Em meio ao grande panorama cinematográfico oferecido ao público pela 29ª Mostra Internacional de São Paulo, filmes como Brokeback Mountain , de Ang Lee, Marcas da Violência , de David Cronenberg, Ingmar Bergman Completo , de Marie Nyreröd, e Trilogia – O Vale dos Lamentos , de Theo Angelopoulos, trazem revelações feitas através de depoimentos de artistas, de personagens e/ou da própria câmera.
Brokeback Mountain e Marcas da Violência mostram personagens que construíram modos de atuação na sociedade, mas que não podem, obviamente, ser definidos tão-somente pelos seres sociais que ostentam no cotidiano. Tanto num filme como no outro, os protagonistas são levados a (re)visitar as próprias instâncias ocultas, relegadas à clandestinidade. Há uma ligação entre esta raiz temática e o trabalho do ator, que, através de cada personagem, se depara com um outro de si mesmo, às vezes desconhecido. Ao literalmente dar corpo a personagens, algo pertencente à esfera literária/dramatúrgica, o ator, protegido pela ficção, se expõe, formando uma espessura entre falas redigidas por determinado autor e as suas falas pessoais, utilizadas como subtexto e necessárias à construção de um sentido de verdade.
O ator não é o único capaz de mergulhar neste processo. Apesar de se revelar nos três documentários de Marie Nyreröd, reunidos sob o título Ingmar Bergman Completo: Bergman e o Cinema, Bergman e o Teatro, Bergman e a Ilha de Faro , Bergman vem, ao longo de sua filmografia, utilizando personagens para manifestar instâncias particulares. Já Angelopoulos talvez não esteja tão interessado em suprimir barreiras entre o real e o ficcional. Afinal, costuma realizar filmes austeros, imponentes, realçando a marcação rígida e precisa dos atores, como no excelente A Eternidade e um Dia . Em seu novo trabalho, Trilogia – O Vale dos Lamentos , o diretor volta a afirmar o teatro e o cinema como meios expressivos, sublinhando sua conexão com a primeira manifestação artística através da filiação à tragédia e com a segunda via uma câmera repleta de enunciações, expressiva sem cair na armadilha do virtuosismo.
Vencedor do Leão de Ouro no Festival de Veneza, Brokeback Mountain aborda o sofrimento de Jack (Jake Gyllenhaal) e Ennie (Heath Ledger), que, por não conseguirem se assumir no mundo, só vivem intensamente às escondidas, sendo constantemente confrontados com a inadequação de papéis sociais muito distantes de seus próprios desejos. Ang Lee destaca bastante bem este ponto central num filme tradicional no que diz respeito à construção cinematográfica – possivelmente porque o diretor precisou da evolução linear da história no tempo para abordar o efeito da passagem dos anos sobre personagens a partir do momento em que, ao se apaixonarem, parecem descobrir, cada qual, um outro de si, complementar e não excludente.
Marcas da Violência , de Cronenberg, apresenta o espectador a Tom Stall (Viggo Mortensen), sujeito pacato em seu cotidiano tranqüilo de dono de uma lanchonete numa cidadezinha do interior dos Estados Unidos. De início, o desenho da família de Tom soa propositadamente edificante: ele surge como bom marido e pai, sua mulher, Edie (Maria Bello), é sempre compreensiva. Os dois dosam a harmonia com uma vida sexual que, vez por outra, escapa à rotina. E, para completar o quadro, o filho mais velho é bastante equilibrado. No entanto, as ilusões não demoram a desmoronar. Cronenberg lembra que as pessoas possuem reversos e extremidades distantes da atuação no cotidiano. Tom pode não ser apenas o homem cordial que aparenta há tantos anos. Como um ator, ele vai ser obrigado a se (re)encontrar com seu reverso, no caso, bem mais sombrio. Os objetivos do diretor são evidentes – e este é o maior problema de Marcas da Violência , que facilita mais do que deveria a vida do espectador. Há pouco mistério em se tratando de um filme que procura abordar o interior oculto do ser humano.
Marie Nyreröd desvenda Ingmar Bergman, centrando seu enfoque em como Bergman conseguiu canalizar artisticamente suas sensações e experiências, expondo-se através das personagens. Filme com material “ferozmente autobiográfico”, Fanny & Alexander , por exemplo, ajudou Bergman a reviver o apartamento da avó. “Posso me lembrar como eram os móveis, os quadros, como se passava de um quarto para o outro (...) Ainda tenho conexões com minha infância mais tenra”, assume o cineasta, que se revela para o espectador principalmente em Bergman e a Ilha de Faro . A diretora toca em pontos delicados para Bergman, como a relação distanciada com os próprios filhos e o modo como lida com a perspectiva da morte, “tema” abordado em filmes como O Sétimo Selo e o inédito Saraband . “Quando Ingrid (Bergman) morreu, disse para mim: ‘jamais a verei novamente’. Mas sinto sua presença (...) Eu admito que irei encontrá-la”, diz Bergman.
Em Trilogia – O Vale dos Lamentos , Angelopoulos revela através da câmera. Muitas seqüências, por exemplo, se descortinam diante do espectador como longos painéis. O cineasta começa mostrando planos gerais mas, aos poucos, passa a aproximar lentamente a câmera para destacar detalhes difíceis de serem percebidos de outro modo. Nesse sentido, é uma câmera que dirige o olhar do espectador, que mostra para o que se “deve” atentar, deixando claro, em certos momentos, que o importante está no fundo da imagem. Há um jogo entre o geral e o particular, o grandioso e o intimista que atravessa Trilogia – O Vale dos Lamentos , saga em tom menor de Theo Angelopoulos. A duplicidade também transparece na música. Nos momentos mais festivos, traz à tona sentidos de integração e resistência; em outros, chega como uma canção antiga evocando lembrança e saudade. Estas articulações ajudam o filme a não enveredar pela impessoalidade que, às vezes, assombra o gênero épico, ainda que, à medida que a projeção avança, o derramamento emocional abale, em parte, a força trágica e a simbiose entre as personagens e a História se torne mais esquemática.
Em todo caso, quem conhece trabalhos anteriores do diretor encontrará aqui uma série de elementos familiares. Um deles é a importância do teatro, não só como espaço físico (em determinado momento, Eleni e Alexis, os protagonistas, encontram refúgio num grande teatro) mas também como exercício de gênero (a tragédia). O diretor retorna também com a viagem sem rumo de dois personagens (como no belíssimo Paisagem na Neblina ), contada na tela grande através de cores esmaecidas (destaque para preto, branco e azul acinzentado) próprias a uma constante e eterna paisagem invernal.