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A CRIAÇÃO EM QUESTÃO

21.02.2003
Por Daniel Schenker
A CRIAÇÃO EM QUESTÃO

Está escrito no material recebido pela imprensa: “em 1999, na época em que seu roteiro, ‘Quero ser John Malkovich’, estava sendo levado para a tela grande pelo cineasta Spike Jonze, Charlie Kaufman foi incumbido pelo diretor/produtor Jonathan Demme e seu sócio de produção Ed Saxon a adaptar o best seller de não-ficção da autora novaiorquina Susan Orlean, ‘O ladrão de orquídeas’”. Adaptação , novo trabalho de Jonze, não é o resultado de uma determinada incumbência mas sim um filme sobre o fazer. Ou, melhor dizendo, um filme sobre o momento anterior ao fazer.



Não se trata simplesmente de flagrar o artista frente ao papel em branco, petrificado diante da possibilidade de não conseguir realizar uma tarefa com a qual se comprometeu. Adaptação fala do processo de criação – não por acaso, um processo que remete ao princípio do mundo, a uma necessidade de primeira ordem no ser humano (ainda que desvalorizada no aqui/agora): a urgência de encontrar uma motivação que justifique a vida todos os dias. Transformado em personagem, Charlie Kaufman constata que a única forma de ser singular é encontrando a sua própria verdade e tornando-a matéria-prima artística (“Não entendo nada sobre a minha existência patética. É a única coisa sobre a qual estou preparado para escrever”). Com uma discussão tão preciosa em mãos, Spike Jonze perde campo ao buscar esta singularidade através de formas exteriorizadas como se acreditasse que para atingir o status de criador precisasse ser criativo a todo instante. A resposta está numa fala do próprio Charlie Kaufman, que diz, no filme, que “escrever é explorar o desconhecido”. De fato, o contato com o desconhecido em si mesmo (ou seja, a autenticidade por excelência) salva qualquer artista da armadilha dos clichês.



Há ainda um outro ponto importante, contido no próprio título. Charlie está envolvido com a adaptação de O ladrão de orquídeas , um livro, segundo ele, destituído de um gancho cinematográfico. Mas o dado fundamental não é este e sim a dificuldade em lidar com uma obra já existente. Ele foi contratado para fazer uma transposição seguindo a cartilha de Hollywood (simbolizada num contraponto bobo com o irmão, descrito como perfeito funcionário do sistema) e hesita entre o medo em mexer numa criação alheia e o desejo de se apropriar daquilo que faz, de assumir uma autoria – o que significaria transcender o plano limitado da mera adaptação. De fato, não é possível criar se contentando com o posto de ‘a serviço’, se mantendo na retaguarda. Há que querer algo com paixão.

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