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PERDIDOS EM BRASÍLIA

21.12.2003
Por Carlos Alberto Mattos
PERDIDOS EM BRASÍLIA

José Eduardo Belmonte lida com a matéria bruta do cinema: rupturas amorosas, violência do cotidiano, acidentes de automóvel, corpos jovens que se agitam numa teia de palavras e músicas, citações cinematográficas, perigo de morte rondando nas esquinas e banheiros de uma cidade fantasmagórica.



Cinco curtas e um longa-metragem já bastam para revelar um autor com universo próprio e linguagem aberta para as indagações contemporâneas. A brutalidade de seus ícones, somada a uma concepção de tempo invulgar (ação física, memória e delírio dançam na mesma pista), liga seu nome a uma tradição de invenção que se enraíza no Cinema Marginal da década de 1970. Um cinema onde o lírico e o grotesco caminhavam de mãos dadas (ambas sangrando...) por avenidas e descampados que desejavam esvaziar a alma do espectador para mobiliá-la à sua maneira.



Essa herança se manifesta com maior vigor nos seus filmes “anárquicos”: na edição selvagem de Cinco Filmes Estrangeiros ou nas referências de Um Trailer Americano aos filmes de André Luiz Oliveira, ele próprio surgindo como o diretor-dentro-do-filme. Mas também nos seus filmes “românticos” vamos encontrar a semente da transgressão, seja na quebra da linearidade narrativa, seja nos blocos imensos de tempo extra-fílmico que organizam o destino inconcluso de suas personagens.



Belmonte quer dizer-nos muitas coisas no espaço entre as imagens, assim como no vão aberto entre seus filmes. O conflito básico de Três, curta seminal da época da universidade, parece encontrar uma solução conciliadora em Um Trailer Americano assim como Dez Dias Felizes ecoa situações e dilemas daquele primeiro filme – a angústia no canteiro central de uma auto-estrada, a memória jubilosa de um casal atirando cartas de baralho para o alto diante de um prédio residencial. Em Um Trailer Americano, vemos cenas de filmagem que aludem ao anterior Cinco Filmes Estrangeiros.



A unidade desse conjunto é garantida também pelo olhar particular que o diretor lança sobre Brasília, a cidade pela qual trocou sua São Paulo natal, desde os quatro anos de idade. A capital brasileira tem fama de ser uma cidade vazia (especialmente num feriado como o de Cinco Filmes Estrangeiros) e desumana em sua urbanização voltada mais para o trânsito permanente e a funcionalidade organizacional do que para a vivência doméstica. Os curtas de Belmonte tiram partido desse cenário de western futurista. Dispõem suas criaturas num desamparo interior que se replica na paisagem erma. Soltas nas superquadras, eixos rodoviários e ruas comerciais desertas, elas estão freqüentemente alienadas do convívio social e encerradas numa individualidade que Michelangelo Antonioni conhecia muito bem.



A caminhada para a solidão, a irrealização ou mesmo a morte, na verdade, independe do número de pessoas ao redor. É o que mostra Subterrâneos, o primeiro longa de José Eduardo Belmonte, ainda inédito no circuito comercial brasileiro. O filme é uma espécie de documentário espiritual de um famoso centro comercial de Brasília, onde lojas, boates eróticas, igrejas evangélicas e escritórios sindicais disputam as atenções de uma grande freqüência popular. Narra com som e fúria a história, fragmentária e labiríntica, de um punhado de personagens à borda do desespero. Encontramos ali um realizador em pleno domínio de suas elipses, seu talento, sua loucura. E isso vale muito, num momento em que a maioria dos cineastas brasileiros transige com o bom-mocismo.



Texto publicado originalmente no catálogo do 7º Festival de Cinema Luso-brasileiro de Santa Maria da Feira (Portugal), onde os curtas de Belmonte foram exibidos em sessão especial.

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