Eduardo Coutinho tem sido freqüentador habitual da Retrospectiva Raymond Depardon. Um dia desses, saía da sessão de Urgences e se programava para ver os filmes da série Profils Paysans, que enfocam o mundo rural francês. Na verdade, quem quer que se interesse por documentários tem ali um dos melhores programas do festival.
O francês Depardon, de 63 anos, é famoso também como fotógrafo (foi um dos fundadores da agência Gamma) e diretor de eventuais filmes de ficção, como La Captive du Désert, de 1990, com Sandrine Bonnaire. Em qualquer dessas frentes, seu olhar é basicamente etnográfico, e não apenas quando se dirige a cenários “exóticos” como a África ou o Iêmen. Ao postar-se com sua câmera observadora numa clínica psiquiátrica (Urgences) ou numa delegacia (Delitos Flagrantes) de Paris, por exemplo, ele está interessado em captar padrões de comportamento – falas, gestual, interações etc – reveladores do funcionamento da sociedade que está além daquele recinto fechado. A individualidade dos seus “personagens” é ao mesmo tempo irredutível e exemplar de desvios que definem a norma por contraste.
Em Delitos Flagrantes (1994), Depardon registra conversas de 14 pessoas recém-detidas com promotores e defensores públicos. As semelhanças de método com o brasileiro Justiça, de Maria Augusta Ramos, são evidentes: a câmera fixa, a ausência de contato entre documentarista e documentados, a abordagem fria e dura dos espaços identificados com a lei. Mas as diferenças falam mais alto. Depardon não questiona o Estado, nem parece interessado em fazer a crítica do sistema judiciário francês. A casa de detenção é apenas uma espécie de aquário através do qual ele pode fixar a “performance” e a argumentação – entre o cômico e o dramático – daquelas pessoas. Justiça, ao contrário, centrava o foco não no particular, mas no funcionamento do sistema.
O Depardon de Urgences (1988) já é bastante diferente no que diz respeito ao aparato cinematográfico. Sempre com o consentimento dos “personagens”, ele observa conversas de pacientes com um psicanalista e agentes da emergência de um hospital psiquiátrico. Eventualmente, as pessoas se dirigem à equipe e Depardon não se furta ao diálogo. Em outras ocasiões, deixa que o microfone e seu técnico tomem parte no desenvolvimento dramático da cena. Não há aqui o tabu do cinema direto, que impunha uma suposta “ausência” da equipe no espaço sagrado da filmagem. Coutinho, numa dessas sessões, não resistiu à comparação com o rigoroso Frederick Wiseman: “Depardon é mais humano. Pelo menos fala com as pessoas...”, afirmou.
Outro trabalho que desperta paralelos com o Brasil é 1974, Une Partie de Campagne, documentação da campanha vitoriosa de Valery Giscard d’Estaing à presidência da França. Este filme foi uma das inspirações de João Moreira Salles para fazer Entreatos. Depardon, porém, optou por incluir tanto momentos públicos quanto privados da maratona. O filme é visivelmente influenciado por Primary, de Robert Drew (1960), a grande matriz dos documentários de campanha. Mas, ao contrário de Primary e de Entreatos, não enfoca um personagem simpático. Giscard parece um burocrata autoritário e distanciado do povo. Faz referências irônicas aos trabalhadores e comenta, com cínico pragmatismo, sua estratégia para ganhar os votos da direita no segundo turno contra Mitterrand.
Depardon fez esse filme por encomenda de Giscard. E pagou o preço do pecado original. Talvez por se achar exposto demais na montagem final, o presidente eleito vetou o filme, que só seria exibido a partir de 2001. Embora fascinante como retrato de campanha, 1974 deixa a desejar quando não expõe, em nenhum momento, as idéias principais de Giscard para a França. Depardon não conseguiu romper a notória opacidade do político. E, ao contrário de João Moreira Salles, não logrou captar o momento crucial em que Giscard recebeu a confirmação de que estava eleito.
Salles se prepara agora para filmar os 30 últimos dias do governo Lula, numa espécie de complemento – ou contraponto? – do filme anterior. Para os cinéfilos, a boa dica é aproveitar os últimos dias do festival para ver as reprises de Depardon, previstas para o Estação Botafogo 3 e o cinema Cândido Mendes.