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CIDADE DOS SONHOS

12.11.2002
Por Luciano Trigo
PARA FRUIR, NÃO PARA INTERPRETAR

Na época do lançamento de Cidade dos Sonhos (Mulholland Drive) nos cinemas, os jornais e revistas dedicaram um espaço gigantesco a tentativas de interpretação que dessem ao filme de David Lynch uma coesão e um sentido que ele absolutamente não tem. O que leva a pensar que o cinema - não na sua linguagem, naturalmente, mas na sua relação com o público, na sua "recepção" - está muito atrasado em relação, por exemplo, às artes plásticas e a literatura, onde as diversas rupturas modernistas libertaram há tempos a obra de arte da necessidade de apresentar unidade e coerência. Neste sentido, a perplexidade que o filme gerou parece tão antiquada e obsoleta quanto um eventual sentimento de escândalo diante de um quadro da fase cubista de Picasso, por exemplo. O cinema de David Lynch em geral, e Cidade dos Sonhos em particular, propõe ao espectador uma experiência de fruição, e não de interpretação.



Já nos créditos de abertura e na seqüência inicial, sublinhada pela trilha sonora sombria e hipnotizante de Angelo Badalamenti, fica claro que estamos diante de um filme que pretende falar mais aos sentidos que a razão, e que se dirige ao inconsciente do espectador. O suspense e a estranheza são produzidos mais pela atmosfera criada que pelas armadilhas convencionais dos enredos, que ocultam até o último segundo a chave de um enigma. David Lynch caminha no sentido inverso: começa contando uma história aparentemente linear, e da metade para o fim embaralha tudo, numa viagem alucinante. É claro que esta impressão de que falta uma explicação que amarre a narrativa tem a ver com o fato de Cidade dos Sonhos ter sido pensado, originalmente, como piloto de um seriado de TV que não vingou. Daí a pletora de tramas paralelas, de personagens e episódios isolados que aparecem e somem.



Curiosamente, a divisão do DVD em "capítulos" sublinha este caráter de colcha de retalhos do filme: os diversos núcleos são coerentes em si, o que falta são os elos que dêem ao conjunto um sentido global. Por exemplo a seqüência do sujeito que assassina o amigo a tiros (e depois se vê obrigado a matar mais duas pessoas, por uma sucessão de trapalhadas) para roubar seu caderninho de telefones é ótima, mas parece fazer parte de outro filme. Numa longa temporada televisiva, Lynch possivelmente teria dado um jeito de ordenar as peças do quebra-cabeças. Ou não: basta pensarmos em Twin Peaks, que despertou uma controvérsia semelhante quando foi ao ar: muita gente continua sem saber até hoje quem matou Laura Palmer.



Nesta altura do campeonato, tentar resumir mais uma vez um enredo irresumível seria perda de tempo, e tiraria parte da graça de Cidade dos Sonhos, por condicionar o olhar do espectador, quando o ideal é deixar que ele se perca pelo verdadeiro "jardim de caminhos que se bifurcam" que é o filme. Melhor chamar a atenção para alguns detalhes desta fantasia sobre os bastidores da indústria do cinema, labiríntica como um conto de Jorge Luis Borges.



Por exemplo, a simbiose crescente e sutil entre a morena Rita/Camila Rhodes (Laura Elena Harring, que, como lembram os excelentes extras do DVD, foi Miss EUA em 1985) e a loura Betty Elms (Naomi Watts, filha de uma hippie com um engenheiro de som do Pink Floyd). Uma e outra, por vias diversas, são veículos para uma discussão sobre a identidade: uma quer recuperar a identidade perdida, a outra quer afirmaá-la ganhando fama como atriz: a união erótica aproxima e confunde as duas. É a passagem da inocência e da pureza ao território da obscenidade e da perversão mais loucas, bem ao gosto do diretor.



Outra interpretação a destacar é a de Justin Theroux, que faz o diretor demitido pela pressão de poderosos: sua reação ao chegar em casa e se deparar com a mulher e o amante é engraçadíssima, bem como o seu encontro com o misterioso cowboy, que reforça a atmosfera onírica de Cidade dos Sonhos.



Os extras são caprichados. Além de mostrarem imagens do making of do filme, o que permite ver David Lynch em ação, especialmente o cuidado com que ele dirige cada detalhe e a atenção que dá aos atores, o DVD traz entrevistas com todo o elenco principal e com o próprio diretor. Lynch faz digressões sobre o seu fascínio por Hollywood, uma cidade onde todas as pessoas, de certa forma, fazem parte de um universo fictício, "representado", mas evita explicar ou justificar Cidade dos Sonhos. Aliás, o formato DVD permite que o espectador "monte" sua própria história, trocando os capítulos de ordem conforme sua interpretação pessoal. Fica a sugestão.



# CIDADE DOS SONHOS (MULHOLLAND DRIVE)

EUA, 2001

Direção e roteiro: DAVID LYNCH

Elenco: JUSTIN THEROUX, NAOMI WATTS, LAURA HARRING, ANN MILLER

Duração: 145 minutos

Região do DVD: 4

Legenda: Inglês, Espanhol, Português

Formato de Tela: Fullscreen

Extras: Making of, trailer, entrevistas com o diretor e o elenco, biografias do diretor e do elenco, filmografia.

Distribuidor: Europa Filmes

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