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FOME ZERO DE CINEMA INDEPENDENTE

21.03.2003
Por Marcelo Janot
FOME ZERO DE CINEMA INDEPENDENTE

Quem visse a fila na porta do Centro Cultural da Praia Grande, em São Luís, numa chuvosa terça-feira à noite, poderia imaginar que estava prestes a acontecer por ali um show de algum artista popular da MPB, uma apresentação de uma peça de teatro estrelada por atores globais, ou qualquer coisa que um forasteiro desinformado acredite que interesse muito aos maranhenses. Ele dificilmente iria adivinhar que em poucos minutos as cerca de 200 poltronas do cinema que existe ali estariam ocupadas (havia mais gente sentada no chão ou em cadeiras improvisadas) para assistir atentamente ao filme Dias de Nietzsche em Turim, de Julio Bressane. Não era uma exibição gratuita ou festiva, mas apenas mais uma das 80 sessões regulares do I Festival Internacional de Cinema de São Luís, com ingressos a R$ 8. Apesar do hermetismo do filme de Bressane, o público assistiu ao filme com interesse e aplaudiu no final.



O sucesso desta primeira edição do festival, que exibiu de 6 a 16 de março quase 50 longas brasileiros e estrangeiros, mostrou como é grande a carência, fora dos grandes centros, de um cinema que não tenha cara de novela da Globo e nem leve a assinatura dos grandes estúdios hollywoodianos. Bastou trazer para São Luís o melhor do cinema independente produzido mundo afora para o público local mostrar que merece ser tratado com mais respeito do que um mero consumidor de pipoca.



Afinal, o Maranhão tem uma grande tradição cultural, especialmente literária. Seu povo se orgulha de ter nascido na mesma terra que ficou conhecida no século 19 como a Atenas brasileira, onde morou o Padre Antônio Vieira e onde nasceram, entre outros não menos ilustres, Gonçalves Dias, Odorico Mendes, Arthur de Azevedo, Humberto de Campos, Ferreira Gullar e Josué Montello. Ainda hoje, é comum ver grupos de jovens poetas discutindo literatura com paixão nos charmosos bares do centro histórico. O cineasta Luiz Fernando Carvalho, que esteve no festival apresentando Lavoura Arcaica, percebeu a verve cultural de São Luís assim que desembarcou na cidade. O assistente de produção do evento destacado para recebê-lo, Dyl Pires, é um dos expoentes da nova geração de poetas maranhenses, e impressionou Luiz Fernando ao fazer comentários sobre o filme Lavoura Arcaica e a obra de Raduan Nassar. O cineasta não hesitou em sacar o celular e telefonar para o recluso Raduan, colocando-o em contato com seu fã maranhense.



O diretor do evento, Frederico Machado, filho de dois renomados poetas locais, Arlete Nogueira da Cruz e Nauro Machado, é quem cuida durante o ano da programação do Cine Praia Grande, o único da cidade que não exibe filmes hollywoodianos. Com uma limitada verba obtida junto ao governo e à prefeitura, além de pequenos patrocínios e apoios, ele organizou um festival enxuto, de produção quase caseira, com uma simpática cara de cineclube, mas que conseguiu grande espaço na mídia local e fez lotar boa parte das sessões.



É gratificante ver o cinema cheio em sessões de filmes como o iraniano Tempo de Embebedar Cavalos ou a obra-prima chinesa Abandono do Sucesso (ambos, por sinal, inéditos no circuito carioca). De manhã, crianças das escolas locais assistiam gratuitamente algumas das sessões. Imagine a importância de uma criança formada cinematograficamente às custas de Xuxa ou produções hollywoodianas ter contato com um filme como O Quadro Negro, da iraniana Samira Makhmalbaf? Não só pela questão da formação cultural, mas talvez tenha sido a primeira vez em que elas enxergaram um muçulmano como um ser humano, diferentemente da imagem dos povos árabes passada pelo noticiário televisivo e pelo cinema americano. É um pequeno passo, mas talvez daqui a alguns anos essas crianças sejam jovens mais interessados em conhecer a cultura oriental do que o Hard Rock Café.



Mas, para isso, São Luís primeiro precisa tratar o espectador de cinema com mais respeito. Isso porque, fora o Cine Praia Grande, só há mais cinco cinemas na cidade, uma média de aproximadamente 135 mil habitantes por sala de cinema. Essas cinco salas ficam em uma galeria de uma movimentada avenida no bairro de São Francisco. É o cinema Colossal, que de colossal só tem o nome. Enquanto o maranhense antenado disputava ingressos para ver o filme francês A Cidade Está Tranqüila, fui arriscar uma sessão de Gangues de Nova York no Colossal 3. Só havia 8 pessoas na sala. Quando o filme começou, deu pra entender o porque. A projeção era um horror. Quando não estava fora de foco, estava tremida, e o som parecia mono. Nem preciso dizer que as luzes acenderam assim que o filme terminou e o projecionista me ignorou e interrompeu a projeção no meio dos créditos finais.



Os jornais também não dão muita bola pra cultura. Em nenhum deles há críticas de cinema. Deve ter sido por isso que um bom público compareceu, curioso e fazendo perguntas inteligentes, a uma pequena palestra que fiz sobre o tema, e muitos se mostraram bastante empolgados com a possibilidade de realização de um workshop de crítica no ano que vem. Até lá, já terá sido construído o primeiro multiplex da capital maranhense, que ficará a cargo de um grupo espanhol e que será, obviamente, dedicado ao cinema hollywoodiano. Mas, assim como o Guaraná Jesus (cor-de-rosa, de produção local) vende mais que a Coca-Cola no Maranhão, o cinema independente já mostrou sua força, deixando uma bela lição que deveria ser seguida por todas as capitais brasileiras onde ainda se menospreza a fome de cultura de seus moradores.

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