Cerimônia de posse de novos desembargadores no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. No salão nobre do Palácio da Justiça, o magistrado Sylvio Capanema, um dos mais respeitados do país, discursa em saudação a Fátima Clemente, que naquele momento era empossada. As palavras cuidadosamente escolhidas por Capanema revelam o eruditismo do orador e procuram destacar o rigor e a seriedade de Fátima na aplicação da lei e na busca pela efetivação da Justiça.
A seqüência acima espelha uma das facetas do documentário justiça, de Maria Augusta Ramos. O filme obedece a um movimento pendular, que flagra o abissal contraste entre dois extremos que idealmente deveriam estar atrelados - os ritos e a retórica dos agentes do Poder Judiciário e o cotidiano da realidade com a qual lidam. Tal oposição de fato ocorre, e seu agravamento dá-se numa segunda contraposição, esta entre garbo e miséria, que surge nítida na tela enquanto o espectador acompanha o dia-a-dia de réus, testemunhas, defensores, promotores e magistrados em audiências, julgamentos, mas também em suas vivências pessoais, nas reuniões em família, em seus demais ofícios...
Quem os registra é uma câmera quase invisível, que se limita a captar o que desenrola-se à frente, uma opção estética que funciona com precisão, pois repete, aos olhos do espectador, a grandiosa descoberta feita pela própria diretora ao aproximar-se do mundo da Justiça. Como destacou Carlos Alberto Mattos na primorosa resenha publicada aqui mesmo no Críticos.com.br, já a grafia do título – com inusuais minúsculas - indica que mais do que um ente, a investigação de Maria Augusta mira um conceito. Sob a perspectiva aristotélica, a Justiça seria “a lei moral” cuja concretização sustenta-se nos princípios “da proporcionalidade” e da “equidade”. Nas pouco menos de duas horas do documentário, torna-se flagrante que tais bases, pelo menos no caso brasileiro, encontram-se esfareladas.
Antes de iniciar as filmagens, a diretora passou dois meses entrevistando possíveis personagens e conhecendo o cotidiano do Fórum Central. Feita a seleção, abdicou de entrevistas diretas, narração em off, trilha sonora ou outros elementos que pudessem interferir no que é mostrado. Isto embora a edição em vários momentos marque oposições, como acontece na seqüência que salta do plano das paredes marmorizadas do Palácio da Justiça para o enfoque sobre as celas superlotadas da Casa de Custódia da Polinter.
A fotografia de Flavio Zangrandi é discreta mas também ajuda a sublinhar, em tons azulados, a frieza dos corredores do Tribunal, exprimindo a assepsia que paradoxalmente cerca a vida tão pulsante e dolorosa dos que por lá circulam. O trabalho de som também é eficientemente executado; evita “dramatizações” que poderiam denotar artificialismo, malgrado não abster-se de flagrar situações por si só dramáticas, como a visita da mãe ao filho detido: na cela superlotada pelos presos e seus parentes, em meio à zoeira caótica de todas as falas juntas, notamos os lábios dos dois em movimento. Mas massa sonora embota a voz deles, impossibilita que sejam ouvidos por nós. Extremamente simbólico.
Os contrastes estendem-se aos quase absurdos diálogos entre juízes e réus. O palavrório tecnicista da legislação, por vezes contornado pela paciência e o esmero de magistrados como Geraldo Prado, soa ininteligível para os acusados, cujas manifestações - titubeantes, hesitantes, descoordenadas - são o retrato bem delineado da falência da Educação brasileira. Este fosso entre o que os agentes do Judiciário pugnam e aplicam e aquilo no que tais teorias se transformam quando chegam na vida real poderá espantar espectadores que só conhecem “sistemas judiciários” a partir do exemplo americano, popularizado por intermédio do tradicional subgênero dos filmes de tribunal. O susto, no entanto, não é só deles. Também os que têm uma relação mais próxima com o tema podem se surpreender. Assino embaixo.
Apesar de trabalhar na área há mais de 13 anos, primeiro como estagiário, depois como repórter, e nos últimos tempos como editor da Tribuna do Advogado, o jornal da OAB/RJ, confesso o desconforto – um bendito desconforto, por assim dizer – diante de boa parte das cenas. O Judiciário que conhecemos, nós que diariamente fazemos reportagens para o informativo, é aquele da cerimônia de posse mostrada no filme. É o que elenca suas melhores intenções em estudos, seminários, discussões. É o que defende ou critica a adoção da súmula vinculante, o controle externo da Magistratura, punições mais duras para os criminosos, penas alternativas. É aquele cujo discurso – o discurso, vale repetir – virtuosamente volta-se para democratizar o acesso à Justiça, para aperfeiçoar as leis. Mas não é, certamente, o Judiciário que aparece no documentário, e lhe confere força-motriz.
O filme de Maria Augusta alimenta-se daquilo que se passa no interior da esfera protetora dos rituais e da linguagem: no viés do microcosmo da sala de audiência, no encontro entre defensora e réu, no relato que só é pronunciado para além do espaço oficial, na dura exposição de que todos aqueles expedientes teóricos capazes de suscitar tantos estudos, debates, discussões, em geral revestidos de bons propósitos, e que parecem não ter a devida efetividade prática. São pontas cuja distância o documentário expõe. De um lado, pequenezas, fraudes miúdas, cotidianas e tão nossas, como a desalentadora constatação que Carlos Eduardo, jovem réu que foi detido ao guiar um carro roubado, não pode comprovar que trabalha porque o patrão não assinou sua carteira. De outro, a letra (morta?) da lei levada a ferro e fogo, traduzida na emblemática seqüência de abertura, em que um juiz interroga o acusado de roubo e posterior fuga, sem sequer notar que o rapaz é deficiente físico. Dura lex, sed lex.
justiça aborda outras questões, de alguma forma ligadas ao tema precípuo. Nosso falido sistema prisional, a presença incômoda das facções criminosas, o papel algo oportunista de setores evangélicos que buscam “rebanho” com base do desespero alheio, a corrupção policial, todos estes lamentáveis aspectos fulguram nas quase duas horas de projeção, e injetam no espectador uma sensação de impotência extrema, bem definida na seqüência em que a defensora pública Maria Ignez Kato janta em companhia dos pais. “A gente trabalha, trabalha e não vê resultado. Estamos sempre enxugando gelo”, diz ela, num lamento que ecoa dentro da gente mesmo depois de deixarmos a sala de projeção, como se repetisse uma só pergunta: será que tem jeito?