"Sonhos e Esperanças" foi o lema da 54a edição do Festival de Berlim, realizado de 5 a 15 de fevereiro último. Dieter Kosslick, no seu terceiro ano à frente da Berlinale, esclarece que "sonhos alcançáveis e inalcançáveis são o que os espectadores têm em comum com os personagens na tela".
Cold Mountain, de Anthony Minghella, mostrado fora de concurso, abriu a maratona super diversificada da Berlinale/04, que viu blockbusters do cinemão, aplaudiu independentes, curtiu a nostalgia dos bons tempos do cinema americano das décadas de 60 e 70, abriu espaços para a temática gay e por aí foi. Mais até do que na edição passada - quando declarações contra a Guerra do Iraque pipocavam a todo momento – a Berlinale deste ano procurou manter o perfil que o faz o mais político dos grandes festivais mundiais.
Assim, prestigiou na sua seleção filmes de diretores politicamente engajados como Boorman, Angelopoulos e Loach, pela primeira vez prestou sua homenagem principal a um latino americano (o contestador Fernando Solanas) e manteve uma tônica pacifista e progressista nas declarações oficiais: "Procuramos selecionar filmes que falam das mudanças que estão ocorrendo no mundo e das conseqüências sociais, políticas e econômicas que elas provocam na vida das pessoas", reafirmou Kosslick em uma de suas falas.
O GANHADOR DO URSO
Gegen die Wand (Contra a Parede) é uma produção alemã/turca dirigida pelo alemão de origem turca Fatih Akin. É um bom filme, seja de que nacionalidade for. Aliás, qualidade confirmada pelo fato de que Gegen ganhou também o Prêmio da crítica internacional (Fipresci) de melhor filme da competição.
Mantendo a coerência nacional-cultural, conta uma história de ciúmes que acaba em tragédia, envolvendo dois jovens de extração turca vivendo em Hamburgo, Cahit (Birol Ünel) e Sibel(Sibel Kekili). Discutindo questões difíceis como as estritas regras familiares de um lar islâmico e a busca da liberdade sexual por parte de jovens dessa comunidade vivendo na Alemanha, Akin continua examinando os (des)caminhos de sua etnia imigrada e desenraizada , como já fez em Short Sharp Shock, seu primeiro filme.
O fato é que desde 1986 nenhuma produção alemã mantinha em casa o Urso de Ouro. Talvez o Adeus Lenin! do ano passado estivesse mais à altura do prêmio, mas, covenhamos, já era tempo de um filme representando a cinematografia que nos deu tantos criadores geniais ao longo dos anos ser premiado na sua própria festa.
O ÉPICO DE MINGHELLA
Cold Mountain, estrelado por Nicole Kidman e Jude Law e baseado no livro de Charles Frazier, já é conhecido dos brasileiros. Logo após a concorrida sessão no Berlinale Palast, Anthony Minghella veio para a coletiva acompanhado do chefão da Miramax, Harvey Weinstein. “Cold Mountain é uma amarga leitura de uma história de amor", definiu o diretor. Minghella declarou, ainda, numa referência à tese de Frazier, de que a razão da guerra civil americana não foi - como é universalmente reconhecido - a questão da escravatura: "Ninguém iria à guerra para defender essa causa. A verdade é que o sul entrou na luta porque houve uma ameaça do norte de invadi-lo" , afirmou. Redefinição da História é isso aí.
GALA PARA MONSTER
Um dos destaques do festival foi a sessão de gala de Monster, de Patty Jenkins, um filme que chegou a Berlim cercado de enorme badalação mercadológica. Após a exibição, a diretora , muito articulada e decidida, subiu ao palco e chamou Charlize Theron. Foi a senha para uma das maiores ovações do festival, confirmada depois pelo Urso de Prata de melhor atriz recebido por Theron.
Baseado numa história real, Monster conta a vida de Aileen "Lee" Vuorno, uma prostituta da Flórida que, nos anos 80, foi condenada por ter cometido sete crimes em série. As vítimas eram todos seus clientes. Lee foi executada em 2002, após passar doze anos no Corredor da Morte. Durante esse período, escreveu uma série de cartas para uma colega do ginásio, que acabaram por chegar às mãos de Jenkins e inspirar o filme.
