Tem gente que se orgulha de ver sete, oito filmes por dia durante os festivais de cinema. Nas maratonas do Rio e de São Paulo está cheio desses tipos. Muitos se conhecem e nas rodinhas de papo entre eles o que importa menos é a qualidade das obras: o assunto preferido é saber quem assistiu mais. Quando encontro com algum conhecido dessa turma, faço a pergunta que mais gostam de ouvir: “E aí, já viu quantos hoje?”. A resposta é sempre superlativa: cinco, seis, mesmo quando ainda não deu nem sete horas da noite. Basta puxar um pouquinho mais de papo para entender como funciona essa matemática dos “ratos de mostra”: eles confessam que nem sempre assistem ao filme todo; às vezes, se pinta uma brecha na agenda, assistem aos 20 minutos finais de um filme para ver se vale a pena assistir aos 100 minutos iniciais outro dia!
Semana passada tive a oportunidade rara de passar cinco dias em São Paulo com a finalidade quase exclusiva de ver filmes na Mostra BR. Presenciei cenas como um sujeito tagarela que se orgulhava de passar o festival inteiro vendo filmes apenas no Cineclube Directv. A cada dia, ele escolhia uma das três salas do local e assistia a TODAS as sessões desta sala, não importava o filme. Imaginem o seu estado no final do dia quando a sala escolhida era a 1, que estava sem ar-condicionado... Como o Directv era o único cinema que tinha sessões ao meio-dia, eu quase sempre começava o meu dia por lá, e deparei diversas vezes com essa figura, que nos intervalos costumava alugar os pobres funcionários do local com papos intermináveis.
Não tenho toda essa ambição cinéfila. Em cinco dias e meio, conferi 16 filmes (os que aparecem em negrito neste texto). Ainda assim foi muito cansativo, lembrando que a noite nunca terminava realmente depois do último filme, principalmente em se tratando de São Paulo e suas inúmeras opções boêmias. Tentei fazer, de acordo com a disponibilidade de horários e salas, uma pré-seleção mais ou menos cuidadosa para evitar as tradicionais “roubadas” de Mostra. As estratégias para isso foram as mais diversas: desde a leitura da sinopse e da biografia do diretor até uma avaliação da foto do diretor, publicada no catálogo. A sinopse do filme japonês Ser Feliz, por exemplo, até que chamava a atenção. Mas bastava olhar a foto do realizador Kemmochi Satoki para concluir que o filme devia ser ruim. O sujeito não tinha a menor cara de bom cineasta - se é que um cineasta pode ser julgado pela aparência (Sofia Coppola tem cara de boa cineasta???). Sei que, no final das contas, a minha intuição deu certo, a julgar pela opinião de alguns colegas que foram ver Ser Feliz e saíram aos 20 minutos de projeção.
No mesmo horário, acabei optando por Dias de Boda, apesar dos exagerados bigodes de galego do diretor Juan Pinzas. O chamariz era o fato de ser o segundo filme espanhol realizado sob os mandamentos do Dogma, o manifesto dinamarquês anti-Hollywood que busca o cinema “puro” (aquele que não se escora nas amarras técnicas do cinema “moderno”). O problema é que hoje em dia o Dogma serve mais como um eficiente instrumento de marketing do que qualquer outra coisa. É o que se conclui assistindo a Dias de Boda, lavagem de roupa suja familiar nos mesmos moldes do ótimo Festa de Família, mas que tem parentesco mais próximo com o novelão mexicano: atores canastrões e um roteiro previsível que tenta chocar a qualquer custo são a pior coisa do filme.
