Michael Moore sabe como poucos singrar na ambigüidade de ser americano. Ao mesmo tempo que ataca de forma impiedosa o “modus operandi”do sistema, não se incomoda de reproduzir, e até mesmo propagar, o “modus vivendi” do cidadão médio.
Olhar para Moore é olhar para um americano típico, com todas as suas falhas aparentes. Trajando boné - invariavelmente com emblemas de equipes de basquete ou de produtoras cinematográficas - jeans e camisas listradas, estilo lenhador, Moore não parece incomodado com a obesidade ou com a sujeira das unhas. O jeito nerd desleixado pode não agradar totalmente aos adeptos da correção política, mas fala direto aos corações e mentes dos homens e mulheres comuns, o reverso da América triunfal.
E é dessa gente como a gente que Moore tornou-se o super-herói contemporâneo. Nada de belas formas ou perfumarias fashion. Agilidade mesmo só no humor, sustentado por uma das mais inteligentes críticas ao sistema. Moore é o alto-falante dos medíocres, dos otários que acreditaram no sistema, que foram ludibriados pela lógica cruel dos lucros e por isso estão pagando caro. Uma turma que cansou de cobrar a conta nas urnas ou nos sindicatos e que de um tempo pra cá encontrou no balofo destemido o seu despachante ideal.
Roger and Me e The Big One, dois de seus documentários anteriores a Tiros em Columbine, serviram para sacramentar o estilo de Moore. No primoroso Roger and Me, de 1989, o cineasta parte de sua cidade natal, Flint, em busca de um encontro com Roger Smith, todo-poderoso executivo da General Motors. Moore quer saber por que a empresa transferiu a fábrica para o México levando à ruína milhares de famílias e colocando 68% das crianças locais vivendo abaixo do nível de miséria.
Praticando um jornalismo pop, com imagens de arquivo nem sempre documentais ilustrando dados estatísticos inusitados, como o aumento do número de ratos após a saída da GM, Roger and Me constrói o retrato da América pelo seu avesso. Nisso Moore é craque. Capta relatos de ídolos do passado ou de misses da hora para mostrar o vazio do discurso nacionalista diante da evidência do fiasco econômico. A cruzada quixotesca à procura de Roger, marcada por encontros impossíveis, revela a falácia da liberdade de expressão, do direito de ir e vir e sobretudo o fosso entre os gritos inócuos do homem comum e as decisões implacáveis dos alto executivos.
The Big One, de 1997, já mostra um Michael Moore mais à vontade com o sucesso, porém não menos inconveniente para com os poderosos. O filme cobre a viagem de Moore Estados Unidos afora para divulgar o seu best-seller “Downsize This! Random Threats from an Unarmed American”. O lançamento ganha ares de turnê artística, com Moore apresentando-se na função de “stand-up comedian” entre uma noite de autógrafos e outra. Sua verve poderosa ecoa as ações invasivas mostradas ao longo do filme, como a entrega de cheques irrisórios a grandes empresários e a ida de um grupo de mulheres desempregadas para promover uma faxina literal em uma prefeitura.
O grande momento, no entanto, é o encontro absolutamente inesperado entre Moore e o dono da fábrica de tênis Nike. Moore oferece passagens para a Indonésia, onde a Nike explora mão-de obra infantil, propõe uma queda-de-braço e desafia o dono da fábrica numa corrida, sem sucesso. No final, do magnata que faturara, só naquele ano, três bilhões de dólares em ações, Moore consegue arrancar dez mil dólares para as escolas públicas de Flint. Isso é que é contrapartida social!
Em seus documentários, Moore obtém um impacto fulminante ao utilizar-se da técnica narrativa do cinema ficcional, seguindo um encadeamento com todas as nuances de um bom roteiro previamente concebido. Pode ser questionável como documento, mas é absolutamente funcional como intenção. Contra a verticalidade do sistema, Moore realiza o documentário horizontal, em linha reta, cuja lógica narrativa parece zombar do caos evidente. Enquanto o sistema insiste em se impor, Moore, desarmado e inofensivo, insiste em transpor. Azar do sistema.