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O COLECIONADOR (1965) em DVD

De: WILLIAM WYLER
Com: TERENCE STAMP, SAMANTHA EGGAR.
07.06.2014
Por Luiz Fernando Gallego
O clima ansiogênico se sustenta quase 50 anos depois e reverbera fixações também do seu diretor.

Até então inédito em DVD no Brasil, é extremamente oportuno o lançamento pela Versátil de O Colecionador (The Collector, título original), filme lançado por seu realizador, William Wyler, no Festival de Cannes de 1965 - de onde saiu com o prêmio de interpretação masculina e de interpretação feminina: na época um fato inédito na história do festival (e praticamente impossível de se repetir atualmente quando ao júri é recomendado que não dê mais de um prêmio para o mesmo filme).

Essa dupla premiação não deixava de ser uma forma de louvar o veterano cineasta, conhecido por dirigir atores extraindo deles desempenhos memoráveis e premiadíssimos (em seus filmes foram 31 os atores indicados a prêmios da Academia, sendo que 13 levaram a estatueta). Aqui, Wyler recorreu a dois rostos que eram quase desconhecidos. Terence Stamp vinha do papel-título em Billy Budd (1962), de Peter Ustinov, e de ter criado no palco o papel de “Alfie” - que, no cinema, faria de Michael Caine um astro. Depois de sua performance como “colecionador” Stamp seria requisitado logo nos três anos seguintes por gente do porte de Fellini, Pasolini, Ken Loach, John Schelinger e Joseph Losey, antes de mergulhar em filmes obscuros para retornar só alguns anos depois a melhores papéis. Já Samantha Eggar vinha de algumas participações na TV britânica e em alguns filmes ingleses. Embora indicada ao Oscar de melhor atriz em 1966 (Stamp não foi indicado) não teve a carreira que a repercussão de O Colecionador parecia prometer à atriz.

Este lançamento não é digno de atenção apenas pelo ineditismo da obra neste formato entre nós, mas também por ser mais um elemento para a filmografia de Wyler disponível em DVDs nacionais, já que a carreira do diretor vem passando por oportuna revalorização desde o lançamento, em 2011, de um volume do British Film Institute dedicado a Os melhores anos de nossas vidas (1946) na coleção Film Classics, mas, principalmente, depois de 2013, quando chegou às livrarias um alentado estudo de Gabriel Miller (autor de vários livros sobre cinema e teatro americanos e professor do Newark College of Arts and Sciences) intitulado “William Wyler – The life and films of Hollywood most celebrated diretor”. Bem mais do que se limitar a dados biográficos de Wyler, este livro desenvolve acurado estudo de 31 dos 36 filmes (e meio - já que há um dirigido em parte por Howard Hawks, Meu filho é meu rival, 1936) que W.W. assinou entre 1929 e 1970.

Prestigiado em vida, especialmente a partir de 1936 quando rodou These Three, versão atenuada da peça de Lillian Hellman “The Children’s Hour”, trocando a calúnia levantada por uma menina (originalmente sobre um suposto lesbianismo de suas professoras) por um inventado ménage à trois incluindo o noivo de uma delas. Wyler foi merecedor tanto de ensaios do grande crítico francês André Bazin sobre o uso da técnica de foco profundo em filmes como The Little Foxes (Pérfida), de 1941, quanto de um recorde de 12 indicações da Academia de Hollywood ao Oscar de melhor diretor, tendo recebido essa estatueta por três vezes.

Em Cannes recebeu uma Palma de Ouro em 1957, talvez mais por sua carreira anterior do que pelo filme ali premiado, Sublime Tentação, apesar de seus méritos no sentido de discutir a questão do pacifismo em plena "guerra fria" (recorrendo à passada Guerra de Secessão americana). Este tema é muito destacado por Miller como parte central nos dois filmes seguintes de Wyler (Da terra nascem os homens e Ben-Hur), mas foi justamente a partir da metade dos anos 1950 que o prestígio do diretor começou a ser menos reconhecido, especialmente depois que ficou associado ao tremendo sucesso comercial de Ben-Hur (1959), considerado por muitos como apenas mais uma superprodução no estilo grandiloquente de Hollywood. Embora o blockbuster seja um dos poucos no gênero que sobrevive bem a uma revisão ainda hoje.

