Recife/Sevilha: João Cabral de Melo Neto passou como um cometa pelas telas abertas do país. Foi exibido somente em festivais e num canal de TV por assinatura. Ganhou prêmios e angariou admiração entusiasmada. Ainda assim, é muito menos do que faria jus a esse belo trabalho de convergência de linguagens.
Agora a Eletrobrás distribui como brinde uma edição limitada do DVD, que contém o documentário de Bebeto Abrantes e uma deliciosa coleção de extras. O retrato falado e visual do poeta severino fica ainda mais completo, mais cheio de alma. Em sua reduzida duração de 52 minutos, o filme forçosamente deixou de lado trechos importantes tanto da longa entrevista (sua última) que João Cabral concedeu a Abrantes, como de depoimentos de poetas e intelectuais como José Castello, Lêdo Ivo e o pintor catalão Antoni Tàpies. Esse material se torna público nos extras do DVD. Só do depoimento de Cabral, temos 25 preciosos minutos, separados por temas. Um magnífico passeio pelas recordações do poeta, em sua voz pausada e algo feminina.
Outro regalo do disco é um filmete de 8 minutos, Poeta com Alma, reunindo imagens domésticas de João Cabral em família ao comentário divertido e revelador de sua filha, Inês Cabral.
O que hoje é privilégio dos funcionários e clientes da Eletrobrás precisa ser rapidamente estendido ao público, que poucas chances teve de conferir um dos mais saborosos tributos audiovisuais já feitos a um escritor brasileiro.
Leia a seguir a minha resenha do filme à época do Festival do Rio 2003:
Disse o poeta João Cabral que gostaria de ter sido cineasta. Porque nos dois ofícios se trabalha com a imagem. Esse pequeno trecho de sua última entrevista, concedida em 1999 a Bebeto Abrantes, parece nortear toda a narrativa de Recife/Sevilha: João Cabral de Melo Neto. O documentário agarra com sofreguidão cada oportunidade de verter o verbo em coisa audiovisual. Até os depoimentos de poetas e intelectuais (brasileiros e espanhóis) sobre Cabral são entrecortados pela pulsão rítmica da música e das imagens.
Nos antípodas do ressecamento promovido por um Eduardo Coutinho em seus documentários, Abrantes faz largo uso de efeitos digitais, bravuras de edição e uma trilha musical intensa. Seu filme é uma construção assumida – e bem-sucedida. Tudo converge para a sensação de concretude que preside a poesia de Cabral. A música de cordas que ouvimos, assim como o flamenco, estão mais próximas da percussão que da melodia. Da mesma forma, os elementos visuais, tributários da videoarte, mostram pessoas, lugares e objetos em fuga permanente, imagens puras e duras sem conotações afetadamente poéticas. A belíssima seqüência das aspirinas é exemplar de uma busca de ícones concretos para cobrir grandes significados na vida e na obra do poeta.
A discussão central do documentário, deixada em aberto, é a influência que as cidades de Recife (a origem, a memória) e Sevilha (a paixão, o exílio) tiveram sobre a poesia de João Cabral. Depoimentos levemente contraditórios como o da filha Inês Cabral e do biógrafo José Castello ajudam a perceber a possível distância entre a condição real do homem e as fantasias que ele erigiu em torno de si. “A vida de um poeta não é feita só de verdades”, complementa o colega Ledo Ivo. De outra parte, pintores, poetas e intelectuais espanhóis dimensionam a importância da passagem do poeta brasileiro pela Espanha – o que não foi pouca coisa.
Uma profusão de filmetes domésticos, verdadeiras preciosidades, completa a riqueza de materiais de Recife/Sevilha. Importante como revelação e apetitoso como exercício de linguagem, o filme de Bebeto Abrantes entra para o rol dos excelentes perfis documentais recentemente produzidos no Brasil.
# RECIFE/SEVILHA: JOÃO CABRAL DE MELO NETO
Brasil, 2003
Direção e roteiro: BEBETO ABRANTES
Fotografia: BATMAN ZAVAREZE
Edição e música: MARCELO RODRIGUES
Edição extras: FERNANDA BASTOS
Produção executiva: BELISARIO FRANCA
Duração: 52 minutos + extras