A atriz disse que o roteiro ficou pronto na primeira versão: "Estava tudo nas cartas escritas por Aileen", contou, complementando que ela e Jenkins fizeram uma
viagem de cinco meses pela Flórida tendo as cartas como guia e revisitando os locais onde a serial killer viveu e cometeu seus crimes. Sobre as modificações em seu físico para viver a personagem, Theron disse que isso foi absolutamente essencial: "Foi um processo natural para assimilar Aileen. Assisti a uma grande quantidade de material
em vídeo sobre ela, procurei imitar seus movimentos no espelho, o modo como ela andava, se vestia e falava, até me sentir completamente à vontade com seu comportamento e maneira de ser", contou, talvez inconscientemente explicando o agressivo "over acting" com que interpretou a sua personagem.
A atriz não está preocupada com o fato de a matadora em série vir a se transformar em heroína aos olhos do público: "Desde o início, nas minhas conversas com Jenkins, abordamos essa questão. Chegamos à conclusão de que o importante era buscar a verdade mais profunda do personagem. Acho que realizamos um filme sobre a história de uma mulher perturbada e sofrida, e não apenas sobre uma assassina em série", disse. Apesar da expectativa e dos aplausos, Monster dividiu a crítica em Berlim .
O DOGMA E A CROÁCIA
Em Tuas Mãos (Forbrydelser) marcou a volta da dinamarquesa Annette K. Olesen a Berlim, onde na edição passada ganhou o prêmio Anjo Azul de melhor filme
europeu de estréia, com a comédia Minor Mishaps. Este seu novo filme trata do encontro de uma pastora protestante com uma detenta numa prisão de mulheres.
Bastante ajudada pela montagem da ótima Molly Malena Steensgaard - colaboradora habitual de Lars von Trier -, Olesen se limitou, no entanto, a moralizar o tema presidiárias/drogas/religião e acabou por frustrar o público, que recebeu o filme com frieza.
Já As Testemunhas (Svejedoci), do croata Vinko Bresan, foi um dos filmes mais aplaudidos do festival. O filme narra três histórias paralelas sobre as conseqüências psicológicas da guerra da Iugoslávia. "É um filme sobre pontos de vista intercruzados,
porque assim também são os Bálcãs", disse o diretor, que também retornou ao festival, onde esteve em 2000 com Marshall, que aborda tema semelhante. Inspirado no livro de Jurica Pavicic, As Testemunhas acompanha as investigações de um crime cometido por soldados croatas durante a guerra civil iugoslava . "Quis fazer um filme sobre os mecanismos do mal e como eles podem atuar na alma humana em tempos de guerra, e não propriamente sobre as relações políticas entre a Croácia e a Sérvia" , esclareceu Bresan.
GRANADO PRESENTE
Após o lançamento memorável no último Festival de Sundance, Diários de Motocicleta, de Walter Salles, foi muito cogitado para ser mostrado no Festival de
Berlim. A não confirmação, no entanto, acabou motivando, na última hora, a inclusão do documentário sobre as filmagens de Diários - Travelling with Che Guevara, de Gianni Miná, que havia adquirido os diários de Ernesto Guevara e
permitido que Redford os levasse à tela.
No mesmo período em que Salles realizou o filme, Miná seguiu a equipe e fez um making of da filmagem, no qual o personagem principal é Granado. Além dele,
Travelling traz depoimentos importantes dos atores e também de Walter, que disse ter realizado Diários por causa dos dois jovens que fizeram uma viagem de
iniciação e descobriram um continente marcado por desigualdades sociais. A exibição do filme de Miná contou com a presença de Granado, hoje com 81 anos, frágil fisicamente, mas com a mente extremamente lúcida e afiada. Estavam também presentes o diretor e Camilo, filho de Guevara.
Na coletiva após a sessão, Granado afirmou que foi bastante emocionante refazer, 50 anos depois, o mesmo trajeto que realizou em 52 com o então jovem Guevara: "Salles foi muito fiel à verdade e acrescentou beleza ao relato", elogiou Granado, lembrando com emoção momentos de sua aventura com Guevara. "Saímos para um futuro incerto e acabamos descobrindo a América Latina", disse. O "jovem de 81 anos" , como é chamado por Salles, disse que Guevara tinha uma inquietação intelectual muito grande: "Ele não tinha o sentido do heroísmo: era heróico por natureza". A Camilo Guevara foi perguntado o que representa ser o filho de alguém tão lendário. Após contar que trabalha no Centro de Estudos Che Guevara em Cuba, Camilo disse que não é fácil carregar a responsabilidade de ser filho do Che e concluiu: "Mas eu sou apenas o filho biológico, o importante são os filhos ideológicos que ele deixou: somos todos irmãos, nós, os filhos do Che" , declarou, emocionando a platéia.
