O lançamento em DVD nacional do filme italiano de 1962, O Condenado de Altona é, no mínimo, uma curiosidade: baseado em peça do francês Jean-Paul Sartre, teve sua adaptação para as telas assinada pelo roteirista americano Abby Man (de Julgamento em Nuremberg, 1961) em inimaginável parceria com o italiano Cesare Zavattini (de Ladrões de Bicicletas, 1948).
Embora tenha sido filmado em Hamburgo e todos os personagens da história sejam alemães, só há um ator alemão no elenco principal, Maximilian Schell, apesar de (pelo menos nesta versão) estar dublado em italiano - assim como os americanos Fredric March e Robert Wagner. Sophia Loren é, provavelmente, a única intérprete que deve estar com sua voz original, falando em italiano, ainda que sua personagem também seja uma alemã. É preciso vencer essa certa estranheza para aproveitar os melhores aspectos que o filme carrega. Embora, por condicionamento deixado pelo cinema americano (quando nos habituamos a escutar até romanos da antiguidade falando em inglês - britânico, é claro), talvez não estranhássemos tanto se todos estivessem falando no idioma do Tio Sam.
Recebido de modo no mínimo reticente pela crítica da época, parece-nos que também não foi atingido o grande sucesso de público provavelmente pretendido pelo produtor Carlo Ponti, marido de Sophia, que deve ter visto no enredo mais um veículo para a estrela que havia sido recentemente oscarizada - justamente no mesmo ano em que Maximiliam Schell levou sua estatueta por Julgamento em Nuremberg : reunir os dois poderia ser um golpe de mestre comercial acrescido de prestígio intelectual dado pelo nome de Sartre.
A direção foi entregue a Vittorio De Sica que, apesar de ter tido - e ainda viria a ter - vários sucessos comerciais em filmes com Sophia, já não era tão bem considerado pela crítica como havia sido nos primeiros tempos do neo-realismo italiano de pós-guerra, movimento ao qual ele deu seu maior sucesso internacional, Ladrões de Bicicletas. O cineasta só voltaria a ser reconhecido de modo quase unânime por um filme que lançaria em 1970, O Jardim dos Finzi-Contini. Mas ao lado de resultados de fato medíocres, volta e meia De Sica fazia tentativas mais ambiciosas - como no seu filme anterior, o curioso, ainda que frustrado, O Juízo Universal, também lançado em DVD brasileiro há poucos meses - e mais certamente ainda neste O Condenado de Altona, merecedor de uma oportuna revisão.
A peça de Sartre estreou em Paris no final de 1959. O título original não antecipa nenhum “condenado”, sendo sua tradução literal Os Sequestrados de Altona, respeitado no título italiano I Sequestrati di Altona. É uma das peças mais extensas de Sartre, talvez a mais longa de todas: são cinco atos em torno de cinco personagens sem nenhuma cena que reúna todos: um grande industrial com câncer e prognóstico de seis meses de vida, sua filha, dois filhos e a esposa de um deles. Um dos filhos teria fugido para a Argentina devido a acusações (justas? injustas?) de crimes de guerra; lá, teria sido oficialmente dado como morto, mas a verdade é que ele se encontra no sótão da mansão de sua família, os Von Gerlach, há 13 anos (15 no filme, ambientado em 1961).
O roteiro tenta condensar a prolixidade das densas conversas entre os personagens teatrais em uma hora e quarenta de filme. Obviamente muita coisa se perderia em relação ao texto teatral - sem contar que os roteiristas ainda fizeram acréscimos de cenas ausentes da peça, muitos desses acéscimos adequados ao formato cinematográfico, sem que apenas atendam ao antigo e ingênuo recurso de “levar parte da ação para ambiente externo” (como era frequente em filmes extraídos de peças passadas completamente em interiores para - supostamente - diminuir o aspecto "teatral" da película). Também houve maior dimensionamento da personagem destinada a Sophia Loren, o que exigiu da atriz mais do que ela poderia render, especialmente nas cenas com Maximiliam Schell.
Já o ator consegue superar as dificuldades de um personagem que, como queria Sartre, é mais mítico do que realista. Sartre dizia que “o campo de ação mais verdadeiro do teatro é o da tragédia: um drama que contenha um mito autêntico (...) o teatro não se ocupa da realidade, mas apenas da verdade”; enquanto que, para ele, “o cinema procura um realismo que contenha momentos de verdade”. Não seria mesmo fácil levar esse personagem (a um passo da caricatura se visto por um prisma "realista") para o cinema, face à impressão documental que o registro fílmico transmite às plateias. No dizer de Susan Sontag, o que o cinema reproduz na tela parece real, “está lá” – ou parecia, até Bergman lançar Persona no qual, diz a ensaísta, o que se via na tela passava a ser de outra ordem, muito além do ‘estar lá’.
