O tratamento da verdade parece estar na pauta do dia das realizações cinematográficas. Alguns filmes, atualmente em cartaz ou ainda inéditos no circuito comercial, vêm evidenciando a situação de personagens, a maior parte mergulhada numa espécie de existência ilusória paralela, diante do descortinar de suas próprias realidades. O espectador também pode refletir acerca do valor genuíno de cada obra a partir do tipo de conexão travado entre as “falas” dos realizadores e o resultado estético de seus trabalhos.
Longe Do Paraíso , por exemplo, coloca em questão um modelo de vida destituído de verdade. O ponto nevrálgico não está no cotidiano de Cathy Whitaker, uma dona de casa como tantas outras da Connecticut de 1957 que subitamente descobre a homossexualidade do marido e passa a travar uma relação platônica com um negro, escandalizando a moral social vigente, e sim no fato da delicadeza e da reserva surgirem como características reais da personagem. Não se trata, portanto, de um determinado modo de atuação no casamento.
Todd Haynes expõe a quebra da redoma protetora de um mundo falido (transcendendo a América com telhado de vidro já dissecada por Todd Solondz e Sam Mendes e a questão da discriminação racial) e sublinha a necessidade de conexão com uma esfera humana superior. Formalmente, a desconstrução das aparências se dá através da recriação de uma estética clássica (remetendo à atmosfera da década de 50, uma opção que deve causar estranheza aos admiradores do realizador de Veneno e Velvet Goldmine ) que potencializa um choque – e não uma tentativa de negociação – com a acomodação.
Em Abandono do Sucesso, a superficialidade também desestabiliza o ator Jia Hongsheng – até um dado instante, típico funcionário do entretenimento descartável. Registrando uma história real, que conta com a presença dos próprios envolvidos, Zhang Yang sublinha a importância do autoconhecimento, da verdade genuína, como matéria-prima da criação artística. Completamente distante do nível mais elevado de seu ofício – a re-construção de um ser humano na sua complexidade –, Jia tenta uma guinada, trocando a estagnada presença no cinema pelo trabalho numa montagem de O Beijo Da Mulher Aranha . Manifestação que suscita o encontro de cada um consigo mesmo, o teatro pode ter surgido com excessivo impacto para Jia, que, logo após, se entregou às drogas. Tempos depois, mas ainda se vendo como uma fraude, Jia não hesita em dizer aos pais após mais uma oferta de trabalho: “representar é uma mentira”.
Com O Homem Que Copiava , Jorge Furtado traz à tona uma discussão bastante próxima. Cabe perguntar: o trabalho de apropriação de André – que, como operador de uma fotocopiadora, vai absorvendo os retalhos de informações que lê no material que passa por suas mãos – é absolutamente natural, no sentido de que qualquer um deve sua formação ao conhecimento que recebe de outras pessoas, ou pode se transformar numa fraude? Valendo-se de um personagem destituído de muita consciência crítica e com razões concretas suficientes para abrir mão de princípios éticos, o cineasta lança uma discussão num filme de polêmica amoralidade.
A inversão ética também aparece, ainda que com tratamento diferenciado, em Por Um Fio . Joel Schumacher parte de uma figura fake por excelência: um workaholic esnobe munido de todos os cacoetes yuppies. Mas este é o “mocinho” da fita. O vilão é a voz em off de um psicopata, munido, porém, de um objetivo que, não fosse a metodologia um tanto quanto extremada, não teria nada de ruim – levar alguém a se confrontar com a própria verdade. Mas como se trata do vilão, este objetivo é ampliado para uma insana fixação em higienizar o mundo. Resultado: um trabalho psicanalítico de anos acaba sendo resolvido em poucas horas numa, digamos, terapia de choque. A inversão não termina aí. Por Um Fio fecha com uma certa lógica deformada dos dias de hoje, tendo em vista que tudo acontece no momento em que a personagem adere ao “costume quase antigo” de utilizar o telefone de rua. Não por acaso, o celular acaba sendo a salvação...
É, sem dúvida, uma visão de mundo contrária à propagada por Anna Muylaert em Durval Discos , que aborda com nostalgia elementos saborosos do passado recente que foram sendo (quase) substituídos ao longo dos anos. Numa produção destituída de estilização ou escape para uma assepsia artificial, o “sentido de verdade” surge “expresso” na tijela de carne moída, na colcha e nos móveis antigos que fazem do filme um legítimo exemplar de um cinema crível.