BOORMAN FEZ SUSPENSE SOBRE O APARTHEID
O inglês John Boorman exibiu seu novo trabalho, Country of My Skull, na mostra competitiva. O filme não chegou a ser aclamado, mas o veterano diretor de
obras inesquecíveis, como Amargo Pesadelo e À Queima-Roupa, mostrou que seu talento permanece. Embora não tenha podido contar com as estrelas principais do filme (Samuel L. Jackson e Juliette Binoche), sua coletiva foi uma das mais concorridas do festival. Country of My Skull segue a viagem do jornalista
Whitfield (Jackson), do Washington Post, até a Africa do Sul. Seu editor o envia até lá para cobrir os inquéritos da Comissão da Verdade e Reconciliação, na qual os responsáveis por assassinatos e torturas durante o período do apartheid são intimados a ter uma acareação com as antigas vítimas. Se falassem a verdade e mostrassem arrependimento, talvez conseguissem anistia por seus crimes.
O ceticismo de Whitfield sobre os resultados da Comissão é agravado quando ele se defronta com o Cel. De Jager (Brendan Gleeson), o mais notório torturador e assassino da polícia sul africana, e tenta penetrar na sua mente, uma experiência que o obriga a confrontar-se com seus próprios demônios. Binoche faz Anna, uma poetisa que está cobrindo as audiências para a rádio local. Mesmo sendo sul-africana branca filha de fazendeiros, ela fica chocada com os depoimentos sobre as crueldades cometidas pelos seus próprios patrícios e acaba se ligando a Whitfield. "Eu admirei muito a forma como o apartheid foi derrotado e como a paz foi mantida posteriormente, e quis fazer um filme a respeito", disse Boorman, acrescentando que tem esperança de que algo parecido aconteça com o conflito atual entre judeus e palestinos.
AS APOSTAS DE RON HOWARD
Apostando muitas fichas no prêmio máximo da Berlinale - já que Desaparecidas não teve boa acolhida no circuito americano -, Howard e a atriz principal do filme, Cate Blanchett, esbanjaram simpatia durante a coletiva de imprensa. Adaptado do livro de Thomas Edison, o filme de Howard é uma mistura de suspense e faroeste, com direito a índios (incluindo um bruxo), mocinhos e bandidos (alguns travestidos de apaches), tráfico de mulheres brancas e por aí vai. "Certamente trata-se de um faroeste, mas na verdade eu quis fazer algo diferente. Depois do 11 de setembro ficou difícil fazer um filme sobre o momento atual. Por isso preferi abordar um período do passado da história americana", revelou o diretor, ressalvando que viu muitos faroestes e, na medida do possível, tentou não repetir no seu filme muitos cacoetes do gênero. Imaginem se tentasse.
A história se passa no fim do século XIX, em um lugar perto da fronteira com o México constantemente aterrorizado por gangues de índios e bandidos. Maggie (Blanchett) sai à procura de sua filha mais velha raptada por apaches rebelados. Fortes ressentimentos voltam à tona quando ela é levada a reatar as relações com o pai (Tommy Lee Jones), que reaparece, 20 anos após abandonar a família, para viver com os apaches chiricauas.
"Para mim, o mais importante da trama é a história que se desenrola entre pai e filha" disse a atriz, complementando que o fato do filme ser um faroeste, ou não, é secundário. Blanchett falou sobre a maternidade, um tema bastante presente em Desaparecidas, e das cenas difíceis que galhardamente precisou fazer, já que durante as filmagens estava no início da gravidez. "Foi complicado, comi muita poeira e galopei sem reclamar", contou.
ARGENTINA, O ÚNICO SUL-AMERICANO
Com a responsabilidade de representar o continente na busca do Urso, El Abrazo Partido, do argentino Daniel Burman, uma comédia de costumes, agradou bastante
sobretudo pelo seu texto criativo, embora um tanto centrado em situações próprias da cultura judaica. Acabou levando o Urso de prata do Grande Prêmio do Júri , para surpresa de muitos.