O filme de De Sica procura – e consegue - dar conta razoavelmente de alguns aspectos mais realistas da trama, incluindo aqueles sócio-políticos que são o importante pano de fundo para a trama: a Alemanha de 13 (ou 15) anos depois da derrota na II Guerra. Em um diálogo da peça pode-se ler:
“- Graças à derrota a Alemanha tornou-se a maior potência da Europa, o pomo da discórdia e a bola indispensável para haver jogo. Paparicam-nos: para nós, todos os mercados estão abertos, nossas máquinas trabalham, nossa terra é uma usina. Uma derrota providencial. Agora temos canhões e manteiga. E soldados! Amanhã poderemos ter a bomba atômica e então sacudiremos a juba e nossos tutores saltarão fora como pulgas.
- Fomos vencidos e dominamos a Europa... E se tivéssemos vencido?
- Não podíamos vencer.
- Então tínhamos que perder a guerra?
- Tínhamos que disputá-la no jogo de ‘quem perde, ganha’... como sempre...
- E os que amavam a pátria a ponto de sacrificarem sua honra militar em busca da vitória...
- Arriscaram-se a prolongar o massacre e a prejudicarem a reconstrução: a verdade é que não fizeram absolutamente nada, a não ser assassinatos individuais”.
No filme, escuta-se apenas uma breve alusão ao “jogo de quem perde, ganha”, mas as intenções de Sartre surgem através de imagens muito bem resolvidas no início e no desfecho. Por exemplo, ao som da (muito bem utilizada) Sinfonia 11 de Shostakovich, vemos Fredric March, o industrial que serviu aos nazistas tanto quanto serve agora aos aliados, de pé, no alto de um barco, adentrando seu estaleiro naval onde o nome “Gerlach” está escrito em um enorme painel, em letras gigantescas. O painel se abre, separando as sílabas do nome para dar passagem ao barco com o magnata. Em duas outras cenas posteriores, ele será visto em uma grande caixa suspensa por guindaste, levando, em momentos diferentes cada um de seus filhos, descortinando seu império. Não se pode negar nestas, tal como em outras cenas grandiloquentes, a grande força imagética alcançada pela direção.
Também sua abertura é digna de nota: os créditos iniciais surgem sobre imagens de cenas de guerra sob a neve, sendo que a imagem final é “congelada” sobre o rosto de um homem com a boca escancarada, dando um grito que não ouvimos - expressando medo ou mesmo horror, não sabemos de que. Há um corte brusco para uma radiografia de crânio em perfil, ou seja, uma caveira - enquanto, na atualidade diegética, a voz de um médico comunica o diagnóstico de um câncer de laringe para o patriarca Von Gerlach.
O que fica relativamente menos satisfatório são mesmo as visitas da cunhada ‘Johanna’ (Loren, muito bonita, mas eventualmente deslocada e um pouco mais coquete do que caberia) a ‘Franz’, o “nazista (?) escondido no sótão” (Schell). Por outro lado, tais cenas se destacam pela presença e desempenho do ator: o momento em que ele imita um caranguejo é o ápice de uma interpretação que consegue oscilar entre o realismo e o aspecto “mítico” pretendido por Sartre. (Um entrevistador de Sartre apontou que os atos ímpares da peça tinham um estilo de ‘teatro burguês realista’, passados no térreo da mansão, ao rés do chão, mais ‘terra-a-terra’; enquanto os atos pares, passados no sótão, lembrariam ‘teatro de vanguarda’, mais metafísico do que realista, cuja localização se dava em um plano mais alto - em todos os aspectos).
Não fica satisfatoriamente desenvolvida a trajetória de ‘Werner’, o outro filho casado com Johanna e vivido por Robert Wagner. Não é tanto por ser Wagner um ator limitado, pois ele até se mostra correto, mas o personagem é mesmo secundário já na peça e surge mais apagado ainda no filme. Inicialmente resistente à posição de herdeiro dos negócios do pai, sua mudança de intenções fica mal esclarecida.
