É de rara felicidade a coincidência das retrospectivas de Werner Herzog e Jorge Bodanzky dentro do 11º Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade. Ambos os cineastas têm em comum a paixão pelo desconhecido, a teimosia em buscar imagens dos confins do mundo e o gosto pelo embate direto com a realidade. Clique aqui para conhecer os 13 filmes que compõem a mostra Bodanzky.
O livro Jorge Bodanzky – O Homem com a Câmera, de minha autoria (Coleção Aplauso / Imprensa Oficial do Estado de São Paulo), virá a público no contexto do festival. O lançamento carioca está previsto para o dia 31 de março, às 18h30, no Centro Cultural Banco do Brasil. Logo em seguida, às 20h30, haverá uma mesa-redonda em torno da obra de Bodanzky. Antes disso, ocorre o lançamento paulista, no Museu da Imagem e do Som, no dia 27 de março, das 18h30 às 20h30. A mesa-redonda em São Paulo está marcada para o dia 29, às 20 horas, no CCBB-SP.
Leia a seguir um trecho da introdução do livro.
POR TODOS OS CAMINHOS
Volta e meia, nos filmes de Jorge Bodanzky, vemos a proa de uma embarcação abrindo caminho entre as águas de um rio, oceano ou geleira. Mas pode ser também o pára-brisa de um carro avançando por estrada difícil, ou a janela de um avião recortada contra a imensidão de uma floresta. Esse tipo de imagem recorrente diz bem mais do que mostra à primeira vista.
Como nos filmes primitivos – quando as pesadas câmeras ainda não se moviam e os cinegrafistas recorriam a trens, automóveis e rodas gigantes para dar mobilidade contínua às imagens –, essas cenas potencializam o movimento. O cenário que passa pelo quadro fixo do visor replica, de certa maneira, o fluxo de fotogramas que passa pela janela do projetor, gerando a ilusão do movimento cinematográfico. Além desse sentido mais teórico, as imagens viajantes adquirem, na obra de Bodanzky, um valor de assinatura pessoal, uma marca de autor.
O deslocamento ocupa posição central no processo criativo do cineasta, assim como em sua história pessoal. Por razões que conjugam vocação e circunstância, a obra do paulista Bodanzky vem se estruturando como uma sucessão de viagens, muitas das quais constituem a própria matéria dos filmes. De sua ascendência austríaca pode ter nascido uma disposição especial para a curiosidade expedicionária, numa tradição que ligaria os alemães Alexander von Humboldt (cientista) e Werner Herzog (cineasta). “A satisfação é plena quando consigo juntar viagem e cinema. (....) Quanto mais longe, incômodo e precário, melhor”, afirma num trecho deste livro.
Mas as inconstâncias da produção de cinema no Brasil também foram responsáveis por transformá-lo num globe-trotter, protótipo do homem com a câmera a se abalar para onde a realidade o chama. Bodanzky já filmou nos quatro cantos do Brasil, com incidência maior na Amazônia e no Centro-Oeste, amplamente esquadrinhados pelas suas lentes. Fez documentários e cine-reportagens em diversos países da América do Sul e na Jamaica. Na Alemanha, onde estudou fotografia de cinema, teve uma base permanente de trabalho ao longo dos anos 1970 e 1980. Aventurou-se com sua câmera por autódromos europeus, pelas águas geladas do Oceano Ártico e pelas placas glaciais da Antártica.
Nem todas as suas viagens terminaram em filme. Algumas das mais intensas renderam não mais que a experiência da viagem – o que não chega a abater o ânimo desse cineasta que é também um velejador apaixonado. (...)
Nos últimos 30 anos, ele fotografou ou co-dirigiu dezenas de documentários culturais, etnográficos e políticos para televisões européias, especialmente alemãs. Muitos deles adotam uma narrativa de viagem, incorporando e explicitando as dificuldades e impasses do caminho. O acesso custoso a aldeias indígenas remotas, as precárias condições de higiene e conforto, a investigação arriscada em áreas de conflitos de terra, garimpos e segurança nacional, tudo isso dá aos seus filmes um sabor de aventura relativamente raro no cinema brasileiro moderno e contemporâneo.