O filme conta a história de Ariel (Daniel Hendler), um jovem que vive em Buenos Aires tentando desvendar o passado de sua família polonesa, que veio para a Argentina fugindo do nazismo. Por que seu pai abandonou a família quando ele nasceu? Pior: seu pai é realmente seu pai? Ao mesmo tempo, tentava adquirir cidadania polonesa para deixar a Argentina. El Abrazo Partido recebeu aplausos entusiasmados do
público, que fez justiça às suas óbvias qualidades, sobretudo pelo roteiro muito bem desenvolvido e pela excelente atuação do ator uruguaio Daniel Hendler, um
Urso de Prata merecido por sua interpretação dentro de um estilo minimalista, porém ao mesmo tempo muito expressiva .
A PRESENÇA ITALIANA
A Itália também só teve um filme representando o país na mostra competitiva: Primo Amore, de Matteo Garrone, um diretor que, desde a boa repercussão de L´Imbalsamatore em Cannes/2002, vem impressionando os críticos com seu trabalho criativo, sempre surpreendente, e muito pessoal. “Primo Amore é um filme dark", foi logo avisando o diretor na coletiva com a imprensa, principalmente
para aqueles que, iludidos pelo título, poderiam ter esperado um filme de amor.
Garrone tem mesmo um estilo muito peculiar de fazer cinema, que mistura tintas do estilo noir num misto de ficção e documentário. Primo Amore é a história do escultor Vittorio e sua busca obsessiva pela mulher perfeita. Ao encontrá-la na pessoa de Sonia, o lado deformado de sua psique vem à tona e a trama toma um outro rumo. O filme é inspirado em um personagem real italiano, que só se sentia atraído por mulheres magras, quase anoréxicas. Ao se apaixonar por uma mulher de peso normal, ele a obriga a perder peso até tornar-se esquelética.
A história se passa em Vicenza, onde Garrone e os roteiristas Vitaliano Trevisan e Massimo Gaudioso ficaram isolados durante um ano escrevendo o roteiro. "Só sei trabalhar assim", explicou. Garrone vacilou um pouco para responder sobre suas
influências no cinema. "Talvez David Lynch, Lang ou Kubrick", disse. Seja lá quem for o seu ídolo, Garrone é com certeza um dos nomes mais promissores da nova safra do cinema italiano.
OUTRO SUCESSO DE LINKLATER
Outro destaque da competitiva foi Before Sunset, de Richard Linklater, estrelado por Julie Delpy e Ethan Hawke. O filme é a seqüência de Antes do Amanhecer, 94, que valeu a Linklater o Urso de Prata de melhor diretor naquele ano. Linklater, no entanto, disse na coletiva para a imprensa que prefere considerar seu novo filme como uma continuação e não uma seqüência : "Seqüência parece ter uma conotação econômica e esse não foi o caso do meu filme. Eu o fiz por razões pessoais e
disse isso desde que terminei o primeiro trabalho. Era só uma questão de tempo e oportunidade para continuar o filme, condições que surgiram agora", ressaltou.
Essa foi também a opinião dos atores, que preferiram descrever o filme como continuação do original: " o final do primeiro praticamente exigia que fizéssemos o
segundo", disse Hawke sobre Before Sunset. A afirmação vale para lembrar que o filme anterior de Linklater mostrava o drama dos dois jovens Jesse e Celine que se
encontram, passam 24 horas juntos e prometem se reencontrar em seis meses. Nesta continuação, filmada em apenas 15 dias, o personagem de Hawke - agora um escritor de sucesso - reencontra sua amada em Paris anos depois, justamente quando está promovendo o livro que escreveu sobre o romance que os dois viveram em Viena.
CONCORRENTES VETERANOS
No penúltimo dia , três nomes de peso foram destaque na Berlinale: Eric Rohmer,Theo Angelopoulos e Ken Loach, que concorreram ao Urso ao lado de estreantes e diretores em consolidação de carreira. Apresentação no final é uma estratégia do festival, que costuma deixar para os últimos dias o melhor de sua seleção. Até aí tudo bem, mas certamente teria sido preferível que os consagrados diretores tivessem seus filmes apresentados "hors concour".
