Marília Pera foi essencialmente uma atriz de teatro: nos palcos colheu inúmeros sucessos e aplausos, muitas de suas interpretações fizeram história e por muito tempo ela ainda será lembrada como atriz teatral. Mas é o cinema que, com o passar dos anos, vai ser responsável por preservar sua imagem e talento junto a gerações que nunca a terão visto em peças. Ao contrário de Cacilda Becker e mesmo de Glauce Rocha, dois monstros sagrados de nossos palcos com poucas participações significativas no celuloide de então (Glauce ainda esteve em Terra em Transe, de Glauber Rocha – que não era seu parente - mas seu talento avassalador pode ser mais bem verificado em Navalha na Carne, na primeira versão cinematográfica assinada por Braz Chediak).
Marília também esteve em menos filmes do que seu talento merecia, mas deixou sua marca em momentos inesquecíveis e de grande impacto, como no papel da prostituta que dá o seio para o menino Pixote no filme de Hector Babenco, de repercussão internacional, incluindo prêmios para a atriz no exterior.
Ela estreou nas telas em um raro filme de ficção de Eduardo Coutinho, ainda em 1966, O Homem que comprou o mundo. Muitas décadas depois ela participaria do documentário de Coutinho (documentário, ainda que nem tanto nem tão só), Jogo de Cena. Mas foi só quase dez anos depois de seu primeiro filme que Marília teve sua primeira participação memorável nas telas: inesquecível tê-la visto cantando o tango “Nostalgias” como uma cantora de cabaré paraguaia - e que nem paraguaia era; ou seja, era uma paraguaia falsificada... Sua personagem se envolvia com o de Paulo José em O Rei da Noite (estreia de Babenco na direção de longa-metragem) sendo ainda uma participação coadjuvante, mas que impressionava na cena em que ‘Quinzinho’ (Paulo) lhe dava uns tapas enquanto ela se indignava... até dizer “Bate mais forte, bate!”. O que poderia ser uma cena de chanchada e/ou de mau-gosto (intencional e que o filme assumia em vários momentos) transformava-se no retrato patético de uma perdedora submissa com atração pelo masoquismo e à qual Marília emprestava pungência e dramaticidade na corda bamba entre o trágico e o cômico-ridículo de vidas marginais.
Na década de 1980 é que talvez encontremos alguns dos trabalhos mais memoráveis de Marília no cinema: Em ’81, Pixote: a lei do mais fraco – que dispensa comentários: é seu desempenho mais conhecido dentre todos os filmes nos quais esteve. Já Bar Esperança, de Hugo Carvana (1983), trazia uma Marília impagável, de óculos escuros em um supermercado, fazendo uma atriz de novela que faz papel de vilã e precisa sair disfarçada às ruas para não ser linchada pela alienação dos fãs da “mocinha” da novela que confundiam a atriz com a personagem malvada. Quatro anos depois, em composição completamente diferente, Marília fez novamente uma atriz na única realização do paulista Wilson Barros, o estilizado e poético Anjos da Noite, de 1987.
Entre esses dois filmes ela esteve em Mixed Blood, produção franco-americana dirigida pelo mesmo Paul Morrissey dos filmes de Andy Wharol – salvo engano, jamais lançado comercialmente no Brasil. E a década se encerrou com uma de suas grandes criações, a ‘Marialva’ de Dias melhores virão, de Cacá Diegues, 1990, subestimado talvez pela ousadia de lançamento prioritário na TV – o que não deu muito certo. Retrato de uma geração de brasileiros que só via a porta de saída no aeroporto, a personagem era uma dubladora fascinada por um sitcom familiar norte-americano - com Rita Lee no papel de uma espécie de Lucille Ball mais contida. Doceamargo, o filme não encontrou seu público tendo sido bastante ignorado. Mas vale uma revisão/reavaliação, que mais não seja para admirarmos Marília em uma de suas especialidades teatrais: recriar Carmen Miranda.
Em Jenipapo de Monique Gardenberg (1995) e mesmo em seu outro filme mais famoso, Central do Brasil (1998), suas participações eram pouco desenvolvidas, dando a impressão de que alguma coisa teria ficado pela metade no arco das personagens. Apesar de termos o prazer de ver Marília ao lado de Fernanda Montenegro na realização de Walter Salles, o filme é de Fernanda, sendo a presença de Marília como coadjuvante um luxo, embora sua presença episódica seja quase uma das poucas falhas deste filme tão marcante. Do mesmo modo, sua 'Perpétua' em Tieta do Agreste, também de Cacá Diegues, 1996, não ficou tão lembrada pelo filme, de antemão prejudicado pelo sucesso anterior e demorado da mesma história em novela de TV.
Mesmo tendo estado em filmes assinados por gente como Murilo Salles (Seja o que Deus quiser, 2002) - e bem antes em momentos menos felizes de Alberto Salvá e de Domingos de Oliveira (um filme-veículo para Wilson Simonal!) – na filmografia de excelência de Marília Pera ainda cabe mencionar O Viajante, de Paulo César Sarraceni, baseado em Lucio Cardoso, escritor-obsessão do cineasta: mais pelo desempenho da atriz do que pelo resultado do filme (que tem seus defensores).
Em um filme problemático, extraído da peça teatral fundamental de nosso teatro, Vestido de Noiva, dirigido por Jofre Rodrigues, filho do autor Nelson Rodrigues, Marília fez o papel de Madame Clessi que nunca interpretou nos palcos. Na época em que o filme foi lançado, escrevi sobre a participação de Marília: A garra da atriz já não surpreende, e sua ‘Madame Clessi’ segue sua linha habitual de representar com doses de ironia e humor realçados – o que pode emprestar alguma estranheza ao tom geral de melodrama. Ou seja, ela se mostrava mais criativa do que o filme aprisionado aos clichês melodramáticos menos felizes da estereotipia em que se colocou a obra de Nelson Rodrigues.
Talvez Marília preferisse fazer comédia, e nos último tempos esteve em filmes do gênero, raramente à sua altura. Mas curiosamente, o que ficou mais representativo de seu enorme talento no cinema pende mais para o drama como em Pixote, ou para comédias com traços de amargura ou melancolia. Isso tudo também era Marília Pera.
P.S.: O decano da crítica cinematográfica brasileira, Ely Azeredo, informou ao nosso site o que "pouca gente sabe: a cena de 'Pixote' acolhido na cama pela prostituta interpretada por Marília Pera teve uma 'pixotada' não prevista no roteiro: quando embalado por 'Sueli', o atorzinho tirou proveito do seio que Marília havia exposto apenas num gesto maternal de afeto. Hector Babenco nem pensou em refazer a cena".