Já a atriz francesa Françoise Présvost marca bem sua ‘Leni’, a única pessoa que (até a chegada de Johanna) tinha acesso ao sótão onde ‘Franz’ registrava compulsivamente, em fitas de gravador de rolo, seu "testemunho" (sic) sobre o século XX para os juízes-caranguejos (!) que dominarão a terra no século XXX (!!). Leni alimenta a ilusão de Franz quanto à Alemanha que ele precisa acreditar ainda tão arrasada quanto viu no pós-guerra imediato.
O filme tenta omitir o incesto entre Leni e Franz - que a peça deixa explícito - a ponto de a frase de divulgação do filme em 1962/63 (reproduzida neste DVD da Coleção Cultclassic) ser: “Ela era a esposa de seu irmão, a ruína de seu pai... e sua primeira mulher em 15 anos”. Esqueçam esta estupidez em forma de propaganda enganosa. Présvost, ainda mais do que Schell, consegue sugerir (no mínimo) uma atração sexual incestuosa. Seu semblante, mesmo que se mostre rígido, endurecido, é capaz de transmitir as emoções interiorizadas da personagem, especialmente no momento em que a câmera faz um semi-círculo em torno dela - que se encontra encostada em uma parede: o que vemos é como se a parede se movimentasse por trás da atriz – outra forte imagem conseguida por De Sica e seu operador de câmera, Sante Achilli, certamente também responsável pelas cenas panorâmicas de Fredric March já mencionadas.
E é uma pena que March e Schell tenham tão poucos momentos reunidos em cena, e quase sem diálogos, pois o já idoso e consagrado ator de Hollywood mostra-se capaz de se adaptar brilhantemente a um tipo de filme e de personagem bem diversos do que vinha sendo habitual em sua carreira, quase toda em filmes americanos. A força de sua presença física e de seu rosto severo, mas capaz de modulações tão discretas quanto significativas, são uma atração à parte, confirmando sua intimidade com o meio em que manteve uma bela carreira.
Além de utilizar com propriedade o tenso e belíssimo 3º Movimento da Sinfonia 11 de Shostakovich (que havia sido gravada recentemente - pela primeira vez em 1957 na ex-URSS), o filme também se mostra antenado com padrões culturais sofisticados de sua época ao incluir duas cenas de peças de Brecht em espetáculos do Berliner Ensemble: uma delas com Sophia Loren – já que ‘Johanna’ é atriz – interpretando o último segmento de Terror e Miséria do III Reich, que se chama “O Plebiscito”; e a outra, com o final de A resistível ascensão de Arturo UI, sendo ‘Arturo UI’ uma evidente alusão a Hitler. Estes momentos, obviamente não existem na peça, toda passada na mansão dos Von Gerlach.
Na equipe técnica, cabe ainda destacar a direção de arte de Ezio Frigerio (que mais tarde iria trabalhar nessa mesma atividade em Noveccento, de Bertolucci), a fotografia em preto-e-branco de Roberto Gerardi e a edição de Manuel Del Campo e Adriana Novelli, esta, uma colaboradora habitual de De Sica.
Pontos negativos maiores ficam para a edição deste DVD com o descuido já habitual nos produtos da “Coleção Cultclassic”: os extras são desinteressantes, mas o mais grave está na legendagem: legendas falhas, frequentemente em mau português e quase sempre mudando o gênero da pessoa a quem a fala de outra se refere. O título da peça Arturo UI é traduzido de modo bizarro – e este é apenas um exemplo isolado. Mesmo assim, vale a pena conhecer este filme pouco visto e pouco lembrado, mas que revela um esforço digno ao abordar temas ainda atuais: O TRECHO SEGUINTE CONTÉM SPOILER (INFORMAÇÕES DO ENREDO QUE PODEM NÃO INTERESSAR A QUEM AINDA NÃO VIU O FILME) de modo original, o cerne da questão que acompanha Franz não é o do massacre de judeus; pelo contrário, ainda nos seus 18 anos, Franz havia tentado dar cobertura a um rabino fugido de um campo em terreno cedido pelo pai; sua decadência moral no caldo de cultura perverso do nazismo e das guerras vai se dar na esfera da tortura a prisioneiros de guerra russos. Ironicamente, há uma cena em que Franz retira da gaveta e mostra para Johanna várias – aparentemente – medalhas de ouro (em forma da comenda alemã tradicional, a "cruz de ferro") que não passam de choccolates (suíços - sic) embrulhados em papel dourado.