Rohmer mostrou o seu Triple Agent, um thriller que remonta a 1936, durante as tensões pré guerra. A história segue o jovem general tzarista Fiodor (Serge Renko), que se refugia em Paris com sua esposa, a grega Arsinoé (Katerina Didaskalou). Enquanto ela simpatiza com os comunistas, Fiodor se envolve em missões secretas. Ele até admite que é um agente, mas deixa dúvidas de quem: dos russos anticomunistas, dos soviéticos ou dos nazistas? Será que ele próprio sabe quem realmente dá as ordens? A dúvida faz parte do estilo rohmeriano.
Triple Agent, aparentemente um filme diferente de Rhomer, é a história de um espião mas ao mesmo tempo é mais uma reflexão moral levantada pelo cultuado diretor francês com sua inconfundível assinatura. Afinal, o alvo principal de sua obra parece estar sempre na moral-da-história, como numa fábula grega. Suas tramas trazem personagens que poderiam ser qualquer um de nós vivendo qualquer uma daquelas
situações. Triple Agent não é diferente. Como é típico nos filmes de Rohmer, este também é focado muito mais na complexidade das relações entre as pessoas e nos
seus dilemas éticos, do que propriamente na história pura e simples. Bastante doente, o consagrado diretor não pôde vir a Berlim, frustrando jornalistas e fãs que esperavam poder conversar com ele após a sessão do seu filme.
UM PROJETO AMBICIOSO
O grego Theo Angelopoulos, por sua vez, também voltou no tempo para falar sobre uma história sócio-política em Trilogy - The Weeping Meadow. O filme - primeira parte de uma trilogia sobre sua terra natal - é centrado em um homem e uma mulher que se conheceram ainda crianças em Odessa, na Rússia. Tendo como fio condutor a história de amor entre os dois, o filme fala de lutas fratricidas, dramas de família, exílios, padrões culturais e colapso de ideologias. Esta primeira parte da trilogia começa com a invasão de Odessa pelo Exército Vermelho, a fuga em 1919 da comunidade grega para sua terra natal e vai até o fim da guerra civil na Grécia, em 49.
Com sua costumeira lentidão de narrativa e discretos movimentos de câmera, Angelopoulos continua fazendo de seu cinema uma plataforma didática sobre ideologia, história e os dramas da condição humana. "A humanidade continuará vivendo sua aventura", disse o mestre grego na concorridíssima coletiva com a imprensa após a sessão. Trilogia, ademais, traz de presente para o espectador cenas de uma beleza plástica inesquecível, em composições irretocáveis, onde nenhum elemento de cena está em excesso ou em falta. Uma perfeição. A história é embalada pela trilha competente e sensível de Eleni Karaindrou, e pela fotografia de Andreas Sinanos, onde o negro e o azul, em contraste quase permanente, dominam a tela.
Ao final, o diretor explicou seu ambicioso projeto: "Vivi praticamente toda a minha vida, todos os meus sonhos e realizei o meu trabalho no século XX. Era importante que eu fizesse este estoque da minha memória".
UM DIRETOR COERENTE
Uma história de amor também é o tema de Ken Loach em Ae Fond Kiss. Mas como não podia deixar de ser no cinema sócio-político do cineasta inglês, o pano de
fundo é uma reflexão sobre os problemas da Inglaterra dos dias de hoje, entre os quais os atritos étnico-religiosos entre imigrantes de origem oriental, quase todos muçulmanos, e os ingleses anglo-saxões cristãos. Casim, filho de imigrantes paquistaneses, vive em Glasgow e trabalha como DJ num clube. Seus pais são islâmicos e haviam planejado o casamento dele com uma prima que ia chegar do Paquistão. Quando Casim encontra Roisin, uma jovem católica, e se apaixona por ela, os choques culturais e os conflitos de família se tornam inevitáveis.
Mais uma vez , Loach traz sua mensagem política e - a exemplo de outros filmes seus - trabalha com um grupo de atores que viveram experiências semelhantes às retratadas no filme.
Em resumo, são três filmes excelentes feitos por três mestres do cinema , mas ressalta o trabalho do grego Angelopoulos. Outras películas exibidas em Berlim podem ter agradado mais a alguns. Mas se o júri tivesse levado em conta, junto com a qualidade dos filmes, a obra anterior dos concorrentes - e não seria a primeira vez a acontecer tal coisa - Rohmer, Angelopoulos e Loach certamente não teriam saído daqui de mãos injustamente vazias.