Iracema e Terceiro Milênio, que estão entre seus melhores e mais conhecidos trabalhos, são road movies – ou river movies – que se produzem e se explicam pelo percurso que fazem seus personagens. O primeiro, semificcional, narra a convivência de um caminhoneiro e uma jovem prostituta ao longo da Transamazônica em construção. O segundo, documental, mostra a viagem eleitoral de um senador pelos confins do Alto Solimões. Já As Aventuras de Igor na Antártica transforma o registro de uma expedição familiar em fantasia musical infantil. Em filmes como esses, o vírus da aventura se inocula não apenas no formato e na tonalidade emocional, mas igualmente na incomum relação que estabelecem entre realidade e ficção.
Um novo caminho para o cinema brasileiro foi literalmente aberto por Iracema, em 1974. Admirador de Jean Rouch e John Cassavetes, Bodanzky criou uma forma inédita de mestiçagem entre a invenção ficcional e o compromisso documental. Transformou diálogos em entrevistas, gente de verdade em personagens, cenários reais em sets de filmagem não-invasiva, e colocou as convenções do road movie a serviço da denúncia social. A novidade, exibida clandestinamente em tempos de censura, exerceu forte influência em muitos cineastas que viam exauridas as formas de representação eleitas pelo Cinema Novo para dar conta da realidade brasileira. Passou-se a falar no gênero “semidocumentário”, denotando uma interação de linguagens que nunca mais deixaria de inspirar parcela significativa e avançada do nosso melhor cinema.
Gitirana, como Iracema co-dirigido por Orlando Senna, testava outras formas de diálogo entre ficção e documentário. Para reconstituir a saga de Os Mucker, Bodanzky e seu parceiro Wolf Gauer misturaram atores conhecidos a pessoas comuns da região de Sapiranga (RS) e experimentaram um tipo radical de docudrama, onde a encenação se amparava em referências históricas autênticas. Mesmo nos seus documentários aparentemente mais diretos e simples, como Igreja dos Oprimidos, a busca do real é sempre atravessada por elementos de criação, que podem estar num personagem, numa situação ritualística ou mesmo no comportamento da câmera, quase sempre empunhada pelo próprio diretor.
Ele entrou no cinema vindo da fotografia e manteve sempre uma relação visceral com a câmera. O equipamento tem sido uma extensão do seu corpo longilíneo, de pele curtida pela prolongada exposição ao sol e ao vento. (...) Com a câmera na mão e o pé na estrada, Bodanzky é um cultor entusiasmado do plano-seqüência, da liberdade de improvisar e do potencial dramatúrgico da realidade. Seu interesse pelas imagens pauta-se mais pelo teor de informação que pelo coeficiente de beleza. A descoberta lhe atrai bem mais que a mera elaboração de dados conhecidos e confirmados.
Tanto é assim que, de 1996 em diante, o cineasta multiplicou-se em criador de obras para as novas mídias eletrônicas. Bem longe de ser um nerd da computação, foi um dos primeiros homens de cinema a se aventurar pelo mundo dos CD-Roms e dos websites no Brasil. Com o Projeto Navegar, que em 2000 levou uma estação fluvial da internet às entranhas do Amapá, deu provas de pioneirismo e profissão de fé na modernidade.
É de muito se lamentar que parte considerável do trabalho de Bodanzky seja completamente desconhecido do público brasileiro. Os documentários que ele fotografou, co-dirigiu e ajudou a produzir para a TV alemã são insights originais de questões brasileiras como a ocupação econômica da Amazônia, a devastação da floresta, a manutenção e desaparição de culturas indígenas, a imigração externa e interna, as ações da sociedade civil em pontos remotos do país etc. De sua colaboração com colegas europeus resulta um original cruzamento do olhar estrangeiro com a perspectiva autóctone que ele próprio acrescenta.
Mas os filmes que correram o Brasil, seja em salas comerciais, seja no circuito alternativo – onde ele brilhou nos anos 1970 e 1980 com obras impactantes como Jari - foram suficientes para fazer de Bodanzky um mestre no seu ofício. (...)