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JABOR E O MUNDO DA INTIMIDADE

09.12.2006
Por Daniel Schenker
JABOR E O MUNDO DA INTIMIDADE

Arnaldo Jabor dialoga com o real e o imaginário em dois de seus filmes, Tudo Bem e Eu sei que vou te Amar , relançados nos cinemas. No primeiro, o diretor radiografa uma família capitaneada por um marido que interage com fantasmas e uma mulher que se expressa na batida intensa de sua carência por fantasias conjugais; no segundo, dá vazão à catarse de um casal jovem e recém-separado que descortina os bastidores do seu relacionamento à medida em que se deixa levar por uma espécie de estado de embriaguês crescente.



As duas produções foram filmadas em espaços fechados com pouca ou nenhuma abertura para o externo – no caso de Tudo Bem , um apartamento de classe-média (cenografia de Hélio Eichbauer), captado por uma câmera que evolui rumo à área interna do prédio; no de Eu sei que vou te Amar , uma casa luxuosa, com uma sala bastante ampla onde as duas personagens passam boa parte do tempo. As locações são personagens dos filmes que revelam, de diferentes formas, sinais de abandono – o apartamento, antigo, à espera de uma reforma que será, finalmente, concretizada pela dona (“Agora nossa vida vai mudar. As obras vão começar”, diz ela), ao passo que a casa parece contaminada pelo vazio (a imagem da piscina esvaziada, onde o casal se refugia) em sua dimensão agigantada.



A maior parte das personagens representa em ambos os filmes. Em Tudo Bem , a dona do apartamento encarna a figura da patroa simpática diante dos operários e, particularmente, de um deles que foi desalojado e não tem para onde ir com a família. É um esquema de representação, posto em prática de acordo com a conveniência do momento, que, há cerca de 25 anos, quando a produção foi realizada, parecia eficiente como método para postergar a explosão do caldeirão da discrepância social. Não por acaso, pobres e abastados não brigam; a violência desponta entre os parceiros de trabalho, entre os que estão no mesmo barco.



No apartamento de Tudo Bem todas as camadas da população se encontram na fila da canonização da empregada em transe. O caos se instala, mas não vale a pena tomar qualquer medida mais enérgica para reverter a situação. “Encontrar uma boa empregada está difícil”, assinala a dona do apartamento. Vez por outra, os papéis se invertem e a nova empregada, que se prostitui, veste-se de patroa e a imita numa representação canhestra. É o velho recurso da inversão necessária ao reestabelecimento da ordem. Já em Eu sei que vou te Amar , o casal imita vozes, troca de figurino e assume as facetas diversas de seus múltiplos eus. Não se sabe se tudo o que cada um conta é verdade ou mentira, mas importa menos ter certeza que constatar que eles não cabem numa determinada forma, num padrão instituído, no que foi previamente programado. O texto coerente que pronunciam não justifica seus atos não só porque as palavras parecem insuficientes para expressar o que sentem como pelo fato de eles não serem portadores de uma estrutura de funcionamento lógica, calcada no bom senso e na racionalidade.



Mas há distinções importantes entre os filmes. Em Tudo Bem , Arnaldo Jabor intercala a esfera existencial com a perspectiva sócio-econômica. Registra, como ficou marcado no slogan, “uma família cercada de Brasil por todos os lados”, formada por um pai que conversa com os seus fantasmas a respeito da sonegação da carne e se coloca como porta-voz de uma brasilidade algo patética (a fixação em discos com sons indígenas); uma mãe que extravasa o ardor de sua carência sexual no modo como fala da margarina e do feijão fradinho; dois filhos alienados, cada qual à sua maneira; e duas empregadas, uma benzedeira e a outra, prostituta. Em Eu sei que vou te Amar , Jabor fecha mais o foco sobre o casal jovem. “O mundo lá fora vai acabar e nós aqui nessa mediocridade”, diz ele, aludindo ao mundo externo apenas como subterfúgio vazio para escapar do embate matrimonial. “Dane-se o mundo”, responde ela, respaldada, ao que parece, pelo próprio Arnaldo Jabor, que, com todo direito, recorta suas personagens do contexto brasileiro para atirá-las num ininterrupto confronto afetivo.



O diretor também imprime registros diversos nos filmes – extraindo humor de uma realidade à beira(?) do nonsense (a exemplo da cena em que o síndico passa recolhendo assinaturas para proibir o trânsito de cachorros no prédio) em Tudo Bem e transitando entre os ingredientes passional e o piegas na arrebatada discussão do casal de Eu sei que vou te Amar . Finalmente, cabe observar que Jabor não reina sozinho nos filmes. Os atores são fortes aliados na busca pelo bom resultado, seja Fernanda Torres e Thales Pan Chacon, com jovialidade e intensidade, Regina Casé e Luiz Fernando Guimarães, com a irreverência característica do grupo Asdrubal Trouxe o Trombone, e Paulo Gracindo e, principalmente, Fernanda Montenegro, na execução precisa do descontrole de suas personagens.



# TUDO BEM

Brasil, 1978

Direção: ARNALDO JABOR

Produção: ARNALDO JABOR, CARLOS ALBERTO DINIZ

Roteiro: ARNALDO JABOR, LEOPOLDO SERRAN

Fotografia: DIB LUTFI

Elenco: FERNANDA MONTENEGRO, PAULO GRACINDO, REGINA CASÉ, LUIZ FERNANDO GUIMARÃES, ZEZÉ MOTTA, MARIA SILVIA

Duração: 102 minutos



# EU SEI QUE VOU TE AMAR

Brasil, 1986

Direção e Roteiro: ARNALDO JABOR

Produção: HÉLIO FERRAZ, ARNALDO JABOR

Fotografia: LAURO ESCOREL

Elenco: FERNANDA TORRES, THALES PAN CHACON

Duração: 115 minutos

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