Artigos


UMA FICÇÃO COMO OUTRA QUALQUER

25.08.2004
Por Carlos Alberto Mattos
UMA FICÇÃO COMO OUTRA QUALQUER

Três em cada três discussões sobre o cinema documental acabam por afunilar-se numa questão que assombra o gênero: afinal, o que é documentário? Que lugar ocupam as idéias de “realidade” e “verdade” nessa forma de cinema hoje tão prestigiada? Reféns do “maldito” termo documentário – que os americanos contornaram com um não menos problemático “non-fiction film” –, cineastas e estudiosos gastam boa parte de seu tempo com querelas semânticas que, na verdade, refletem dilemas éticos, estéticos e políticos nascidos praticamente junto com o cinema.



O título do livro de Silvio Da-Rin já anuncia as noções de refração e crise que acompanham toda reflexão sobre o filme documental. Espelho Partido – Tradição e Transformação do Documentário não vai transformar o beco sem saída desse debate numa autopista desimpedida, mas certamente vai torná-lo mais iluminado, limpo e habitável.



Sem pretender contar a história do documentarismo mundial, o livro acaba sendo o que melhor se aproxima dessa função entre tudo o que já foi editado no Brasil. Da-Rin é um refinado conhecedor do assunto, além de talentoso documentarista e engenheiro de som. Esse texto, sem algumas modificações importantes da versão agora publicada, tem circulado como tese há alguns anos pelo meio acadêmico, fornecendo base teórica a toda uma geração de universitários. Ou seja, antes mesmo de chegar à forma de livro, já cumpriu uma função admirável.



Entre as suas muitas qualidades está a de aliar, passo a passo, o exame do trabalho dos grandes documentaristas (aqueles que formaram escola) com o rebatimento teórico que eles inspiraram. A combinação de dados biográficos, exemplos colhidos nos filmes, considerações de contexto ideológico e análise de teorias permite ao autor caminhar no rumo de suas próprias conclusões sobre o documentário como um mero “constructo”, ou seja, “uma ficção como outra qualquer”.



Que o documentário envolve dramatização, interpretação, invenção e performance todos sabemos de sobra. Mas a forma como essas estratégias se sucederam desde as primeiras tomadas do cinematógrafo de Lumière até a auto-reflexividade do documentário contemporâneo nem sempre é compreendida na profundidade proposta por Da-Rin. Para desmentir a idéia de uma evolução linear, que supostamente acumularia ganhos no sentido de se atingir uma verdade cada vez mais complexa e fiel, ele repassa as contribuições de Robert Flaherty, John Grierson e a escola inglesa, Dziga Vertov e o cinema-olho, Robert Drew/Richard Leacock e o cinema direto, Jean Rouch e o cinema verdade. A experiência brasileira é enfocada em Alberto Cavalcanti e, sobretudo, pelo viés da crise da representação documental, através de trabalhos de Arthur Omar, Jorge Furtado e Eduardo Coutinho.



Da-Rin utiliza em larga escala a classificação proposta por Bill Nichols, segundo a qual os documentários se comportam diante da realidade de modo expositivo, observacional, interativo e/ou reflexivo. Não o faz, porém, para separar um modo do outro, hierarquizá-los ou ordená-los segundo uma cronologia. Todo o seu esforço de articulação e análise tem por objetivo mostrar como essas linhas de força se combinaram e interagiram historicamente, tendo sempre no horizonte algum método de representação. Daí a constante recuperação de condutas e ideais “antigos” na abordagem de procedimentos mais modernos. A trajetória dos documentários é uma aventura autenticamente dialética no que toca à tradição e à transformação.



Em meio a múltiplas atitudes e pensamentos a respeito do cinema do real, Silvio Da-Rin elege Vertov como uma espécie de padroeiro da modernidade. Ou pelo menos um parâmetro fixo, em torno do qual gira o seu compasso. Ao recusar a narrativa como atributo de dramatização, mas privilegiando a montagem como lugar da produção de sentidos, Vertov teria levantado questões que anteciparam e ultrapassaram o discurso hegemônico sobre os documentários. Da-Rin dedica a Vertov o maior espaço e, proporcionalmente, a maior importância no que se refere ao “desvio” que hoje tanto se busca na relação entre imagem e realidade.



A imposição – fundamentada – do entusiasmo por Vertov, contudo, não chega a transformar o livro em elegia. O autor vê a história dos documentários como uma sucessão de acumulações e dispersões, onde nenhuma fase tem a primazia absoluta de tangenciar algum ideal. Signos precoces de modernidade seriam já a “narratividade frouxa” de Flaherty e mesmo a obsessão formal de Grierson, que em certo nível traía sua crença na predestinação naturalista do cinema.



Da-Rin dedica algumas de suas melhores páginas a levantar a revolução de valores provocada pelo advento do som nos documentários. Questiona com vitalidade os preceitos de observação não-intervencionista do cinema direto, contrapondo a isso a “intervenção produtiva” operada pelo cinema verdade, com sua aberta incorporação do falso. Recupera as raízes do movimento auto-reflexivo, hoje dominante nos documentários de ponta, sublinhando mais uma vez o papel pioneiro de Vertov e seu O Homem da Câmera.



Ao longo de sua consistente análise histórica, Da-Rin lança um olhar crítico ao ilusionismo e às apropriações ideológicas que afastaram o documentarismo – assim como o cinema em geral – de uma suposta vocação modernista, instituindo-o como um suposto instrumento de prova. A figura do espelho partido sintetiza, assim, um elogio à fragmentação de perspectivas e ao descentramento de discursos que podem reconciliar o documentário com suas mais ricas potencialidades.



ESPELHO PARTIDO – TRADIÇÃO E TRANSFORMAÇÃO DO DOCUMENTÁRIO

Autor: SILVIO DA-RIN

Prefácio: JOÃO MOREIRA SALLES

Azougue Editorial, RJ, 2004

247 páginas

Voltar
Compartilhe
Deixe seu comentário