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DEUS DA CARNIFICINA: DO PALCO PARA A TELA

14.06.2012
Por Daniel Schenker
FASCÍNIO PELA REVELAÇÃO DO JOGO SOCIAL

A dramaturgia da francesa Yasmina Reza vem sendo difundida no Brasil há mais de dez anos através de três textos: Arte , O Homem Inesperado e Deus da Carnificina , que desembarcou nas telas em filme de Roman Polanski. Capitaneando as montagens das peças, o mesmo diretor – Emilio de Mello.



Em Arte – encenado, anos atrás, com Paulo Goulart, Pedro Paulo Rangel e Paulo Gorgulho, sob a condução de Mauro Rasi, e agora, com Claudio Gabriel, Marcelo Flores e Vladimir Brichta, dirigidos por Emilio –, amigos travam um embate a partir do momento em que um deles compra um quadro (supostamente?) branco por uma alta quantia. Em O Homem Inesperado – levado à cena pelo casal Paulo Goulart-Nicette Bruno –, um escritor e uma fã dividem a mesma cabine de trem, mas não se identificam de imediato, o que faz com que monologuem seus pensamentos durante boa parte do tempo. Em Deus da Carnificina – apresentado recentemente com elenco formado por Julia Lemmertz, Paulo Betti, Deborah Evelyn e Orã Figueiredo –, dois casais (Penélope e Michael / Nancy e Alan) se encontram para discutir formas de reparação diante da briga dos filhos de 11 anos.



Yasmina Reza leva seus personagens a desconstruírem a hipócrita atuação social que normalmente portam no cotidiano e a extravasarem o que, de fato, sentem uns em relação aos outros. Durante as discussões, muitas questões vêm à tona: a dificuldade em aceitar a diferença, um modo diverso de encarar a realidade ou determinada situação; o temor em assumir um ponto de vista; a verdade pessoal por trás de um discurso politicamente correto.



Em Deus da Carnificina , especificamente, os personagens começam abordando o conflito de maneira civilizada. Redigem um documento que resume a briga dos filhos e discutem a forma mais apropriada de compensar a violência sofrida por um deles. Aos poucos, a postura equilibrada se revela cada vez mais artificial e passam a dar vazão a reações mais primitivas diante do ocorrido. Perdem o controle, externam o que realmente desejam e as insatisfações íntimas.



De início, o antagonismo é estabelecido entre os casais: o que teve o filho agredido leva clara vantagem sobre os pais do agressor. Mas a autora mexe nessa estrutura a partir do instante em que cada um, individualmente e em medidas distintas, sofre um processo de desestabilização expressado por meio de uma sucessão de catarses. A oposição passa a se estabelecer (também) entre maridos e mulheres. O incômodo os impede de deixar o apartamento e os conflitos se acirram cada vez mais.



Roman Polanski concentra o filme no trabalho dos atores e no texto de Reza. O problema não está na transposição do teatro para o cinema. O fato de a história ser ambientada numa locação fechada (as dependências de um apartamento), com brevíssimas saídas para o exterior (a primeira e a última cena, num parque do Brooklyn, onde se desenrolou a briga entre os filhos), não o torna pouco cinematográfico. No cinema, tudo resulta mais “concreto”, sem soluções inventivas como a mesa de Lego da montagem, principal elemento da cenografia de Flavio Graff que aludia não só à idade dos filhos como à falta de maturidade dos casais. O passeio da câmera pelo apartamento de Penelope (Jodie Foster) e Michael (John C. Reilly), porém, informa bastante sobre o modo de funcionamento do casal.



Um eventual desequilíbrio nas atuações (Jodie Foster exagera no descontrole de sua personagem), algo que acontecia na montagem brasileira na qual se destacava Julia Lemmertz, também não se impõe como importante obstáculo à apreciação. A maior restrição que se pode fazer se concentra no próprio texto de Yasmina Reza, que, desde logo, evidencia para o espectador o principal. Afinal, é claro que aqueles personagens, acostumados a representar papéis sociais, a manter convenientemente as aparências, se enfrentarão com crescente violência e despudor no decorrer do encontro/projeção. O público, assim, antevê a “mensagem” de Reza já nos primeiros minutos.





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