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PRIMÁRIAS/CRISE

19.10.2006
Por Marcelo Janot
LIÇÕES DE POLÍTICA E DE CINEMA

Uma campanha presidencial, acredite, já foi tão rica do ponto de vista cinematográfico quanto político. Foi a que levou John F. Kennedy à presidência americana, em 1960. Ao filmar as primárias que elegeriam Kennedy o candidato do Partido Democrata, o jornalista Robert Drew mudou a história do documentário. Utilizando pela primeira vez um sistema de filmagem com câmeras mais leves, operadas na mão, e som captado simultaneamente, Drew criou o “cinema direto”, um estilo de documentário que hoje parece banal frente à enxurrada de produções estilo “reality show” que se multiplicam na TV e no cinema independente. Mas, naquela época, não se imaginava um documentário em que a câmera parecesse invisível frente ao seu objeto de estudo.



Primárias (Primary) está agora à disposição dos brasileiros em DVD, junto com outro documentário importantíssimo realizado por Drew três anos depois: Crise (Crisis), em que ele filma o presidente Kennedy, 5 meses antes de sua morte, enfrentando uma crise política interna. Ambos estão sendo lançados, recheados de extras valiosos, pela Videofilmes, a produtora de João Moreira Salles. São obrigatórios tanto para quem quer ter uma aula de cinema documental quanto para os interessados em política. Aliás, o lançamento dos filmes de Drew é quase um pagamento de uma dívida de gratidão de Salles, já que seu documentário Entreatos, sobre os dias que antecederam a eleição de Lula para a presidência em 2002, tem uma influência direta de Primárias.



Em 1960, o jovem Kennedy já gozava de prestígio como senador, mas sabia que para chegar à Casa Branca primeiro precisaria derrotar o político experiente Hubert Humphrey para sair candidato pelo Partido Democrata. Robert Drew, na época jornalista da revista Life, propôs aos seus editores acompanhar os candidatos em campanha no estado de Wisconsin, culminando com o dia da votação. Era a chance que Drew queria para experimentar o novo equipamento que ele e sua equipe haviam desenvolvido e estavam doidos pra testar.



Kennedy e Humphrey deram carta branca para que uma equipe de filmagem os acompanhasse o tempo inteiro e entraram no jogo de Drew: em nenhum momento o espectador acredita que eles estejam percebendo a presença da câmera ali e “encenando” suas atitudes. Com isso, Primárias acaba se tornando uma relíquia também pela proximidade inédita que tem com os bastidores do poder. Embora do ponto de vista conceitual ele seja mais bem-sucedido do que como realização cinematográfica (já que a nova linguagem que ali surgia ainda carecia de vários ajustes, especialmente no que diz respeito ao roteiro e à montagem), o filme ganha força quando Drew consegue colocar em prática o conceito de “intimidade” que parecia impossível na era pré-cinema direto. Ou seja, quando ele consegue penetrar nos bastidores não com o que é dito pelos personagens, mas registrando o senador Humphrey cochilando no carro de campanha, a um metro da câmera, ou quando mostra em close as mãos nervosas de Jackie Kennedy tentando discursar ao lado do marido.



Mérito de Drew e de sua equipe de cinegrafistas (Richard Leacock, D.A. Pennebaker e Albert Maysles), que posteriormente se tornariam nomes célebres do cinema direto. Aliás, os quatro estão presentes nos extras do DVD, durante uma conferência de cerca de 30 minutos em que explicam com detalhes sua técnica. A faixa de comentário em áudio, com Drew e Leacock, é excelente, já que eles podem explicar todo o método de trabalho com as imagens do filme ilustrando, e ainda contam, com muito bom humor, diversas histórias das filmagens. Leacock relembra que, num dos raros diálogos com os personagens do documentário enquanto a câmera estava desligada, perguntou a Jackie Kennedy, após filmá-la apertando inúmeras vezes as mãos de fãs, se ela não ficava com a mão doendo. E ela respondeu: “Você já experimentou dar mais de mil sorrisos por dia?”.



John Kennedy assistiu Primárias depois de eleito e gostou do que viu. Tanto que resolveu atender a um pedido feito por Drew na ocasião: que permitisse a filmagem de uma crise na Casa Branca durante seu governo. Em junho de 1963, a recusa do governador do Alabama, George Wallace, em aceitar que dois estudantes negros se matriculassem na universidade local, desafiando determinação da Justiça, pareceu um bom tema para outro documentário de Drew. Afinal, de um lado estava um governador conservador, racista e com espírito de lutador de boxe, e do outro estavam o presidente Keneddy e seu irmão Bobby, secretário de Justiça e encarregado de cuidar da questão pessoalmente.



Embora mais uma vez o filme se estruturasse no antagonismo entre duas forças políticas, com Crise Drew conseguiu ser mais bem-sucedido no que diz respeito à construção de um clima dramático que vai crescendo rumo ao embate derradeiro. Se em Primárias o momento final (a votação e a apuração da eleição) era tratado com um enfoque mais frio e contemplativo do que o registro dos momentos de campanha, em Crise o espectador é envolvido pelo suspense, já que como o governador diz que vai barrar a entrada dos negros pessoalmente na porta da universidade, um clima de apreensão é notado no comportamento de todos, e ressaltado pela montagem e pela narração.



Já tendo colocado a nova linguagem em prática por três anos, Drew, Leacock e cia parecem muito mais seguros daquilo que querem mostrar, e acabam deixando documentados não só um momento histórico da luta contra a segregação racial nos Estados Unidos, como o registro de um Kennedy de semblante tenso, já sentindo o efeito dos três anos de governo. O que nos leva a pensar em como João Moreira Salles teria registrado uma das muitas crises enfrentadas por Lula em seu primeiro mandato.



# PRIMÁRIAS (Primary)

EUA, 1960

Direção: ROBERT DREW

Fotografia: RICHARD LEACOCK, D.A. PENNEBAKER, ALBERT MAYSLES, TERRENCE MCCARTNEY FILGATE

Duração: 53 minutos

Extras:

- Faixa com comentário de Robert Drew e Richard Leacock

- Os Pioneiros - Pequeno documentário e entrevistas com quatro dos realizadores (30 min.)

- Albert Maysles conversa com João Moreira Salles sobre a cena das mãos de Jacqueline Kennedy (3 min.)





# CRISE (Crisis)

EUA, 1963

Direção: ROBERT DREW

Fotografia: RICHARD LEACOCK, D.A. PENNEBAKER, JAMES LIPSCOMB, HOPE RYDEN

Duração: 53 minutos

Extras:

- Faixa com comentário de Robert Drew e Richard Leacock

- Curta-metragem Rostos de Novembro, que registra cenas do velório e enterro de John F. Kennedy (13 min.)

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