De qualquer modo a repercussão de Ben-Hur foi enorme e Wyler, podendo fazer o que quisesse, voltou ao seu estilo de pré e pós II Guerra, ou seja, o de filmes mais intimistas, tendo optado por refilmar “The Children’s Hour” em 1961 tal como a peça havia sido escrita. Paradoxalmente, a versão de 1936 (ambas receberam o título “Infâmia” entre nós) é frequentemente mais elogiada, ainda que Alains Resnais o tenha incluído em sua lista de 10 melhores filmes vistos em 1962 na França para o Cahiers du Cinéma, revista que nunca considerou Wyler como um “autor”. Hoje, sabemos que ele interferia nos roteiros dos filmes embora nunca tivesse querido assinar nenhum deles, nem mesmo como co-autor; assim como dava palpites na trilha sonora (havia aprendido violino quando jovem) mesmo que encomendada por ele a um compositor erudito como Aaron Copland (Tarde Demais, 1949); além de decidir os enquadramentos e opinar na fotografia de seus filmes -sendo injusto dizer que se devia apenas a Gregg Toland e à técnica de foco profundo por ele desenvolvida em filmes de John Ford (A Longa Viagem de Volta, 1940), Orson Welles (Cidadão Kane, 1941) e - principalmente - nos sete filmes de Wyler em que Toland trabalhou entre 1936 e 1946, a qualidade narrativa reconhecida neste filmes de Wyler em que o cinegrafista colaborou.

Depois da segunda e pouco bem recebida versão de Infâmia Wyler esteve em projetos que não foram adiante com sua participação: na verdade, o primeiro filme de Julie Andrews em Hollywood seria The Americanization of Emily, de 1964 (Não podes comprar meu amor no título brasileiro), e por ele dirigido, mas Wyler queria modificar o roteiro e surgiram desentendimentos com o roteirista e os produtores, frustrando sua participação no projeto. Desejoso de dirigir um musical, aceitou filmar A Noviça Rebelde, tendo sido quem indicou a mesma Julie Andrews para o papel central, ainda antes do lançamento de Mary Poppins, mas o enredo não lhe agradava. Foi aí que dois roteiristas o seduziram com a adaptação que haviam feito do primeiro romance de John Fowles (mais tarde autor de A Mulher do tenente Francês que também seria levado às telas) e que é praticamente limitado ao embate entre dois personagens em um ambiente fechado: Wyler se demitiu do musical e foi filmar, satisfeito, O Colecionador.

Para parte da crítica este foi seu último grande filme, menosprezando o derradeiro Libertação de L.B.Jones (1970), um de seus maiores fracassos de crítica e de público, depois do que (mais por motivos de saúde) não mais filmou. No livro de Miller, este último filme também passa por uma revisão favorável, ainda que ele não faça o mesmo com Infâmia de 1961 que consideramos (na companhia de Resnais) muito subestimado.

O tema de O Colecionador já foi bastante imitado ao longo dos anos, mas era bastante original na época: um tímido funcionário de escritório ganha uma bolada em loteria esportiva e compra uma casa de campo onde constrói, em um porão externo, ambiente que ele julga adequado para ali manter uma moça por quem tem fixação, sem que ela saiba que ele exista. A metáfora hoje em dia pode soar surrada, mas é a base do título - do livro e do filme: ele lida com outro ser humano como um colecionador de borboletas (o que ele também é) lida com suas ambicionadas presas.

