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VLADIMIR CARVALHO – DRAMATURGIA DA PRESENÇA

29.07.2010
Por Carlos Alberto Mattos
VLADIMIR CARVALHO - DRAMATURGIA DA PRESENÇA

Em cada uma de suas 15 edições, o Festival Brasileiro de Cinema Universitário homenageou um mestre. Este ano, a palavra “mestre” ganha duplo sentido: Vladimir Carvalho lecionou cinema por 22 anos na Universidade de Brasília e é também um mestre do documentário brasileiro. Para o catálogo do evento, escrevi o seguinte texto sobre o valor da presença de Vladimir no interior do quadro de seus filmes:





A presença do cineasta dentro da cena de seus filmes é um dos temas cruciais da teoria e da análise dos documentários. Desde que Jean Rouch e Edgar Morin, em Crônica de um Verão (1961), instituíram essa presença como dispositivo essencial do cinema-verdade, a participação direta do documentarista alterou profundamente os cânones de objetividade e ilusionismo do cinema documental, acrescentando novas camadas ao campo de significação dos filmes.



Diretores como Michael Moore, Nick Broomfield e Morgan Spurlock chegam a por vezes concorrer com seus personagens pela ocupação do espaço audiovisual e pela enunciação dos argumentos encampados pelos filmes. A proliferação dos documentários pessoais acentuou essa prática do corpo presente, transformando o documentarista no próprio centro da dramaturgia.



No Brasil, essa herança demorou a ser incorporada, passando ao largo dos filmes da época do Cinema Novo e aparecendo com algum vigor nos clássicos programas do Globo Repórter dos anos 1970 e, mais tarde, nos documentários de Eduardo Coutinho a partir de Cabra Marcado para Morrer. Mais recentemente, também os documentários em primeira pessoa fincaram bandeira no Brasil, com destaque para 33, de Kiko Goifman, e Passaporte Húngaro, de Sandra Kogut.



Nesse cenário, chama atenção a performance de Vladimir Carvalho em momentos cruciais de vários de seus filmes, desde o início da década de 1970.



Mesmo que não botasse a cara diante de suas próprias câmeras, Vladimir já imporia um volume de subjetividade considerável por conta de suas eleições de estilo e de linguagem. Tomo aqui a liberdade de citar a mim mesmo, com um trecho da introdução ao meu livro sobre o diretor: “O uso maciço da poesia e da música é outra característica destacada na obra do documentarista, que rejeita o purismo dos não-intervencionistas. Com isso, erigiu-se numa espécie de rapsodo, movido ora pela indignação, ora pela admiração, mas nunca pela curiosidade indiferente. Seus filmes operam no registro da empatia, deixando o autor transparecer em cada decisão de corte, em cada escolha sonora, em cada tijolo da edificação”.



Para além dessa presença virtual, manifesta na construção das narrativas, Vladimir Carvalho faz um uso variado e incisivo da sua presença física com vistas a produzir (ou arrancar) os sentidos que almeja. Nos encontros para entrevistas, o cineasta com frequência se coloca dentro dos planos desde o momento da chegada e abordagem. Sua expressão e postura corporal indicam claramente o grau de adesão ou questionamento face ao interlocutor. Uma dramaturgia instantânea se estabelece entre quem fala e quem ouve, oferecendo-se à percepção do espectador. Isso é marcante em Conterrâneos Velhos de Guerra, a saga dos candangos que construíram Brasília, contada através do olhar solidário de um nordestino que se sentia também um candango, embora na área da cultura.



O sorriso e o semblante de admiração sublinham suas conversas com José Américo de Almeida e Ariano Suassuna, por exemplo, em O Homem de Areia. Ou com Teotônio Vilela, em O Evangelho Segundo Teotônio. A consideração, porém, não o impede de promover um curto-circuito na cena quando isso se faz necessário. Um caso clássico é a entrevista com Oscar Niemeyer para Conterrâneos Velhos de Guerra, quando Vladimir insiste em extrair do arquiteto uma opinião sobre um massacre de operários levado a cabo pela polícia da Belacap durante as obras de construção da cidade. A identificação política e a reverência artística e pessoal por Niemeyer são momentaneamente superadas pela investigação do documentarista, a ponto de causar a irritação do entrevistado. Mais que um depoimento, ocorre ali um duelo entre duas instâncias igualmente vivas e atuantes dentro do espaço fílmico.



Em Barra 68, tome-se, de um lado, o sentido de camaradagem das cenas em que Vladimir reconstrói com Hermano Penna e outros as filmagens da invasão da UnB pelo Exército em 1968. São comparsas em busca de resgatar um momento histórico. De outro, veja-se a atitude do diretor ao colher o testemunho do ex-reitor José Carlos Azevedo, que pediu a invasão. Aqui temos uma espécie de revanche: se a visita começa sob o signo de uma aparente cordialidade, logo se constitui como uma “invasão” do documentarista à casa do vilão para confrontá-lo com suas responsabilidades.



Mas não só nas entrevistas o realizador instrumentaliza-se como personagem significante. Um dos exemplos mais curiosos está em O País de São Saruê, filmado entre 1966 e 1970, época em que metalinguagem era quase um tabu no documentário brasileiro. A partir do relato de um camponês visionário que jurava haver urânio em suas terras, Vladimir decidiu encenar uma entrevista espalhafatosa, como se fosse a grande mídia. Empunhou ele mesmo uma câmera, enquanto o irmão Walter Carvalho (assistente de direção) fazia o papel de um fotógrafo agitado. A cena mescla procedimentos de evidência documental e reconstituição ficcional, antecipando em muito não só essa mescla hoje rotineira, como também a exposição da equipe e do fazer cinematográfico.



Mutirão, um curta-metragem de 1976, passava uma visão crítica da intervenção da classe média como consumidora numa comunidade de artesãos tradicionais no interior de Goiás. Para enfatizar esse sentido e, ao mesmo tempo, incluir o cinema como mais uma intervenção, Vladimir fez a equipe aparecer em diversas ações de ingerência no ambiente local: o cinegrafista Fernando Duarte filmando as tecelãs, uma assistente gravando depoimentos, o próprio diretor passando instruções a uma figurante e uma foto em que ele é visto retirando telhas de uma casa para viabilizar a iluminação de uma cena.



Eis uma maneira interessante – apenas mais uma – de usufruir a obra de Vladimir Carvalho. Procurar os rastros de sua presença, e o que ela significa ou instaura dentro dos filmes, é encontrar um documentarista desde sempre moderno e pessoal.

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