A obra do escritor americano Edgar Allan Poe (1809-1849) mereceu grande atenção na França a partir da tradução de vários de seus contos e poemas por outro grande artista, Charles Baudelaire (1821-1867). A difusão de Poe em francês motivou psicanalistas tão diferentes como a Princesa Marie Bonaparte (que pagou aos nazistas para deixarem Freud sair de Viena) e Jacques Lacan. Ambos dedicaram alguns de seus mais conhecidos trabalhos a criações de Poe: Lacan, em seu famoso seminário sobre “A Carta Roubada”, um dos mais brilhantes contos de dedução e raciocínio; ela, em um volume de quase 700 páginas de “psicanálise aplicada” às short stories que classificou como “contos da mãe viva-na-morte”, “da mãe assassinada”, “da mãe como paisagem” e “contos do da passividade do pai”, “da revolta contra contra o pai” e “da luta com a consciência”.
Além de poeta, autor de “O Corvo”, poema traduzido por admiradores de peso como Machado de Assis e Fernando Pessoa, Poe inventou o conto policial que inspiraria gerações de personagens-detetives com enorme capacidade dedutiva (Sherlock Holmes, Hercule Poirot, Nero Wolf, etc). Mas talvez seja mais conhecido como grande renovador do gênero fantástico, mudando, muitas vezes, o paradigma anterior: no lugar de personagens “normais” em ambientes terroríficos, ele colocava personagens com a vida psíquica alterada em ambientes não-necessariamente fantasmagóricos ou sobrenaturais. O terror está dentro de seus personagens, como dentro do próprio artista criativo que ele foi. E não há conto de Poe narrado na terceira pessoa: o narrador é sempre o personagem que sofre ou quem escutou uma confissão desesperada e narra o que ouviu.
Tal subjetividade narrativa dificulta enormemente a adaptação de suas histórias para o cinema que, não obstante, não cansa de usar seus enredos em filmes. A recentemente lançada no Brasil caixa de DVDs, Edgar Allan Poe no cinema, da distribuidora Versátil em convênio com a livraria Cultura, traz quatro dos seis filmes dirigidos por Roger Corman entre 1960 e 1964, inspirados - mais ou menos livremente - em contos de Poe, sendo que o filme Muralhas do Pavor é composto de três episódios – e por sua vez, um dos episódios, O Gato Preto mescla este conto a outro, “O Barril de Amontillado”, beneficiando-se de um certo humor e da interpretação marcante de Peter Lorre. Os outros dois episódios são bem menos interessantes: Morella parece copiar o enredo de um conto de Poe com tema similar, “Ligeia”, o que vai prejudicar a futura adaptação deste outro conto. E O Caso do Sr. Valdemar, selecionado por Borges e Bioy Casares para representar Poe na antologia que organizaram sobre literatura fantástica, cai na mesma questão de outros roteiros da série que acrescentam eventos banais (adultério, por exemplo) para criação de historinhas que emoldurem as sintéticas situações dos contos originais.
Corman é famoso por ter dado oportunidade a jovens cineastas e atores que, mais tarde seriam famosos (Coppola, Scorsese, Jack Nicholson, etc etc) e por visar um cinema comercial de baixo custo e bom retorno, sendo que seus filmes baseados em Poe foram apenas um pouco menos baratos do que a maioria dos que produzira e dirigira até então. Parte da crítica cultua estes filmes: seja por pretender encontrar neles uma recriação cinematograficamente interessante dos originais de Poe, seja pelos filmes em si, independente de suas relações, muitas vezes bem tênues, com as obras das quais utilizam os títulos.
Os dois primeiros filmes do chamado “ciclo Poe” de Corman não mereceram boa acolhida crítica quando de seu lançamento no início da década de 1960, mas a partir do terceiro filme, (Muralhas do Pavorr, de 1962), parte da crítica passou a cultuar toda a série, inclusive, retrospectivamente.