Ah, se Juan Pinzas, ao invés de tentar chamar a atenção ostentando o carimbo do Dogma, tivesse se matriculado num curso intensivo de João César Monteiro...Com o diretor português, falecido este ano, ele teria aprendido como retratar as peculiaridades do ser humano radiografando sua alma, essência do cinema de Monteiro, um cinema que desdenha de normas dogmáticas porque usa o seu próprio tempo e estilo em função do personagem, e não vice-versa. Os longos planos e a câmera fixa que são marcas registradas em seus filmes estão ali para retratar, quase sempre, um personagem que está sempre confrontando a sua imobilidade com a do mundo que o cerca. É assim com o João de Deus de Recordações da Casa Amarela, A Comédia de Deus e As Bodas de Deus, e o João Vuvu de Vai e Vem, outsiders monterianos interpretados pelo próprio diretor, e que trazem muito de si embutidos. Essa forma peculiar de ser e de olhar para si e para o mundo encontrou seu registro definitivo no longuíssimo plano em close do olho de Monteiro, que encerra de forma magistral seu último filme e sua obra.
Uma obra de ruptura que tem seus momentos mais radicais em Branca de Neve, filme sem imagens, em que os diálogos são ditos com a tela escura (como fizera Derek Jarman em Blue) e em A Bacia de John Wayne. Ao contrário dos outros dois filmes de Monteiro que assisti na Mostra, em que o índice de debandada da platéia foi bem pequeno, neste poucos agüentaram as longuíssimas duas horas e meia de um texto que mistura Strindberg, Pasolini e Breton e é encenado quase na totalidade de sua duração como uma leitura de um texto teatral por dois atores que travam uma batalha filosófica.
A Bacia de John Wayne é dedicado a Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, e não é difícil entender porque. O parentesco do filme de Monteiro com a obra de Straub e Huillet é notório, em especial com o mais recente filme da dupla, A Volta do Filho Pródigo – Os Humilhados, também exibido na Mostra. Apesar da curta duração (64 minutos), metade da platéia presente à sessão na Cinemateca de São Paulo abandonou a sessão antes do final, e isso também não é difícil de entender, já que o filme parece ter como proposta primordial desafiar o público, oferecendo a ele códigos diferentes do que está acostumado a apreender numa sessão de cinema: nos 64 minutos do filme, atores recitam, praticamente imóveis e em tom monocórdico, fragmentos da novela Mulheres de Messina, do escritor siciliano Elio Vittorini, o mesmo que inspirara o belo filme Gente da Sicília, da mesma dupla de diretores. Só que aqui, a opção pela ausência de mise-èn-scene tira a força do texto sobre a luta de camponeses na Itália do pós-guerra ao confundir o espectador.
Confundir o espectador também é o objetivo de Jacques Rivette em seu mais novo filme, A História de Marie e Julien. Não tanto pela forma, como Straub e Huillet, mas sim pelo conteúdo de forte teor psicanalítico em uma história de fantasmas amorosos. A exemplo de seu filme anterior, Quem Sabe? (mal lançado no Brasil), Rivette parece cada vez mais seguro do que quer de seus atores, de onde colocar a câmera, e do tempo narrativo de seus filmes. Vale ressaltar também que, como se fora ela mesma um fantasma, Emmanuelle Béart parece não envelhecer, conservando a mesma forma assombrosamente perfeita captada por Rivette há 12 anos em A Bela Intrigante.
Um aspecto que chamou atenção na Mostra de SP foi a quantidade de filmes centrados na questão da imigração/exílio. Quando oito cineastas são convidados a retratar a passagem do tempo em pequenos filmes de 10 minutos de duração e boa parte deles utiliza tema tão abrangente pra falar de fronteiras culturais e étnicas, isso vem mostrar como o assunto está em pauta, especialmente na Europa. O episódio dirigido por Bernardo Bertolucci que abre o longa Dez Minutos Mais Velho – O Cello é bem dirigido e fotografado mas beira o didatismo ao narrar a parábola de um imigrante hindu que desembarca na Itália achando que está na Alemanha. Como todo projeto desse tipo, Dez Minutos Mais Velho - O Cello, é irregular. Mas a reunião de nomes consagrados do cinema mundial já é suficiente para tornar o projeto atraente. Principalmente porque os episódios do alemão Volker Schlöndorf, do francês Jean Luc-Godard e do tcheco Jiri Menzel são excelentes. Menzel presta homenagem a um falecido ator tcheco fazendo uma belíssima edição de imagens de seus filmes, apenas com música ao fundo. Schlöndorf narra seu filme do ponto de vista de uma mosca que sobrevoa um churrasco onde o conflito étnico parece iminente, trabalhando de forma primorosa a reversão de expectativa, enquanto Godard, em um lampejo de genialidade, desconstrói o tempo em pequenos fragmentos e colagens.