FILME RATED "X", DESTAQUES DA PANORAMA
Depois do sucesso no último Festival de Sundance, Amor em Pensamentos (Was Nuetzt Die Liebe in Gedanken), do alemão Achim von Borries, foi um dos filmes mais
interessantes do festival. A produção, mostrada na Panorama, já saiu de Berlim comprada pela Beta Cinema, para a New Select Co. do Japão e para a filial brasileira da Next Entertainment. A história retroage no tempo para abordar o inquérito de um grupo de jovens ricos alemães sobre a morte de um deles, Guenther. Ele, seu melhor amigo, o poeta Paul e sua irmã Hilde - uma jovem desavergonhadamente sedutora - haviam participado de uma orgia de quatro dias envolvendo muito álcool, drogas e ligações sexuais. Acompanhados de um círculo de amigos e conhecidos, eles estavam determinados a ser felizes ou morrer.
O filme é uma tese sobre o amor absoluto e a morte, numa mistura sexualmente vibrante e ressonante, mostrando a decadência dos excessos da época da pré-guerra durante a República de Weimar. Com um ótimo elenco, este trabalho de época captura uma intensidade de sentimentos que transformaram num filme provocante o que poderia ter sido, em mãos menos talentosas, apenas uma produção “rated X” a mais - classificação que lhe foi injustamente atribuída.
A HOLLYWOOD DOS ANOS 60 E 70
Nessa volta no tempo, na tradicional seção retrospectiva da Berlinale, foram mostrados clássicos do cinema norte-americano do final dos anos 60 e meados dos 70. Intitulada "New Hollywood 1967-1976 - Trouble in Wonderland ", a mostra constou de 66 filmes dessa época de ouro do cinema dos Estados Unidos. São filmes que retratam os movimentos políticos e sociais que marcaram aquelas décadas e fizeram a cabeça de milhares de cinéfilos e diretores de todas as gerações. Foram também filmes que tomaram o lugar da "velha Hollywood" nos corações e mentes dos espectadores e acabaram gerando o fenômeno das produções independentes, hoje tão proliferadas que se tornou até difícil distinguir as verdadeiras das falsificadas pelo próprio sistemão hollywoodiano.
Entre os títulos mais conhecidos e cultuados foram exibidos Uma Rajada de Balas, de Arthur Penn; Taxi Driver, de Martin Scorsese; Terra de Ninguém, de Terrence Malick;
A mostra foi coroada com a exibição de Sem Destino, de Dennis Hopper, um dos principais ícones da década, definido pelo diretor do Festival, Dieter Kosslick,
"como um dos filmes que influenciaram uma geração inteira". Além da retrospectiva - apresentada com palestras e debates - houve o lançamento de um livro ilustrado
sobre os filmes exibidos e sua história, uma publicação da editora berlinense Bertz Verlag, infelizmente editado apenas em alemão. Por enquanto.
SOLANAS HOMENAGEADO
Mais de quarenta anos de carreira e um currículo diversificado valeram ao diretor argentino Fernando Solanas, 67 anos, um Urso de Ouro pelo conjunto da obra. Pela primeira vez, um latino americano foi escolhido para receber a homenagem . Solanas - Pino, como é chamado - disse na coletiva com a imprensa que estava muito satisfeito com o recebimento do Urso honorífico e falou sobre seu documentário Memória do Saque, exibido em Berlim como parte da homenagem que recebeu do festival.
Memória do Saque discute o que os governos dos últimos 25 anos fizeram com a Argentina. "O filme tenta explicar o quase inexplicável. É uma introdução para provocar a memória das pessoas e mostrar aos jovens de 15, 20 anos - que têm
dificuldade de entender o que aconteceu na Argentina - como o modelo neoliberal arrasou o país", disse o diretor, acrescentando que, para ele, seu filme se inscreve na luta anti-globalização.
A PARTICIPAÇÃO BRASILEIRA
Fala Tu, de Guilherme Coelho, estreou no Panorama Documenta e agradou a um público que não negou aplausos para o filme sobre o cotidiano de três habitantes comuns do Rio de Janeiro. No debate com o público após a exibição, Coelho
definiu seu filme como "uma crônica carioca". Perguntado sobre a escolha do tema, o diretor explicou que foi uma opção sua e do roteirista Nathaniel Leclery. " A idéia de retratar pessoas pouco favorecidas socialmente não buscou resolver, através do cinema, os nossos problemas de desigualdade. Apenas documentamos o que achamos que devíamos documentar" , resumiu.
