O cineasta Ingmar Bergman tem anunciado desde 1982, quando realizou o autobiográfico Fanny e Alexander, sua intenção de parar de filmar. Agora, no entanto, tudo indica que Saraband, mostrado no último Festival de Nova York, pode ser mesmo o adeus de um dos maiores diretores de todos os tempos. Na entrevista após a projeção, Liv Ulmann, estrela do filme e uma das atrizes favoritas de Bergman, praticamente confirmou a aposentadoria do grande mestre sueco.
“Não creio que Ingmar pise novamente num set”, disse, revelando que no último dia de filmagem, os participantes do filme prepararam uma comemoração e Bergman alegou uma dor de cabeça e foi embora dizendo: “vejo vocês qualquer hora”. Para espanto dos jornalistas e do moderador Richard Peña, Ulmann simplesmente foi em frente e afirmou secamente: “ele foi embora para ilha dele e duvido que alguém o veja novamente”. Peña, ainda perplexo, disse apenas: “Acho que depois disso não há mais perguntas que se possa fazer”.
Programado para o Festival de Veneza do ano passado, Saraband foi retirado pelo próprio Bergman na última hora, o que foi considerado uma esnobação ao evento italiano. O diretor declarou na ocasião que não estava satisfeito com o aspecto visual do filme, que ele mesmo define como “o exame de uma situação difícil com dez diálogos entre quatro personagens”. Mais bergmaniano impossível.
Filmado em alta definição digital e produzido pela televisão Media Europa, Saraband é uma espécie de continuação de Cenas de um Casamento, de 74, em que os mesmos personagens voltam a se encontrar. Marianne e Johan, 30 anos depois de separados, retornam para se defrontar com temas recorrentes da obra de Bergman como o amor, a morte, o ódio e o difícil relacionamento entre as pessoas e seus pais, filhos, maridos ou amantes.Os papéis são vividos também pelos mesmos atores de então, Liv Ulmann e Erland Josephson. Em dez capítulos e com um prólogo e um epílogo resumidos, Saraband, que à primeira vista pode parecer uma novela, termina por ser uma profunda análise dos relacionamentos interpessoais em que os personagens se desnudam, às vezes literalmente como numa cena dos veteranos Liv e Erland, através de suas razões, todas plausíveis e lógicas.
O filme era um projeto antigo do diretor e tinha o título inicial de Anna. O reencontro de Marianne e Johan aprofunda a parte psicológica de quatro personagens e mais um quinto, só mostrado através de uma foto, e que é o único realmente positivo da trama. Saraband pode também ser visto como uma autobiografia cinemática do grande diretor. Ao reavivar cenas do clássico de 74, Bergman mostra Ulmann mais velha mas ainda radiante; Liv é uma de suas musas, ao lado de Harriet Andersson, Ingrid Thulin e Bibi Andersson. Bergman teve cinco casamentos e pelo menos oito filhos. Sua última esposa, Ingrid Von Rosen, falecida há dez anos, interpretou um pequeno papel em Gritos e Sussurros. Fazia uma espectadora. Após a morte de Ingrid, o diretor desfez-se do seu apartamento em Estocolmo e exilou-se na ilha de Faroë, na costa oeste da Suécia. Lá, onde ele mesmo se intitula de “o Velho de Faroë” – o cineasta vive isolado e fascinado pelo silêncio e a solidão da ilha, cenário recorrente em alguns de seus filmes, como Persona, um exemplo inesquecível.
“Às vezes não falo com ninguém o dia inteiro”, disse numa entrevista, quase celebrando o fato de viver sozinho no local, que para ele tem sido uma fonte de inspiração artística e que viu nascer o argumento de suas últimas películas. Enquanto o consagrado diretor se isola absorto em lembranças e pensamentos que anunciam a sua aposentadoria desta vez para valer, a nós, admiradores de sua obra, restará o consolo de rever dramas com a capacidade de captar os mais recônditos sentimentos humanos, como no verdadeiro duelo de interpretação entre Harriet Andersson e Liv Ulmann em Gritos e Sussurros; ou “jogos da verdade”, trazendo à tona rancores e amarguras após a alegria inicial de um reencontro entre mãe e filha (Ingrid Bergman e Ulmann) que não se viam há anos, em Sonata de Outono; ou ainda a viagem do Professor Isak para receber um importante prêmio na universidade numa passagem também crepuscular, na obra prima Morangos Silvestres.
Bergman recentemente doou para o Instituto Sueco do Filme todo o seu material audiovisual: roteiros, notas, fotografias e centenas de documentos guardados por mais de 60 anos. O registro de sua obra parece realmente não o interessar mais, nem sua carreira, nem festivais, nem estar atrás das câmeras.