sem dúvida, são as raridades como The Report e Traveller, os documentários sobre pedagogia Lição de Casa (de 89, exibido na Mostra SP de 95) e First Graders, e os longas mais recentes, Dez Sobre Dez e Cinco. Dos filmes mais antigos citados, só o já mencionado passou por aqui, os outros três estão sendo mostrados pela primeira vez. Um único senão para essa retrospectiva: os curtas de Kiarostami não fazem parte da lista de obras a serem exibidas. Pena.



RETROSPECTIVA AMOS GITAI



O israelense Gitai também é considerado um dos grandes em atividade no mundo. Primeiro ele ficou conhecido como documentarista, e enveredou pela ficção na segunda metade dos anos 80, conhecendo fama gradual, mas explodindo mesmo a partir de 99 (quando Kaddosh – Laços Sagrados competiu em Cannes), a partir daí experimentando uma reputação crescente em ritmo alucinante. Gitai já esteve no Rio e em Brasília (foi homenageado por lá), também estará em São Paulo, terá livro sobre sua obra lançado na Mostra, participará da exposição ao lado de Kiarostami, desenhou o cartaz dessa 28ª Mostra, e tem seu filme mais recente, Terra Prometida, exibido este ano. Discutindo os temas de sua terra sem fugir de polêmicas, Gitai também tem uma notável assinatura estilística: adora o uso de planos-sequências, que emprega sem fetiche temporal nenhum. Na retrospectiva o melhor é prestigiar as sessões dos documentários do cineasta, pouco conhecidos entre nós. Três deles passaram na Mostra Banco Nacional de Cinema do Rio de Janeiro em 94 (Esther, Brand New Day, Berlim-Jerusalém, e mais um quarto que não passa em São Paulo), mas a maioria deles é inédito e de temática muito importante.



RETROSPECTIVA GUY MADDIN



Comparar um artista a outros poder ser ao mesmo tempo, uma operação fácil, reducionista e fascinante. A lista de diretores com os quais o canadense Guy Maddin tem sido comparado é vasta: Jean Cocteau, Fritz Lang, F.W. Murnau, Tim Burton, Tod Browning, David Cronenberg, David Lynch. Tal lista fornece uma boa base inicial de discussão para travar conhecimento com o cinema de Maddin. Na verdade, como ele é pouquíssimo ou nada conhecido no Brasil, esta retrospectiva é a mais importante das três, pela raridade do que apresentará à pessoas.

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