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O CÃO, O ELEFANTE E O COELHINHO MARROM

30.05.2003
Por Pedro Butcher
O CÃO, O ELEFANTE E O COELHINHO MARROM

As sessões para a imprensa do Festival de Cannes são testes implacáveis para a vocação internacional de um filme. Ao contrário de Veneza e Berlim, onde a maior parte dos jornalistas credenciados é local, Cannes reúne quase quatro mil repórteres e críticos cinematográficos do mundo inteiro, sendo que mais ou menos 30% são franceses. Em 2002, 74 países se fizeram representar nas poltronas do festival.



É difícil agradar a essa turba heterogênea. Cannes é organizado para a imprensa como uma maratona. A primeira sessão, às 8h30 da manhã, apresenta um título nobre da seleção oficial e, quem perdê-la, em geral, perdeu o filme para sempre. Recuperá-lo significa abrir mão de um outro igualmente importante ou de uma entrevista coletiva quente. A cada sessão, entre mil e dois mil jornalistas (dependendo da sala) se põem diante da tela com ferocidade canina, cheios de ansiedade, entusiasmo, algum preconceito, mau humor e, lá pelo meio do festival, exaustão. Tudo isso vai gerar uma reação imprevisível, que pode decolar ou afundar um filme. É preciso ter coragem para enfrentar Cannes.



Este ano, Gilles Jacob e Thierry Frémaux, os dois homens fortes do festival, anunciaram que a montagem da seleção havia sido difícil. Nos bastidores sabe-se que Veneza, festejando sua 60ª edição em agosto próximo, conseguiu roubar dois trabalhos de cineastas habitués de Cannes (The Dreamers, de Bertolucci, e Intolerable Cruelty, dos irmãos Coen). Para completar, não ficaram prontos a tempo os novos filmes de Emir Kusturica, Theo Angelopoulos, Quentin Tarantino, Wong Kar-Wai e até de Ingmar Bergman, que acaba de aprontar uma continuação de Cenas de um Casamento chamada Sarabande, que era ansiosamente esperada no balneário francês.



Esse vazio de grandes nomes permitiu uma seleção mais arejada, mas também perigosa. A qualidade, sem dúvida, foi inferior a outras seleções recentes, mas passado o furacão, fica a forte impressão de que este foi um festival mais divertido e polêmico que os dos últimos anos. Num time de 20 títulos disputando a Palma de Ouro, havia pelo menos sete perfeitamente qualificados para a premiação (e dois injustificáveis).



Filme de abertura francês, presidente do júri francês (Patrice Chéreau), dois franceses em sessões especiais (Qui a tué Bambi?, de Gilles Marchand, e a animação Les Triplettes de Belleville, de Sylvian Chomet), cinco franceses na disputa pela Palma de Ouro: o que parecia um favorecimento descarado para a prata da casa, acabou se revelando uma armadilha cruel. Reações hostis obrigaram Gilles Jacob a reconhecer, em entrevista ao Le Monde, que houve “um filme francês a mais” no festival (o nome dele é o horroroso Les Cotêlettes, de Bertrand Blier), e pode-se dizer que a abertura com o insosso Fanfan la Tulipe, produzido por Luc Besson, tenha contribuído para instaurar o mau-humor logo no primeiro dia.



Da nova geração francesa, a competição trouxe François Ozon (Swimming Pool) e Bertrand Bonello (Tiresia) – dois cineastas trabalhando em campos opostos: o primeiro flertando com o pop e uma estética quase americana; o segundo abusando da típica pretensão intelectual francesa, numa revisão de um mito grego recontado por um travesti brasileiro trabalhando em Paris, com direito a imagens de lava de vulcão ao som de Beethoven. Bonello filma bem, mas num tom pomposo que faz tudo soar excessivamente falso, no mau sentido.



Da velha guarda, André Téchiné apresentou seu academicismo habitual, digno e “psicologizado”, num interessante estudo de quatro personagens desgarrados durante a Segunda Guerra Mundial (Les Égarés, com Emmanuelle Béart). Claude Miller decepcionou com uma atualização reducionista de A Gaivota, de Tchecov. E Bertrand Blier comprovou estar em péssima forma ao adaptar sua própria peça em Les Cotêlettes.



O que houve de bom, então? A primeira boa surpresa veio no terceiro dia de festival com o filme turco Uzak (Distante), de Nuri Bilge Ceylan, que acabou ficando com o Grande Prêmio do Júri e o prêmio de melhor ator. É um desses filmes que possivelmente não estariam em competição caso os Kusturica e Angelopoulos da vida tivessem ficado prontos.