Para O Poço e o Pêndulo, de 1961 e que está nesta caixa (no Brasil havia sido lançado nas salas de exibição como “A Mansão do Terror”) – o roteirista Richard Matheson (autor de “Eu sou a Lenda”, conto várias vezes filmado, e do roteiro de Encurralado, de Spielberg) inventou um enredo bem parecido com o de A Queda da Casa de Usher (lançado como “Solar Maldito” no Brasil), de 1960. O anterior modificava menos o texto literário e suas fortes sugestões de uma atração incestuosa mórbida entre irmão e irmã. Mas o conto “O Poço e o Pêndulo” se passa inteiramente na mente de um personagem que está sendo torturado durante a Inquisição Espanhola, e o que o roteirista fez foi um plágio do filme anterior que havia dado muito dinheiro.
Obsessão Macabra, baseado no conto “Enterro Prematuro”, traz um caso de claustrofobia caricatural com entrecho banal de traições. E O Túmulo Sinistro, que em 1964 fechou o ciclo de exploração de Poe por Corman, fica prejudicado pela opção de enfocar mais a segunda esposa do personagem masculino, em vez da primeira, a 'Ligeia' do título original.
Corman é um artesão experiente, sabia fazer mais (ou um pouco mais) com (até bem) menos recursos, mas daí até um certo endeusamento de seus filmes desta série vai uma enorme distância - ao nosso ver. A caixa da Versátil é bem produzida, as cópias dos filmes estão em ótimo estado e não deixam de ser uma curiosidade para cinéfilos e amantes do gênero terror em pegada já antiga (talvez antiquada para um público mais sôfrego por sangue, suor e vísceras).
Por outro lado, à exceção do episódio O Gato Preto, já mencionado, as outras duas mais elogiadas versões de Poe em filmes de Corman saíram em outras apresentações: o já citado A Queda da casa de Usher saiu em uma série de livros semanais com DVDs de filmes baseados em literatura pelo jornal “A Folha de São Paulo”. E A Orgia da Morte, de 1964, usando os contos “A Máscara da Morte Rubra” e “Hop-Frog”, saiu na primeira caixa da Versátil de "Obras-primas do Terror".
Curiosamente, esta caixa vale, sobretudo, por um de seus vários “extras”: o ator Vincent Price, tremendamente canastrão nos demais filmes, surge excepcional em quatro monólogos (Uma Noite com Edgar Allan Poe, 1970, 52 minutos) feitos para a TV e que são exatamente os textos de quatro contos - um pouco editados, mas preservando o essencial.E bem mais fiéis a Poe do que os filmes de Corman.
Também encontramos nos "extras" hora e meia de documentários (um deles sobre a realização de O Poço e o Pêndulo, bem interessante e revelando as ambições mais comerciais do que "artísiticas" do diretor) e trailers.
P.S.: Muralhas do Pavor e O Poço e o Pêndulo já haviam saído em DVD no Brasil por outras distribuidoras. O segundo, pela Cult Classic com o título brasileiro original, A Mansão do Terror.
P.P.S.: Aos interessados, cabe lembrar outra tentativa frustra de transformar contos de Poe em filmes realizados por três diferentes diretores europeus no longa intitulado Histórias Extraordinárias (de 1968, e também lançado, há tempos, em DVD no Brasil): Roger Vadin, como sempre, fez mais um filme medíocre, mudando o sexo do personagem de "Metzengerstein” para exibir sua então mulher, Jane Fonda. De Louis Malle esperar-se-ia muito mais na versão de um dos mais brilhantes contos de Poe, “William Wilson”. Apesar da boa escolha de Alain Delon para o personagem, também houve inserção de uma personagem para Brigitte Bardot no enredo (sem quase nada para fazer), diluindo um tema que poderia redundar em um ótimo filme de “dupla personalidade”, ou sobre um “duplo”. O melhor dos três episódios foi Toby Dammit, de Fellini, baseado no conto “Nunca aposte sua cabeça com o diabo”. Mas aqui, Poe era apenas uma remota inspiração para o italiano fazer um filme “felliniano” e que tem mais a sua cara do que a do americano.