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O CATADOR E OS CATADORES

24.12.2006
Por Carlos Alberto Mattos
O CATADOR E OS CATADORES

Ilha das Flores e Estamira são duas peças de uma possível trilogia sobre o lixo no cinema brasileiro. A terceira é Boca de Lixo, de Eduardo Coutinho, agora disponível como bônus do DVD de Peões. É um doc clássico, experiência fundamental para que Coutinho burilasse o seu famoso “método”.



Ele chegou ao lixão de Itaoca (RJ), em 1992, com uma pequena equipe que incluía na câmera de vídeo o Breno Silveira do futuro Dois Filhos de Francisco. Vinha desprovido de qualquer pesquisa prévia, imbuído apenas da vontade de alcançar a intimidade daquele grupo de excluídos entre excluídos. O primeiro teste – e um dos mais duros da carreira do diretor – foi vencer a resistência de boa parte dos catadores a botar a cara na frente da câmera. Os primeiros dos dez dias de gravação foram gastos numa árdua e gradual conquista de confiança. Logo no início do média-metragem, vemos um bloco de tomadas em que pessoas fogem do campo visual, tapam o rosto ou mandam a câmera desviar-se para outro lado. Demonstram não apenas ter consciência do estigma que as acompanha, mas também que o preconceito grassa entre as suas próprias vítimas.



Os catadores acanham-se com sua condição, muito embora insistam em reafirmar que a atividade que desempenham é um trabalho como outro qualquer. A exemplo das rápidas entrevistas iniciais de Santa Marta: Duas Semanas no Morro, Coutinho trabalha com o horizonte de um mundo de trabalhadores. Ex-domésticas, ex-lavradores e ex-operários estão unificados numa nova profissão. Orgulham-se de não serem nem vagabundos, nem ladrões, o que os faz subir alguns degraus no organograma social. A pessoas envergonhadas da própria imagem o documentarista oferece fotografias impressas em papel, imagens retiradas do próprio vídeo que está sendo feito. Quando uns identificam os outros pelos nomes, é a idéia de comunidade que se faz presente, em toda sua espontaneidade.



As câmeras não se desviam dos aspectos naturalmente sórdidos: a matéria em decomposição, as mãos que chafurdam nos detritos, a proximidade entre homens e urubus, gente que come ali mesmo o que encontra de aproveitável. Na verdade, não encontram grande coisa, pois, como diz alguém a certa altura, o lixo que chega ali já fora “catado” em algum local intermediário.



No olhar do Coutinho dessa época, prevalecia a disposição restauradora. Ele não queria mostrar o inferno, mas revelar a humanidade de uma gente vista usualmente como mero emblema social. Acabou encontrando manifestações de alegria relacionadas ao lixo, assim como sinais de solidariedade típicos de aglomerações populares e exemplos de profissionalismo compenetrado. Conversou com famílias relativamente bem constituídas, para quem viver do lixo não significava deixar de viver.



Ao contrário de Estamira, não há uma personagem central, embora a catadora Jurema e o velho Enock destaquem-se como os mais ricos. De resto, é um típico filme coral de Coutinho. Em 1992, ele ainda usava trilha sonora (sons reciclados por Tim Rescala), mas aos poucos ia reconfigurando a estrutura de seus filmes, deixando de pautar-se por temas e abrindo-se ao predomínio das personagens, com sua multiplicidade de histórias, experiências e fabulações. Boca de Lixo partia do grau zero do documentário para estabelecer experiências únicas através da insistência, da simplicidade e de sutis estratégias de aproximação. Este, cada vez mais, ia passando a ser o seu método.



Nota: este texto é em parte adaptado de um capítulo do meu livro Eduardo Coutinho: O Homem que Caiu na Real, editado em Portugal.

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