Terceiro longa do pouco conhecido Ceylan, Uzak é uma obra de incrível maturidade, pequeno drama (com toques cômicos precisos) sobre um fotógrafo de vida estabelecida que hospeda um amigo desempregado. Ceylan filma tudo à distância, encontrando formas muito efetivas de refletir sobre a desumanidade de vida urbana e a frieza dos relacionamentos contemporâneos.



Em seguida veio Elephant, de Gus Van Sant, inicialmente recebido com frieza pela imprensa, mas finalmente consagrado com uma corajosa Palma de Ouro. De forma extremamente original, usando planos-seqüências altamente elaborados e um roteiro que sobrepõe camadas temporais, Van Sant fez seu melhor filme ao recriar, em forma de ficção, as horas que antecederam o massacre de Columbine.



Elephant é o oposto de Tiros em Columbine, o documentário de Michael Moore que foi sensação em Cannes 2002 e que busca as explicações para a mesma tragédia (dois alunos de uma high school americana entraram armados na escola e mataram dezenas de pessoas). Elephant não quer explicar nada. É um exercício poético de observação que preserva o enigma das causas e, assim, preserva também o enigma da adolescência, esse tempo de intervalo de um ser humano que não é nem criança, nem adulto.



No dia segunte a Elephant, o festival esquentou de vez com Dogville, novo petardo de Lars Von Trier, o primeiro filme a arrancar da platéia uma ovação (majoritária) e algumas vaias (minoritárias mas fortes). Inspirado em Brecht, o cineasta dinamarquês narra uma história situada nos Estados Unidos, assumindo uma forma ainda mais radical que a do Dogma 95. Agora nem cenários ele usa mais, encenando seu texto de características teatrais e literárias (graças a uma solene narração lida com sotaque britânico por John Hurt) sobre um tablado montado num estúdio. O cenário quase não traz paredes, os atores abrem portas imaginárias e os maiores objetos em cena são os carros que de vez em quando percorrem a única rua da minúscula cidade de Dogville. Até o cão da cidade, chamado Moses, são traços pintados no chão.



Dogville é um filme longo (três horas) em que cada minuto se justifica. É uma demonstração dramatúrgica em forma de parábola de como se exerce o poder sobre os mais fracos e vulneráveis, e de como esse exercício de poder faz brotar a mais brutal das violências. Trata-se, visivelmente, de uma metáfora para a América e os acontecimentos de 11 de setembro de 2001, e daí a reação de forte repúdio da imprensa americana (principalmente da revista Variety). Mais irônico é que Von Trier constrói essa crítica usando a nata dos atores americanos, num elenco que junta Nicole Kidman, Lauren Bacall e Phillip Baker Hall, entre outros.



Quarta-feira, 21 de maio, foi o dia mais emblemático de Cannes por trazer o filme mais odiado e o mais querido da competição. Primeiro a imprensa foi apresentada a The Brown Bunny (O Coelhinho Marrom, em justa tradução literal), de Vincent Gallo. As reações irônicas começaram nos créditos, que davam conta de um filme “estrelado, dirigido, fotografado, montado e produzido por Vincent Gallo”. Começou o filme e, em pouco tempo, confirmou-se o delírio egocêntrico e auto-indulgente anunciado nos créditos, um típico produto de um ator que se crê cineasta. Mas a reação da platéia, tão hostil e irônica, culminando na maior vaia do festival (ao lado da do filme de Blier), gerou uma onda de simpatia e defesa. Assim, O Coelhinho Marrom se tornou motivo de uma disputa da imprensa anglo-saxã (atacando o filme e, de quebra, o festival como um todo, que estaria equivocadamente amarrado ao conceito do filme de autor) e da imprensa francesa (defendendo Gallo e a preservação de Cannes como o templo do cinema de arte).



Logo em seguida, para acalmar os ânimos, foi a vez do popular Les Invasions Barbares, outra ovação da sessão de imprensa, filme que trouxe pela primeira vez a emoção rasgada a uma competição marcada pela aspereza – e que talvez por isso tenha sido a primeira (quase) unanimidade do festival. Denys Arcand reúne os mesmos atores de O Declínio do Império Americano, 17 anos depois. Faz uma revisão crítica e profundamente amorosa de uma geração, abusando um pouco da manipulação de sentimentos, mas oferecendo um autêntico international hit em que a sinceridade acaba se impondo.



Cannes 2003 ofereceu muitos outros filmes para lá de dignos, do grande representante do cinema clássico americano Mystic River (drama policial de características shakesperianas assinado por Clint Eastwood) ao miúra japonês Shara, lindo exercício humanista de Naomi Kawase. Foi, enfim, um festival que se justificou e gerou um debate real. Para encerrar, Tempos Modernos, de Charles Chaplin – o único filme que, como admitiu o próprio Thierry Frémaux, ironizando a hostilidade à sua seleção oficial, “é o único de que se tem certeza ser bom de verdade neste Festival de Cannes de 2003.”

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