O filme israelense A Jornada de James Para Jerusalém, do diretor estreante Ra’Anan Alexandrowicz, também tem a imigração tratada como parábola. Tem o vigor e os pequenos defeitos esperados de um primeiro filme, mas seu saldo é positivo, especialmente pela forma como ele desenvolve uma trama que se inicia em tom fabular para depois ganhar contornos bastante realistas, tratada de forma tragicômica. A tragicomédia também está presente, de forma um pouco mais amarga, em No Céu do Líbano, de Randa Chahal Sabbag. O exílio, aqui, é forçado pelo estado de guerra na fronteira do Líbano com Israel. O filme usa a inocência e pureza de uma jovem libanesa entrincheirada entre dois mundos para discutir como as tradições e costumes são afetados pela guerra em situações que beiram o absurdo.
Outro filme que perpassa a questão das fronteiras socio-econômicas é Tempos de Lobo, de Michael Haneke. O diretor austríaco é mestre em trabalhar com situações-limite, como já demonstrara em filmes como A Professora de Piano, Código Desconhecido e Funny Games. Essa agonia que costuma atingir seus personagens logo de cara contamina também o espectador de Tempos de Lobo, a quem nunca são oferecidas respostas fáceis para as questões levantadas pelo roteiro, apenas o estranhamento. Uma típica família burguesa francesa chega à sua casa de veraneio para um fim de semana feliz e se depara com estranhos lá dentro. Em poucos minutos o pai estará morto e sua esposa e os dois filhos pequenos se vêem obrigados a fugir, a pé, pelas estradas. A partir de então, rompe-se qualquer contato com suas vidas pregressas. Não há, ao longo do filme, sinal de parentes dando pela sua falta, polícia entrando em ação, nada do que se poderia esperar de um filme que começa com um crime desses. No lugar da civilização, Haneke oferece a barbárie, com todas as utopias sociais do grupo de marginalizados que acolhe a mulher e seus filhos. A tal resposta de Haneke aos filmes-catástrofe hollywoodianos é o apocalipse moral do mundo moderno, tão devastador quanto os terremotos e tempestades made in USA, mas muito mais realista – e cinematográfico.
Uma curiosa visão caótica da sociedade também é o que oferece o chinês Yu Lik Wai em O Amanhã Festivo, ambientado num futuro próximo em que a Ásia se encontra regida por um regime totalitário liderado por um fanático religioso. Embora esteticamente interessante, aos poucos a história vai se revelando uma grande bobagem e cansando o espectador. O mesmo se dá com A Música Mais Triste do Mundo, do canadense Guy Maddin. Todo em preto-e-branco e fotografado como um filme mudo do início do século, tem uma proposta estética que se adequa à trama, uma comédia fantasiosa sobre uma competição que vai eleger a música mais triste do mundo em Winnipeg, durante a Grande Depressão. Apesar de contar com atuações inspiradas de Isabella Rosselini, Maria de Medeiros e Mark McKinney, que encontram a medida certa do tom farsesco do filme, a idéia parece se esgotar na duração de um curta-metragem, não é suficiente para manter o interesse por longos 100 minutos.
