Convidados


CONSTRUINDO PONTES

De: HELOÍSA PASSOS
22.04.2018
Por Marcia Vitari
Uma obra coerente com a necessidade de escuta e conciliação

De imediato somos impactados pelo som torrencial das cataratas que desaguam em Sete Quedas. Submergidas na construção de Itaipu, funcionam como leitmotiv da relação turbulenta que se desenrola entre pai e filha.

Por anos Heloísa Passos trabalhou como diretora de fotografia e se aventurou em curtas metragens. Tomou coragem e realiza agora seu primeiro longa. Construindo Pontes é uma referência à profissão do pai, um engenheiro civil que na época da ditadura fez diversas obras publicas no estado do Paraná, onde reside. O filme é também um esforço e tentativa de diálogo e entendimento de sua vida pessoal e da vida política do país. Apesar do desejo de se discutir o que seja arbitrariedade, há também a tentativa de conciliação latente por toda a obra. Mais óbvia por parte do pai - um homem mais maduro, que em nenhum momento sai de sua posição heráldica, sustentando suas convicções diametralmente opostas às da filha. E uma filha combatente, mezzo agressiva no seu tom de voz e radicalismo exacerbado. Quando ele argumenta termos vivido no país um momento de revolução, ela rebate como tendo sido uma ditadura. Ele impeachment, ela golpe. Gerações e pontos de vistas diferentes que se abrem diante das câmeras como se estivéssemos numa sessão de terapia de família. O reconhecimento da palavra em ato e a força do não dito.

Diferente de alguns filmes de diretoras mulheres que expõem sua relação com o pai - como Flavia Castro (Diário de uma Busca), com quem trabalhou como diretora de fotografia, e Maria Clara Escobar (Os Dias com Ele) que adotam um tom suave e amoroso no relato fílmico -, Heloísa tem a audácia de colocar o espectador na posição de testemunha e cria propositalmente na audiência o mesmo incômodo sentido por ela. Um mérito que deve ser reconhecido: fazer cada um sair da própria zona de conforto onde deslocamentos psíquicos e de fato são consolidados. Uma coisa pode-se afirmar: ninguém sai igual depois de ver tamanho embate. É preciso estômago para ultrapassar os minutos iniciais. Como os surfistas que em braçadas fortes e vigorosas conseguem passar da arrebentação, até atingir uma área de flutuação inebriante e, com paciência, conquistar o tubo compensador.

A montagem do filme sustenta uma narrativa da mesma natureza. De repente, somos jogados no meio de uma avalanche de imagem e som. Sem aviso prévio, somos surpreendidos na potência do estrondo das águas volumosas da usina hidrelétrica de Itaipu em pleno funcionamento, que na linguagem tupi-guarani significa "pedra na qual a água faz barulho", através da junção dos termos itá (pedra), i (agua) e pu (barulho). Há um deslocamento para o plano do sublime, algo além do belo.

Numa costura entre passado e presente - pontuados por imagens de super-8 familiares -, vale ressaltar na equipe o trabalho bem executado por Beto Ferraz, que valoriza a memória afetiva que há no som, coadjuvante na obra. Ela fala em "deserto d'água" para descrever a paisagem em que se transformou o que antes eram as exuberantes Sete Quedas que desaparecem quando Itaipu entra em funcionamento. Como no movimento das águas e suas marés, num exercício de aceitação e tolerância mútua - necessárias especialmente neste momento convulsionado pelo qual passa o mundo -, vemos uma obra coerente com a necessidade de escuta e conciliação. A mediação se dá por meio de uma câmera ligada, como um alter ego de duas pessoas que vieram ao mundo para deixar um legado. De forma franca e sem nenhum tipo de constrangimento ou amarras, mostrando que através do mundo sensível é possível encontrar um meio do caminho apaziguador.

Marcia Vitari é jornalista, mestre em comunicação e cultura e tem contos incluídos nas antologias do Clube da Leitura, volumes I e II

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Outros comentários
    4776
  • Sandra Felzen
    02.05.2018 às 16:48

    Excelente texto crítico de Marcia Vitari. Ela analisa com profundidade vários aspectos do filme. Suscita em mim o desejo de assisti-lo e com certeza vou usufruir mais de seus meandros após esta leitura.
  • 4777
  • Rose Esquenazi
    03.05.2018 às 05:03

    A crítica de Marcia Vitari é forte e poderosa como deve ser o filme de Heloísa Passos. Podemos reconhecer que o embate do pai e da filha mostra também a dualidade da nossa história, a visão dividida, tensa, dual das gerações. Marcia poderia ser chamada para ser co-roteirista desse filme: ela parece entender muito sobre os conflitos familiares e como as fissuras podem ser traduzidas na linguagem cinematográfica.
  • 4779
  • Antonio Herculano Lopes
    07.05.2018 às 11:19

    Bela resenha do que parece ser um filme poderoso. A conferir. Parabéns, Marcia. Mas gostaria de acreditar que existe um meio do caminho apaziguador!
  • 4781
  • Ana Canti
    19.05.2018 às 20:23

    Muito sensível a crítica de Marcia Vitari! Dá vontade de assistir ao filme de Heloísa Passos.