Por trás de toda a aparente descontração e informalidade que marcou o primeiro Paracine - Festival de Cinema de Paraty, encerrado no último sábado, a comunidade cinematográfica brasileira viu surgir o embrião de um evento que tem tudo para se firmar como o grande encontro anual de exibição e discussão do curta-metragem no país.
Sem menosprezar a importância e o gigantismo dos dois principais festivais de curtas do Brasil, o Curta Cinema produzido por Ailton Franco e Rossine Freitas no Rio, e o Festival Internacional de Curtas de São Paulo, produzido por Zita Carvalhosa, o Paracine tem a geografia a seu favor: reunidos durante quatro dias em uma cidade que dispensa elogios, curta-metragistas podem ver como seus filmes são recebidos por um público quase cru em cinema e esbarrar com seus colegas em cada esquina deste paraíso histórico.
Além disso, ele se tornou o primeiro festival sem bitola do país. Os filmes concorrentes foram projetados na bitola de escolha de seus realizadores, e a competição os dividiu apenas em ficção e documentário, sem fazer distinção entre 35mm, 16mm, mini DV, Super-8, etc. Essa democratização, somada ao fato de que os curtas eram exibidos em horário nobre, em disputadíssimas sessões gratuitas, acabou com a gritaria que geralmente envolve a marginalização do formato nos principais festivais brasileiros, como Gramado e Brasília.
O excesso de informalidade e ausência de protocolos personificados na figura emotiva e carinhosa da organizadora Anna Maria do Nascimento Silva pode ter até deixado em alguns a impressão de bagunça e oba-oba. Mas por detrás dos tropeços organizacionais de marinheiros de primeira viagem havia uma imensa seriedade conceitual. Entre os convidados, nada de celebridades instantâneas, coadjuvantes de Malhação ou estrelas globais. Entre a imprensa, foram vetadas as revistas Caras, Quem Acontece e outras mais interessadas nas fofocas e na indumentária dos convidados do que nos filmes. E entre os jurados, figuraram nomes como os dos cineastas Walter Lima Júnior e Rogério Sganzerla (ficção) e Eryk Rocha e Tetê Moraes (documentário).
O que se viu foi uma grande festa, tanto para quem fez, quanto para quem assistiu os filmes. A tenda-cinema gigante instalada no meio de um estacionamento virou o ponto de encontro de gente que provavelmente nunca tinha ido ao cinema na vida. Muitos estranharam a linguagem experimental de certos curtas, alguns acharam que cinema é circo, conversando alto e gritando para interagir com o filme, mas a maioria permaneceu atenta. Vale ressaltar que o prêmio do público para curta de ficção foi para O Sol Alaranjado, de Eduardo Valente, realizado em P&B, 16mm, com pouquíssimos diálogos e forte carga dramática. O público adorou, reagindo de forma surpreendente: às gargalhadas nas cenas em que a mulher convive com o cadáver do pai.
Curioso que, apesar da democratização das bitolas, o júri de ficção tenha sido mais conservador que o público e premiado apenas filmes de 35mm, dividindo o prêmio entre O Encontro, de Marcos Jorge (melhor filme, direção, ator, atriz e fotografia), O Céu de Iracema, de Iziane Mascarenhas (trilha sonora e montagem), Sinistro, de René Sampaio (roteiro e som) e Homem Voa? , de André Ristum (direção de arte) – os três primeiros já bastante laureados em outros festivais.
Na categoria documentário, pôde-se observar uma certa tendência ao formato de reportagem televisiva. Poucos se aproximavam de uma linguagem mais cinematográfica. No final das contas, alguns filmes que buscavam a experimentação acabaram premiados, caso de Geografia do Som, de Fábio Carvalho (melhor montagem e trilha sonora), e Atrocidades Maravilhosas, de Renato Martins, Lula Carvalho e Pedro Peregrino (melhor fotografia). O que chamou mais a atenção entre os documentários foi a pesquisa de personagens, tanto que o júri decidiu criar um prêmio especial de escolha de personagem, que foi atribuído ao filme Todos Os Homens, de Sandro Tebaldi, sobre um morador do subúrbio carioca que já foi travesti e optou por simplesmente viver como mulher. Os demais prêmios foram para Vaidade, de Fabiano Maciel (roteiro e prêmio especial do júri); Na Garupa de Deus, de Rogério Corrêa (som); Silva, de Beto Sporkens (direção); e À Margem da Imagem, de Evaldo Mocarzel, que levou o prêmio de melhor filme segundo o júri oficial e o júri popular (clique aqui e leia o artigo de Carlos Alberto Mattos sobre o filme).
Mas o Festival, que incluiu também em sua programação retrospectivas de trabalhos dos festivais de Vierzon e de Lyon, não se limitou aos curtas. O novo filme de Murilo Salles, Seja o Que Deus Quiser, foi exibido numa inédita projeção digital, utilizando o novíssimo software da Microsoft Windows Media 9 Series. Um clique do mouse e o filme foi parar na tela grande com uma qualidade impecável de projeção. Aliás, a mudança estética e comercial trazida pelo cinema digital foi assunto de um esclarecedor debate, que contou com a participação dos diretores dos festivais digitais franceses, da pesquisadora Ivana Bentes, do diretor de fotografia Toca Seabra (O Invasor) e de especialistas da Microsoft.
Outra grande atração do Paracine foi uma mostra paralela com documentários da emissora de TV italiana RAI, com a presença de três diretores, Roberto Torelli, Carlo Freccero e Marco Giusti. Infelizmente os filmes não tinham legenda, por isso se tornou quase impossível entender A Força e a Razão, documentário de Roberto Rossellini em que o diretor italiano entrevista o então presidente chileno, Salvador Allende, em 1971.
Mais fácil de entender foi o ótimo documentário Memórias de Garrincha, que Paulo Cezar Saraceni dirigiu para a RAI em 2001. Com depoimentos diversos como os dos ex-jogadores Nilton Santos, Afonsinho e Amarildo (este, num divertido italiano macarrônico), do músico italiano Sergio Bardotti, do diretor de fotografia Mario Carneiro (que trabalhou com Joaquim Pedro de Andrade em Garrincha, Alegria do Povo) e até um trecho de uma entrevista em que o craque Ronaldinho fala do verdadeiro fenômeno de outrora. O filme serve como uma espécie de complemento ao grande documentário de Joaquim Pedro, e entre as imagens de arquivo resgata apresentações de Elza Soares na Itália, cantando Máscara Negra em italiano. O belíssimo final, com Elza Soares, em um show recente, cantando O Meu Guri, às lágrimas, câmera em close, é de arrepiar.
Pena que, lamentavelmente, o documentário Memórias de Garrincha permaneça inédito comercialmente tanto na Itália quanto no Brasil, por problemas comerciais envolvendo a liberação dos direitos de exibição de cenas de Garrincha Alegria do Povo, incluídas no documentário de Saraceni. Coisas do nosso cinema, que ainda merece muita discussão.
Marcelo Janot integrou o júri de documentários no I Paracine