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MOSTRA DO PALCO À TELA

08.02.2010
Por Daniel Schenker
REGISTROS PRECIOSOS DE INSTANTES TEATRAIS

O Centro Cultural Banco do Brasil, com o apoio da Cinemateca da Embaixada da França no Rio de Janeiro, exibiu recentemente uma mostra, intitulada Do Palco à Tela , composta por filmes oriundos de montagens de prestigiadas companhias de teatro internacionais e de entrevistas com alguns dos mais importantes diretores em atividade – casos de Peter Brook, Ariane Mnouchkine, Patrice Chéreau e Claude Régy.



Peter Brook foi lembrado através de dois filmes: Brook por Brook , assinado por seu filho, Simon, e A Tragédia de Hamlet , registro da montagem que mostrou no Teatro Carlos Gomes, no Rio de Janeiro, reveladora do despojamento que passou a caracterizar muitas de suas produções, a exemplo de Fragments , composta por peças curtas de Samuel Beckett, O Grande Inquisidor , quase monólogo com o ator Bruce Myers a partir de um capítulo importante de Os Irmãos Karamazov , de Dostoievski, e Tierno Bokar , baseada em livro do etnólogo Amadou Hampaté Bâ – todas apresentadas no Brasil.



O despojamento do teatro de Brook (à frente do Théâtre des Bouffes du Nord, em Paris) está, possivelmente, ligado à experiência do diretor com os atores de seu Cerntro Internacional de Pesquisa Teatral nos vilarejos africanos. Sem falarem a mesma língua que os espectadores, os atores (eles mesmos de partes diversas do mundo) palmilharam a África, valendo-se da luz do sol como recurso de iluminação e utilizando um tapete como demarcação de espaço da cena.



Já O Théâtre du Soleil, a companhia conduzida por Ariane Mnouchkine localizada nos arredores de Paris, encenou, há alguns anos, Tambours sur la Digue , com texto de Hélène Cixous, dramaturga do grupo. Sobressaía no palco a precisão absoluta dos atores, metade deles encarregada de fazer os titereiros e metade de fazer os bonecos manipulados. O vínculo com o Oriente, a conexão com os acontecimentos políticos e o investimento numa cena ritualizada (antes mesmo do início das apresentações, os atores se maquiam diante dos espectadores) são características comuns a vários espetáculos do Soleil, que, porém, deu uma guinada com o minimalista Les Ephémères .



Vale lembrar que o Estação Botafogo já fez uma projeção de Au Soleil même la Nuit , making of da montagem de Tartufo , de Molière, no qual uma enérgica Ariane Mnouchkine foi flagrada dirigindo seus atores, quase sempre registrados com texto na mão. Afinal, Mnouchkine gosta de experimentá-los em diferentes personagens antes de determinar a escalação. E procura fazer com que recuperem a liberdade de crianças brincando em terrenos baldios. No documentário, o público acompanha a estrutura de funcionamento do Soleil, pautada pela divisão de tarefas e pela dedicação exclusiva dos atores, entre os quais a brasileira Juliana Carneiro da Cunha.



Patrice Chéreau foi represetado na mostra por meio do filme Uma Outra Solidão , de Stéphane Metge, centrado na ligação entre o diretor e o dramaturgo Bernard-Marie Koltès, particularmente com seu texto mais aclamado, Na Solidão dos Campos de Algodão , que Chéreau encenou mais de uma vez. O espectador testemunha os procedimentos de direção empregados por Chéreau (também acumulando a função de ator). Em determinado momento, Chéreau diz que sua fala visa a provocar um insight no ator, o que pode levar a pensar que sua direção não parte de ideias pré-estabelecidas, mas resulta do material não planejado que surge em sala de ensaio, como se o diretor se propusesse a trilhar por caminho desconhecudo, mesmo a partir de um texto que conhece tão bem. Stéphane Metge investe, ainda que brevemente, num contraste entre a direção de Chéreau calcada na presença do ator, em Na Solidão dos Campos de Algodão , e em sua condução de uma ópera como Don Giovanni , de Mozart.



Arnaud de Mezamat e Elizabeth Coronel entrelaçam, em Claude Régy, o Transmissor , declarações do encenador, sua experimentação em torno do inacabado Woyzeck , de Georg Büchner, e cenas de Lenz , também de Büchner, A Morte de Titangilles , de Maurice Maeterlinck, e A Cavalgada no Lago da Consciência , de Peter Handke. Em seu depoimento, Régy problematiza a relação tradicional entre ator e personagem, questão, de certo modo, ilustrada através do trabalho que propõe em Woyzeck , ensaiado com jovens atores com os quais já tinha contato anterior. Régy aconselha cada um a “achar em si de onde vem a fala, assim como o autor encontrou a escrita”.



Talvez por isto, os atores experimentem a palavra, tateando-a, como se estivessem dizendo algo que estão descorindo no exato momento da fala. Parecem fornar uma espessura entre a fala e a realização de ações, também lentas. Na verdade, Mezamat e Coronel acionam com vários níveis de escritura no teatro de Régy: a escrita dramatúrgica (vide o depoimento da escritora Nathalie Serraute e a apropriação de Régy de obras de autores variados, como Harold Pinter e Botho Strauss), do diretor, dos atores (a partir de uma disposição em visitar instâncias pessoais desconhecidas, secretas) e dos espectadores (como co-autores estimulados a se apropriar do que assistem). “Enquanto não virmos a imagem (da palavra), o espectador não a verá”, avisa Régy, referindo-se à importância do ator falar a partir de imagens concretas e não genericamente.



Do Palco à Tela também trouxe registros de montagens, a exemplo de Tio Vânia , uma das quatro grandes peças de Anton Tchekhov (as outras: O Jardim das Cerejeiras , As Três Irmãs e A Gaivota ), na versão de Julie Brochen captada por Jean-Baptiste Mathieu. Há características nesse registro cinematográfico que ora aproximam, ora distanciam de Tio Vânia em Nova York , filme de Louis Malle realizado a partir da montagem de André Gregory para o mesmo texto de Tchekhov.



Se no Tio Vânia de Malle/Gregory, a “ação” começa com a chegada dos atores ao teatro, na Rua 42, em Nova York, no filme de Mathieu o espectador ouve as primeiras falas de Tio Vânia fora do espaço teatral. No primeiro caso, a apresentação é feita para poucos e selecionados espectadores; no segundo, para nenhum, com o espaço da plateia sendo, inclusive, utilizado como área de encenação. Ao contrário do constatado na montagem de André Gregory, na de Julie Brochen os atores surgem em embates físicos contundentes, realçados pelos closes da câmera de Mathieu. Dão vazão a personagens desesperadas diante da frustração decorrente do fato de não terem concretizado suas aspirações, diminuindo, num certo sentido, a conhecida discrepância entre interioridade e exterioridade, normalmente realçada em Tchekhov. No elenco, Bruce Myers, ator constante em trabalhos de Peter Brook, interpreta o combatido Professor.



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