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CADA UM VIVE COMO QUER

20.03.2005
Por L.G Leão
POR UM SENTIDO NA VIDA

Cada Um Vive como Quer(Five Easy Pieces, no original), de Bob Rafelson, reconhecido por vários analistas como uma das realizações mais instigantes da safra de 1970, chega novamente em DVD para regozijo dos colecionadores ainda inconformados com a versão em VHS, datada de muitos anos. Sobre este filme de Bob Rafelson, de texto visual bastante atual, escreveu John Gruen na revista Vogue: “Filme de aparência tranqüila, no qual nada parece acontecer, mas capaz de provocar reflexões e inteiramente absorvente pelo seu tom emocional, atmosfera e personagens detalhados e consistentes com o tema central: a falta de um sentido para a existência”.



Pauline Kael, quase sempre do contra, não lhe poupou elogios: “Filme surpreendente, exponencial, eloqüente, importante, escrito e improvisado num idioma tipicamente americano, derivado de nenhum outro e descrevendo pela primeira vez, como jamais se viu na tela, a natureza do homem comum americano condicionado a viver mudando porque seu único bem é o ímpeto de poder fazê-lo”.



Esta realização de Bob Rafelson, também produtor com Richard Wechsler e autor do argumento original co-adaptado por Adrien Joyce, foi indicada, recorde-se, para os Oscar de Melhor Filme, Melhor Roteiro, Melhor Ator e Melhor Atriz Coadjuvante. O DVD traz o bônus adicional de sempre, mas omite, lamentavelmente, cenas da filmagem.



Em Cada Um Vive como Quer, há ecos ou aproximações com A Máscara e o Rosto (Charlie Bubbles), filme inglês de Albert Finney (1969), A Primeira Noite de um Homem (The Graduate), de Mike Nichols (1967), e Sem Destino(Easy Rider), de Dennis Hopper (1969), mas o subtexto de Rafelson é mais fecundo e reveste seu filme de maior abrangência em relação a esses da década de 1960 e aos chamados road movies. Os pontos de contato residem no desespero de quem não encontrou um sentido para a vida ou está perdido num vazio existencial, incapaz de dar e receber amor. Na esteira da sua admiração por François Truffaut, Bob Rafelson trata esse tema rico de aspectos e significados através de aparente simplicidade.



O filme abre com o canto de Rammy Wynette, enquanto se lêem os créditos, pois a letra da música tem relevância para a continuidade da narrativa desde o ponto-de-vista feminino: “Às vezes é difícil ser mulher / E dar todo seu amor a um homem só / Você vai passar por maus momentos / E ele só vai se divertir / Fazendo coisas que você não entende / Mas se você o ama, você o perdoa / Mesmo que seja difícil entendê-lo / E se você o ama tenha orgulho dele / Porque afinal de contas ele é só um homem / Não me toque quando houver uma mulher no seu coração / Fique ao lado do seu homem / E mostre ao menos que você o ama / Continue lhe dando todo amor que você puder / Fique ao lado do seu homem”. O título original é Stand by your Man.



Robert (Bobby) Dupea (Jack Nicholson) vive em conflito consigo mesmo. Quando sai da rotina do seu trabalho numa prospectadora de petróleo, no primeiro terço do filme (plano de exposição), cai com o amigo na bebida, na jogatina, numa certa irresponsabilidade. Ressente-se do tédio sexual (por isso trata mal ou com indiferença a amante) e se lança nos braços de garotas de programa. Ex-pianista de curso, deixou de aprimorar-se profissionalmente e seguir outros rumos. Seu mundo é o de pessoas da classe média, balconistas, garçonetes, jogadores de boliche ou de pôquer, mulheres promíscuas. Seu colega mais próximo está em livramento condicional. Termina preso por agentes do FBI (Federal Bureau of Investigations), depois de inútil resistência. Pode-se até perguntar por qual motivo fazer um filme sobre tal microcosmo. Mas este nos atrai de alguma forma e dele se vale Rafelson para revestir o drama humano com sua visão cinematográfica.