O Brasil também esteve presente na Panorama principal com a exibição de Contra Todos, do paulista Roberto Moreira. Após a sessão, o diretor participou de um
debate com o público, quando falou sobre o filme e, como sempre acontece, sobre o recorrente tema da violência no Brasil. Realizado com técnica digital, o filme conta no elenco com Ailton Graça (o traficante Majestade de Carandiru) e Leona Cavalli.
O destaque do cinema brasileiro na Berlinale/04, no entanto, foi o filme de Marcos Bernstein, O Outro Lado da Rua, com Fernanda Montenegro e Raul Cortez
encabeçando o elenco. Muito bem construído, acabou ganhando o prêmio de melhor película da Panorama, oferecido pela Confederação Internacional dos Cinemas de Arte. Bernstein já havia estado na Berlinale de 98, acompanhando Central do Brasil, cujo roteiro ele havia escrito em parceria com João Emanuel Carneiro.
O Outro Lado da Rua foi exibido na Panorama Especial com o cinema totalmente lotado, aplaudidíssimo ao final e com 90% do público permanecendo no cinema para conversar com Bernstein, Cortez e Fernanda. Depois de Central, sua premiação e posterior indicação ao Oscar, já se pode dizer que a consagrada atriz tem o seu público em Berlim e sua simples presença no elenco funciona como uma forte atração. No filme de Bernstein, ela interpreta Regina, uma aposentada que passeia por Copacabana com sua cachorra vira-lata e passa informações para a polícia com a convicção de que suas ações ajudarão a melhorar a vida no bairro. Cortez vive Camargo, um juiz aposentado.
" É um filme que fala de sentimentos e da solidão humana. Eu quis ambientar o filme em um bairro caótico e perigoso como tantos outros existentes nos grandes centros urbanos mundo afora", disse o diretor. Na trama, numa de suas andanças, Regina vê - ou imagina ter visto - o juiz assassinando a própria esposa. A partir daí, os dois vão se envolver num clima que mistura uma série de gêneros, um achado do filme. "Foi um risco calculado misturar doses de mistério, humor, romance e drama", revelou Bernstein. A história buscou referências na obra do pintor americano Edward Hopper, que retratou como ninguém a solidão que acomete as pessoas tanto nas grandes
cidades, como também fora delas. "Eu quis mostrar uma Copacabana diferente daquela conhecida mundialmente, colorida, alegre e tropical. No filme ela remete a Hopper, é mais fria e escura", contou Bernstein, que juntamente com o diretor de fotografia Toca Seabra e a diretora de arte Bia Junqueira, procuraram buscar cenários e luzes que mostrassem o clima solitário dos personagens, ajudado pelo excelente desempenho de Cortez e Fernanda.
Satisfeito com o tento marcado nesse seu primeiro trabalho, Bernstein já tem outros projetos em mente: "Não posso revelar muito ainda, mas é uma história mais
fragmentada de dois personagens libertários, envolvendo questões de tempo, cronologia e outras dimensões" , adiantou.
A Berlinale exibiu ainda o curta Truques, Xaropes e Outros Artigos de Confiança, de Eduardo Goldenstein. O filme, já mostrado no Festival do Rio, encerra a trilogia iniciada por Goldstein com O Copista em 97 e O Vendedor de Pára-raios em 99.
UMA OBSERVAÇÃO FINAL
Às vezes torna-se um mistério, mesmo para aqueles que já participaram de diversos júris de festivais, o que leva um grupo de pessoas supostamente bem informadas a
serem tão contraditórias nas suas decisões. Como explicar quais os critérios que levaram as mesmas pessoas a premiar, no mesmo embalo, o over acting de Charlize Theron e a competente atuação minimalista de Daniel Hendler ? Não satisfeitos, os jurados deram como empatadas(!) Charlize e Catalina Sandino Moreno, esta pela correta, não mais que isso, atuação em Maria Llena Eres de Gracia. Ao mesmo tempo, deixaram de fora fortes desempenhos como os de Alexandra Aidini (Eleni) em
Trilogia: The Weeping Meadow, Katerina Didaskalou (Arsinoé) em Triple Agent. Se era para dar empate, as duas atrizes gregas mereciam muito mais. Sem esquecer ainda a ótima Maggie criada por Cate Blanchett. No ano passado, o Urso foi dado a três atrizes. Se a regra é empatar, por que não repetir a dose com atuações verdadeiramente de mérito?