Especiais


29ª MOSTRA INTERNACIONAL DE SÃO PAULO

30.10.2005
Por Daniel Schenker
ATOS DE REVELAÇÃO

Em meio ao grande panorama cinematográfico oferecido ao público pela 29ª Mostra Internacional de São Paulo, filmes como Brokeback Mountain , de Ang Lee, Marcas da Violência , de David Cronenberg, Ingmar Bergman Completo , de Marie Nyreröd, e Trilogia – O Vale dos Lamentos , de Theo Angelopoulos, trazem revelações feitas através de depoimentos de artistas, de personagens e/ou da própria câmera.



Brokeback Mountain e Marcas da Violência mostram personagens que construíram modos de atuação na sociedade, mas que não podem, obviamente, ser definidos tão-somente pelos seres sociais que ostentam no cotidiano. Tanto num filme como no outro, os protagonistas são levados a (re)visitar as próprias instâncias ocultas, relegadas à clandestinidade. Há uma ligação entre esta raiz temática e o trabalho do ator, que, através de cada personagem, se depara com um outro de si mesmo, às vezes desconhecido. Ao literalmente dar corpo a personagens, algo pertencente à esfera literária/dramatúrgica, o ator, protegido pela ficção, se expõe, formando uma espessura entre falas redigidas por determinado autor e as suas falas pessoais, utilizadas como subtexto e necessárias à construção de um sentido de verdade.



O ator não é o único capaz de mergulhar neste processo. Apesar de se revelar nos três documentários de Marie Nyreröd, reunidos sob o título Ingmar Bergman Completo: Bergman e o Cinema, Bergman e o Teatro, Bergman e a Ilha de Faro , Bergman vem, ao longo de sua filmografia, utilizando personagens para manifestar instâncias particulares. Já Angelopoulos talvez não esteja tão interessado em suprimir barreiras entre o real e o ficcional. Afinal, costuma realizar filmes austeros, imponentes, realçando a marcação rígida e precisa dos atores, como no excelente A Eternidade e um Dia . Em seu novo trabalho, Trilogia – O Vale dos Lamentos , o diretor volta a afirmar o teatro e o cinema como meios expressivos, sublinhando sua conexão com a primeira manifestação artística através da filiação à tragédia e com a segunda via uma câmera repleta de enunciações, expressiva sem cair na armadilha do virtuosismo.



Vencedor do Leão de Ouro no Festival de Veneza, Brokeback Mountain aborda o sofrimento de Jack (Jake Gyllenhaal) e Ennie (Heath Ledger), que, por não conseguirem se assumir no mundo, só vivem intensamente às escondidas, sendo constantemente confrontados com a inadequação de papéis sociais muito distantes de seus próprios desejos. Ang Lee destaca bastante bem este ponto central num filme tradicional no que diz respeito à construção cinematográfica – possivelmente porque o diretor precisou da evolução linear da história no tempo para abordar o efeito da passagem dos anos sobre personagens a partir do momento em que, ao se apaixonarem, parecem descobrir, cada qual, um outro de si, complementar e não excludente.



Marcas da Violência , de Cronenberg, apresenta o espectador a Tom Stall (Viggo Mortensen), sujeito pacato em seu cotidiano tranqüilo de dono de uma lanchonete numa cidadezinha do interior dos Estados Unidos. De início, o desenho da família de Tom soa propositadamente edificante: ele surge como bom marido e pai, sua mulher, Edie (Maria Bello), é sempre compreensiva. Os dois dosam a harmonia com uma vida sexual que, vez por outra, escapa à rotina. E, para completar o quadro, o filho mais velho é bastante equilibrado. No entanto, as ilusões não demoram a desmoronar. Cronenberg lembra que as pessoas possuem reversos e extremidades distantes da atuação no cotidiano. Tom pode não ser apenas o homem cordial que aparenta há tantos anos. Como um ator, ele vai ser obrigado a se (re)encontrar com seu reverso, no caso, bem mais sombrio. Os objetivos do diretor são evidentes – e este é o maior problema de Marcas da Violência , que facilita mais do que deveria a vida do espectador. Há pouco mistério em se tratando de um filme que procura abordar o interior oculto do ser humano.



Marie Nyreröd desvenda Ingmar Bergman, centrando seu enfoque em como Bergman conseguiu canalizar artisticamente suas sensações e experiências, expondo-se através das personagens. Filme com material “ferozmente autobiográfico”, Fanny & Alexander , por exemplo, ajudou Bergman a reviver o apartamento da avó. “Posso me lembrar como eram os móveis, os quadros, como se passava de um quarto para o outro (...) Ainda tenho conexões com minha infância mais tenra”, assume o cineasta, que se revela para o espectador principalmente em Bergman e a Ilha de Faro . A diretora toca em pontos delicados para Bergman, como a relação distanciada com os próprios filhos e o modo como lida com a perspectiva da morte, “tema” abordado em filmes como O Sétimo Selo e o inédito Saraband . “Quando Ingrid (Bergman) morreu, disse para mim: ‘jamais a verei novamente’. Mas sinto sua presença (...) Eu admito que irei encontrá-la”, diz Bergman.



Em Trilogia – O Vale dos Lamentos , Angelopoulos revela através da câmera. Muitas seqüências, por exemplo, se descortinam diante do espectador como longos painéis. O cineasta começa mostrando planos gerais mas, aos poucos, passa a aproximar lentamente a câmera para destacar detalhes difíceis de serem percebidos de outro modo. Nesse sentido, é uma câmera que dirige o olhar do espectador, que mostra para o que se “deve” atentar, deixando claro, em certos momentos, que o importante está no fundo da imagem. Há um jogo entre o geral e o particular, o grandioso e o intimista que atravessa Trilogia – O Vale dos Lamentos , saga em tom menor de Theo Angelopoulos. A duplicidade também transparece na música. Nos momentos mais festivos, traz à tona sentidos de integração e resistência; em outros, chega como uma canção antiga evocando lembrança e saudade. Estas articulações ajudam o filme a não enveredar pela impessoalidade que, às vezes, assombra o gênero épico, ainda que, à medida que a projeção avança, o derramamento emocional abale, em parte, a força trágica e a simbiose entre as personagens e a História se torne mais esquemática.



Em todo caso, quem conhece trabalhos anteriores do diretor encontrará aqui uma série de elementos familiares. Um deles é a importância do teatro, não só como espaço físico (em determinado momento, Eleni e Alexis, os protagonistas, encontram refúgio num grande teatro) mas também como exercício de gênero (a tragédia). O diretor retorna também com a viagem sem rumo de dois personagens (como no belíssimo Paisagem na Neblina ), contada na tela grande através de cores esmaecidas (destaque para preto, branco e azul acinzentado) próprias a uma constante e eterna paisagem invernal.

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