Um aflitivo congestionamento de trânsito (rodado com impecável realismo fílmico) leva-o a subir num caminhão, descobrir o piano e tocar ao ar livre algumas Five easy pieces... Ao encontrar-se na cidade com sua irmã, estudante de piano num conservatório, vem a saber dos dois derrames sofridos pelo pai, a quem largara há uns três anos, e decide visitá-lo, por insistência dela. Acaba levando consigo sua Rayette (Karen Black) como forma de atenuar os desentendimentos do casal, mas deixa-a num motel para sentir primeiro como andam as coisas em casa. “Se você me deixar”, diz ela, “lerá sobre mim nos jornais”. Deixa-lhe a impressão de estar grávida.



Bob Rafelson recria a viagem de volta à casa paterna com a inserção de incidentes aparentemente banais, mas pleno de significantes no seu conjunto. A carona dada na estrada a duas mulheres, provavelmente homoeróticas, uma das quais, interpretada com a maior espontaneidade por Helena Lallianotes (pela primeira vez diante das câmaras), está obcecada pela questão do lixo, do fedor, da imundície e da limpeza (termos sugestivos de outros significados). Torna-se repetitiva: “Os animais estão sempre se limpando”, “Em breve não haveráespaço para o homem”, etc. Discute depois com Rayette e faz-lhe gesto obsceno dentro do carro.



A edição dessas cenas é perfeita e o timing se torna cômico nessa improvisação histérica da mulher, como acentuou à época o articulista Jean Giraud. O corte seco conduz o espectador à lanchonete de beira de estrada, quando Bobby entra em atrito com uma estrita cumpridora de ordens, simplesmente porque quer ver seu pedido acompanhado por algumas torradas. A garçonete não cede. Pergunta Gruen: “Quem já não desejou derrubar os pratos e copos de uma mesa? Com uma braçada, o personagem se torna o iconoclasta favorito de todos”.



No reencontro com seu passado e na paixão súbita pela cunhada Catherine (Susan Aspach), de beleza suave, olhos verdes, cabelos alourados, a quem acaba levando para uma relação íntima (lembremo-nos de quando ela lhe diz estar livre para recebê-lo depois de amanhã, quando o marido estiver ausente), a vida de Bobby se complica. Quer ficar com ela, mas Cathy não o acompanha por causa dele mesmo, não por ser casada, mas porque “quem não ama ninguém não pode querer ser amado”.



Bob Rafelson sabe como posicionar a câmera durante a intimidade de um casal, seja no beijo entre amantes (“um truque na natureza”, como disse Ingrid Bergman em entrevista, “para quando a fala se torna supérflua”), seja na fisionomia pós-orgásmica de satisfação de Catherine. O roteiro é bem estruturado e ambos, Rafelson e Adrien, capricham nos detalhes, tratando-os com adequação e atenção redobrada, sem deixar pontas soltas. O espectador deve suprir tudo quanto não é mostrado nas ligações entre cenas e perceber os lapsos de tempo e a recriação do espaço no cinema.



Nas extensas e bem pavimentadas highways do percurso até o Estado de Washington e na travessia de balsa até a ilha, Bob Rafelson imprime o toque de quem sabe fazer cinema, distribuindo criativamente os personagens nos enquadramentos. Nada de primeiros planos desnecessários ou de câmara tremente. Os diálogos, bem escritos, brotam espontaneamente, até mesmo na difícil comunicação entre os membros da própria família e com intelectuais em visita ao velho, quando Bobby lhes responde agressivamente. Mais adiante dirá: “Estou sempre mudando para me afastar das coisas que dão errado”. Bobby, em rigor, não está fugindo de nada, ele simplesmente vai em frente e tira vantagem de qualquer situação favorável. Obviamente, nunca está satisfeito, alguém sempre lhe deve algo e confunde a busca da liberdade com a incapacidade de comprometer-se, como assinalou a roteirista Adrien (“Ela compôs o personagem porque me conhecia bem”, esclareceu Jack Nicholson).



L.G. DE MIRANDA LEÃO é Crítico de Cinema, Mestre em Literatura Americana e de Língua Portuguesa. Um dos pilares do Clube de Cinema do Ceará.

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