O filme tem um clima claustrofóbico e ansiogênico que se sustenta quase cinquenta anos depois de lançado. Praticamente sem que se escute nenhum personagem falando nos vinte minutos iniciais, a narrativa puramente imagética é prova da vitalidade e virtuosismo do diretor aos 63 anos. Além de reverberar fixações também do cineasta, mais além do fato de ser um drama que se passa prioritariamente em ambiente fechado: por exemplo, há uma cena que se passa sob chuva intensa em que a câmera “cai” no chão junto com os personagens, ecoando um momento de O Morro dos ventos Uivantes (1939) em que Heathcliff (Laurence Olivier) vai embora e Cathy (Merle Oberon) tenta chamar por ele sob forte temporal, saindo de casa e seguindo, desesperada, por um caminho descendente. Nas duas sequências, o que se transmite é uma sensação de descida aos infernos sem remissão. Como questões sociais sempre fizeram parte da vida e da obra de Wyler, também não se pode deixar de enxergar no embate entre o medíocre bancário esquizoide (poder-se-ia dizer fascistoide, obscurantista) e a sofisticada estudante de arte (isolada em sua cultura "superior") uma forma perversa de luta de classes e sem otimismo quanto a alguma forma de "acordo".

O pessimismo de Wyler viria desde, por exemplo, Beco sem saída (1937), sobre meninos de rua da época, passando pelas “raposas” (as little foxes) de “Pérfida” e pela incapacidade de perdoar do detetive de Chaga de Fogo (1951). Para não falar da crueldade dissimulada em boas maneiras - como diria muitos anos mais tarde Martin Scorsese ao mencionar a influência de Tarde Demais (1949) em seu A Época da Inocência (1993). Ou ainda no poder destruidor da mentira que leva ao desfecho trágico na segunda versão de Infâmia. Mas será em O Colecionador e, cinco aos depois, na (irônica) "libertação" de L.B. Jones (sua última direção) que tudo fica de fato “sem saída”.

A Versátil já lançou anteriormente aquele que talvez seja a obra mais bem sucedida do diretor, Tarde Demais (The Heiress) e uma das mais subestimadas (Infâmia, 61); depois de O Colecionador, quem sabe, a distribuidora se aventura a lançar A Libertação de L. B. Jones e filmes anteriores à Infâmia de ’36, tal como A House Divided, um drama edipiano de 1931?

A versão restaurada da Versátil preserva a qualidade da fotografia original e recoloca os minutos finais que a censura brasileira de época cortou quando do lançamento em película no Brasil, mas não traz nenhum extra além do trailer original. O que vale no caso é poder ver e/ou rever o filme.

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Outros comentários
    1538
  • André Setaro
    08.06.2014 às 08:12

    Excelente texto que nos conduz a uma melhor compreensão do grande e tão esquecido Wyler - cujo "Os melhores anos de nossas vidas se encontra na lista dos meus 20 favoritos,
    • 1539
    • Luiz Fernando Gallego
      08.06.2014 às 08:37

      Obrigado, Setaro.
    1540
  • Roberto Musacchio
    08.06.2014 às 18:36

    Revi anteontem, que coincidência! Realmente envelheceu muitíssimo bem. Que belo texto, Gallego, erudito no melhor sentido do termo.
    • 1541
    • Luiz Fernando Gallego
      08.06.2014 às 18:44

      Coincidência de postagem com o fato de vc ter visto o DVD, Roberto Musacchio: eu já havia visto e revisto há dias, lido e relido o livro mencionado por dias para escrever o texto. Valeu o esforço, então. Obrigado!
    1561
  • Rui Lopes
    17.06.2014 às 17:32

    Miranda, em princípio, não é mais que uma borboleta para o "colecionador", que procura, ao longo da trama, fisgá-la, fustigá-la, e por fim alfinetá-la em sua coleção. Contudo, Miranda é uma "espécime" que não se entrega, não se submete... reage, sublinhando os instintos de seu caçador, conduzindo essa brincadeira obscura(!) às raias da tragédia, numa metáfora da ambiguidade do Homem. A surpreendente psique humana, mais uma vez decantada pelo cinema, através da literatura do grande escritor inglês John Fowles. Oportuno e inesquecível!...