Glauber Rocha fez seus filmes mais importantes entre 1964 e 1969. Walter Salles fez os seus entre 1998 e 2004, ou seja, de 30 a 40 anos depois. No entanto, e apesar das profundas diferenças biográficas e de estilo, parte considerável da crítica latino-americana vê uma linha de permanência e continuidade entre as obras dos dois. Isso se manifestaria, pelo menos, no que diz respeito à escolha de personagens populares, à temática nordestina e a um tipo de fabulação passível de ser reconhecida como, mais que brasileira, continental.
Essa aproximação de identidades, tão útil para se entender a construção de uma imagem do cinema brasileiro moderno e contemporâneo, é estudada em profundidade por Eliska Altmann no livro O Brasil Imaginado na América Latina – a crítica de filmes de Glauber Rocha e Walter Salles (Contra Capa/Faperj, 2010). O foco é a recepção crítica dos dois realizadores em países latino-americanos. Com mais peso em Cuba e Argentina para Glauber, e no México para Walter.
Ao longo do livro, Eliska destaca trechos de críticas que denotam a percepção de Glauber ora como “gênio”, capaz de retratar o Brasil para além das facilidades da alegoria e do naturalismo, ora como epíteto de um nacionalismo algo tacanho e veiculador de um exotismo para exportação. De qualquer forma, em sua “sociologia da crítica”, a autora encontra um movimento de reciprocidade: Glauber teria sido de certa forma uma construção da crítica, assim como também teria forjado, com seu discurso de autorrepresentação altamente influente, um cânone para a crítica latino-americana dos anos 1960. Um cânone baseado nas propostas do Cinema Novo e que continuaria a prevalecer nos anos 90 e 2000.
Se Glauber era o protótipo do autor, cuja biografia se colava à obra, e cujas características pessoais (barroco, por exemplo) se identificavam com a realidade do país, Walter Salles é visto como um cineasta pessoalmente à parte do seu cinema e mais associado a um certo “internacional-popular”, em lugar do “nacional-popular” dos anos 60. Mas enquanto a crítica brasileira usa essa diferença para rejeitar a ideia de uma continuidade entre os dois diretores, a parte mais visível da crítica latino-americana vê a continuidade apesar disso. E vai apontar, de Terra em Transe a Diários de Motocicleta, um viés de pan-latino-americanismo revolucionário que evocaria José Martí, Bolívar e Che Guevara.
Eliska analisa a visão dos críticos latinos a respeito de espaço, tempo, povo e outras categorias nos filmes de Glauber e Walter. Lança mão de teorias de André Bazin, Michel Foucault, Hannah Arendt, Octavio Ianni e outros para embasar seu método. Identifica contradições, faz paralelos, extrai sentidos comuns ou discordantes. Coloca-se, principalmente, uma série de perguntas sobre a crítica como “empreendimento canônico” e as mudanças de atitude crítica que poderiam determinar as eventuais diferenças no tratamento concedido a Glauber e Walter nos seus respectivos tempos. A partir do exame dos textos alheios, Eliska vai enveredando para suas próprias conclusões, que envolvem tanto o cinema como a crítica.
De todas essas conclusões, a única que me pareceu frágil foi a do último capítulo, em que Eliska enfoca as dificuldades do público médio para apreender o cinema de Glauber. Num desdobramento desse raciocínio, ela acaba por aproximar os dois cineastas na busca de um certo “bom gosto culto”. Minha impressão é de que a linguagem cifrada e barroca de Glauber não buscava exatamente um bom gosto, mas uma expressão de força. Essa distância entre o gesto épico de Glauber e o engenho humanista de Walter é, a meu ver, mais que um denominador comum, um dado de complexidade nessa dialética que o livro explora tão bem.