Um dos aspectos interessantes de mostras é poder ver, num curto espaço de tempo, temas semelhantes tratados por cinematografias bem distintas. É o caso do iraniano Fôlego Profundo, de Parviz Shanbazi, do húngaro Dias Agradáveis, de Kornél Mundruczó, e do alemão Aprendendo a Mentir, de Hendrik Handldegten. Fôlego Profundo logo de cara chama a atenção por fugir do perfil de cinema iraniano que costuma chegar às telas brasileiras. A trama é narrada em flashback, não tem crianças ou tom fabular, nem faz uso da metalinguagem. Ao invés disso, coloca na tela jovens rebeldes e delinqüentes, que quebram retrovisores de carro por prazer e sobrevivem de pequenos golpes como roubos de telefones celulares. Traz também uma história de amor proibido de contornos sociais urbanos.
Os contornos sociais urbanos que envolvem a história de amor de dois jovens húngaros marginalizados também são o principal foco de interesse de Dias Agradáveis. Peter deixa a prisão e ao procurar pela irmã, Maria, na lavanderia onde esta trabalha, testemunha Maya dando à luz uma criança no chão da lavanderia. Maria paga a Maya para adotar o bebê, até que esta se arrepende e resolve recuperar a criança, enquanto nesse meio tempo Peter se apaixona por ela. Apesar de conseguir transmitir o estado de total desamparo dos personagens, o tratamento dado por Mundruczó ao drama vivido por eles é frio demais.
Aprendendo a Mentir é mais bem-sucedido na comunicação com o público, ao contar a história de um trintão relembrando suas desventuras amorosas a partir de meados dos anos 80, numa Alemanha ainda dividida pelo muro. O problema do filme é sua filiação excessiva ao formato de comédia romântica hollywoodiana, com personagens estereotipados, muita música pop da época e pouca reflexão. É o filme “fofinho”, feito para agradar àquele público que freqüenta a Mostra só pra ver o mesmo tipo de cinema ao qual assiste o ano inteiro no Cinemark.
Por fim, aquela que talvez tenha sido a maior surpresa do Festival, entre os 16 filmes que pude conferir: O Retorno, longa de estréia do diretor russo Andrey Zvyagintsev. Infelizmente tive que deixar São Paulo antes da exibição de Pai e Filho, do também russo Aleksandr Sokúrov, por isso não é possível comparar os dois filmes, mas há muito tempo a relação pai e filho não era retratada no cinema de forma tão bela como em O Retorno. Depois de 12 anos ausente de casa, um sujeito misterioso volta pra casa e resolve levar os dois filhos, de 12 e 15 anos, para pescar numa cidade próxima. Os meninos nada sabem do pai, apenas guardam a mágoa de terem sido deixados ainda pequenos, sem motivo conhecido; o pai é rude e de poucas palavras, e tem um jeito peculiar de demonstrar afeto. O filho mais velho logo se afeiçoa a ele, enquanto o caçula é teimoso e não compreende porque tem que obedecer ao homem que não quis saber dele por tanto tempo.
Os conflitos entre pai e filhos (especialmente o menor) se sucedem ao longo da viagem, e o que mais fascina no filme é perceber como o afeto pode se manifestar de forma tão intensa e sutil ao mesmo tempo. Determinado a dar de uma vez só aos filhos as lições de vida que não pôde (ou não quis) dar por mais de uma década, o sujeito se humaniza preservando até onde consegue o seu jeito durão de ser. O roteiro jamais cai nas fáceis armadilhas melodramáticas e a câmera também é tão contida quanto as emoções dos personagens. Some-se a isso as atuações mais que perfeitas do trio de protagonistas (o menino mais velho, Vladimir Garin, morreu afogado em julho deste ano), que comovem muito mais pelo olhar do que pelas quase inexistentes palavras. Esta fábula realista e arrebatadora levou o Leão de Ouro no último Festival de Veneza, redimindo o evento do mico que foi dar o prêmio máximo a Em Nome de Deus no ano anterior.
Agora é torcer para que muitos desses títulos entrem em cartaz algum dia, o que parece cada vez mais difícil num mercado em que o circuito exibidor dito “de arte” abre espaço para a versão cinematográfica de Os Normais.