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SERÁ QUE TEM JEITO?

29.06.2004
Por Marcelo Moutinho
SERÁ QUE TEM JEITO?

Cerimônia de posse de novos desembargadores no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. No salão nobre do Palácio da Justiça, o magistrado Sylvio Capanema, um dos mais respeitados do país, discursa em saudação a Fátima Clemente, que naquele momento era empossada. As palavras cuidadosamente escolhidas por Capanema revelam o eruditismo do orador e procuram destacar o rigor e a seriedade de Fátima na aplicação da lei e na busca pela efetivação da Justiça.



A seqüência acima espelha uma das facetas do documentário justiça, de Maria Augusta Ramos. O filme obedece a um movimento pendular, que flagra o abissal contraste entre dois extremos que idealmente deveriam estar atrelados - os ritos e a retórica dos agentes do Poder Judiciário e o cotidiano da realidade com a qual lidam. Tal oposição de fato ocorre, e seu agravamento dá-se numa segunda contraposição, esta entre garbo e miséria, que surge nítida na tela enquanto o espectador acompanha o dia-a-dia de réus, testemunhas, defensores, promotores e magistrados em audiências, julgamentos, mas também em suas vivências pessoais, nas reuniões em família, em seus demais ofícios...



Quem os registra é uma câmera quase invisível, que se limita a captar o que desenrola-se à frente, uma opção estética que funciona com precisão, pois repete, aos olhos do espectador, a grandiosa descoberta feita pela própria diretora ao aproximar-se do mundo da Justiça. Como destacou Carlos Alberto Mattos na primorosa resenha publicada aqui mesmo no Críticos.com.br, já a grafia do título – com inusuais minúsculas - indica que mais do que um ente, a investigação de Maria Augusta mira um conceito. Sob a perspectiva aristotélica, a Justiça seria “a lei moral” cuja concretização sustenta-se nos princípios “da proporcionalidade” e da “equidade”. Nas pouco menos de duas horas do documentário, torna-se flagrante que tais bases, pelo menos no caso brasileiro, encontram-se esfareladas.



Antes de iniciar as filmagens, a diretora passou dois meses entrevistando possíveis personagens e conhecendo o cotidiano do Fórum Central. Feita a seleção, abdicou de entrevistas diretas, narração em off, trilha sonora ou outros elementos que pudessem interferir no que é mostrado. Isto embora a edição em vários momentos marque oposições, como acontece na seqüência que salta do plano das paredes marmorizadas do Palácio da Justiça para o enfoque sobre as celas superlotadas da Casa de Custódia da Polinter.



A fotografia de Flavio Zangrandi é discreta mas também ajuda a sublinhar, em tons azulados, a frieza dos corredores do Tribunal, exprimindo a assepsia que paradoxalmente cerca a vida tão pulsante e dolorosa dos que por lá circulam. O trabalho de som também é eficientemente executado; evita “dramatizações” que poderiam denotar artificialismo, malgrado não abster-se de flagrar situações por si só dramáticas, como a visita da mãe ao filho detido: na cela superlotada pelos presos e seus parentes, em meio à zoeira caótica de todas as falas juntas, notamos os lábios dos dois em movimento. Mas massa sonora embota a voz deles, impossibilita que sejam ouvidos por nós. Extremamente simbólico.



Os contrastes estendem-se aos quase absurdos diálogos entre juízes e réus. O palavrório tecnicista da legislação, por vezes contornado pela paciência e o esmero de magistrados como Geraldo Prado, soa ininteligível para os acusados, cujas manifestações - titubeantes, hesitantes, descoordenadas - são o retrato bem delineado da falência da Educação brasileira. Este fosso entre o que os agentes do Judiciário pugnam e aplicam e aquilo no que tais teorias se transformam quando chegam na vida real poderá espantar espectadores que só conhecem “sistemas judiciários” a partir do exemplo americano, popularizado por intermédio do tradicional subgênero dos filmes de tribunal. O susto, no entanto, não é só deles. Também os que têm uma relação mais próxima com o tema podem se surpreender. Assino embaixo.



Apesar de trabalhar na área há mais de 13 anos, primeiro como estagiário, depois como repórter, e nos últimos tempos como editor da Tribuna do Advogado, o jornal da OAB/RJ, confesso o desconforto – um bendito desconforto, por assim dizer – diante de boa parte das cenas. O Judiciário que conhecemos, nós que diariamente fazemos reportagens para o informativo, é aquele da cerimônia de posse mostrada no filme. É o que elenca suas melhores intenções em estudos, seminários, discussões. É o que defende ou critica a adoção da súmula vinculante, o controle externo da Magistratura, punições mais duras para os criminosos, penas alternativas. É aquele cujo discurso – o discurso, vale repetir – virtuosamente volta-se para democratizar o acesso à Justiça, para aperfeiçoar as leis. Mas não é, certamente, o Judiciário que aparece no documentário, e lhe confere força-motriz.



O filme de Maria Augusta alimenta-se daquilo que se passa no interior da esfera protetora dos rituais e da linguagem: no viés do microcosmo da sala de audiência, no encontro entre defensora e réu, no relato que só é pronunciado para além do espaço oficial, na dura exposição de que todos aqueles expedientes teóricos capazes de suscitar tantos estudos, debates, discussões, em geral revestidos de bons propósitos, e que parecem não ter a devida efetividade prática. São pontas cuja distância o documentário expõe. De um lado, pequenezas, fraudes miúdas, cotidianas e tão nossas, como a desalentadora constatação que Carlos Eduardo, jovem réu que foi detido ao guiar um carro roubado, não pode comprovar que trabalha porque o patrão não assinou sua carteira. De outro, a letra (morta?) da lei levada a ferro e fogo, traduzida na emblemática seqüência de abertura, em que um juiz interroga o acusado de roubo e posterior fuga, sem sequer notar que o rapaz é deficiente físico. Dura lex, sed lex.



justiça aborda outras questões, de alguma forma ligadas ao tema precípuo. Nosso falido sistema prisional, a presença incômoda das facções criminosas, o papel algo oportunista de setores evangélicos que buscam “rebanho” com base do desespero alheio, a corrupção policial, todos estes lamentáveis aspectos fulguram nas quase duas horas de projeção, e injetam no espectador uma sensação de impotência extrema, bem definida na seqüência em que a defensora pública Maria Ignez Kato janta em companhia dos pais. “A gente trabalha, trabalha e não vê resultado. Estamos sempre enxugando gelo”, diz ela, num lamento que ecoa dentro da gente mesmo depois de deixarmos a sala de projeção, como se repetisse uma só pergunta: será que tem jeito?

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