Primavera em Casablanca (Razzia, título original), do diretor franco-marroquino Nabil Ayouch, reúne em três tempos uma volta ao passado no presente. Contrapõe à Casablanca de hoje, o romantismo idealizado de um dos filmes hollywoodianos mais fascinantes de todos os tempos: Casablanca, 1942, de Michael Curtiz, o clássico norte-americano ambientado na cidade de Casablanca, onde o exilado americano Rick Blaine (Humphrey Bogart) reencontra sua paixão no passado, Ilsa (Ingrid Bergman), fugindo do nazismo pela rota dos fugitivos que passavam pela cidade.
O primeiro tempo do novo filme, situado em 1982, compõe a primeira parte, na qual o professor berbére, Abdallah (Amine Ennaji), dá aulas na pequena vila montanhosa Atlas. O registro do passado, por meio da proibição do professor continuar a ensinar no dialeto berbére falado por seus alunos infantis, em consequência da reforma educacional que impôs o árabe como língua oficial do Marrocos e a substituição da filosofia e da sociologia pela educação islâmica, atendendo aos desígnios muçulmanos, é, na segunda parte, o “isso’ do inconsciente que vai perpassar todos os conflitos problematizados, em 2015, já na moderna cidade de Casablanca.
No final da primeira parte, ao se recusar a lecionar nos termos impostos pelo inspetor do governo, o professor oprimido com a violência simbólica sofrida, desaparece da narrativa e passa a funcionar como uma ausência espectral.
No impulso de dispor do passado e incidir sobre o agora, o diretor Nabil Ayouch desenvolve na segunda parte uma abordagem, co-escrita com a atriz Maryam Touzani, que dá relevância à falta de liberdade do ensino, para que não seja esquecido o ponto de origem do que está sendo problematizado sobre a presente constelação política, afetiva, ideológica no Marrocos globalizado de hoje
Dessa forma, a abordagem do tempo passado no presente tem como objetivo explorar como a educação e a liberdade linguística e religiosa foram abortadas, perda que cria uma lacuna intransponível na nova geração metaforicamente aludida na resolução de abortar de Salima (Maryan Touzani) que, no papel de uma mulher transgressora, sofre com o conservadorismo atual existente também na relação com o marido machista; da desilusão do jovem que canta sonhando ser um novo Freddie Mercury, mas é rechaçado pelo pai; da adolescente de classe alta (Dounia Binebine) que se mutila impossibilitada de reencontrar seu lugar no mundo; do judeu enlutado com a morte de outros judeus que tenta suplantar o sofrimento psíquico a despeito dos conflitos étnico-religiosos.
Enquanto a primeira parte lembra o trauma da perda de uma Casablanca multi-linguística, a segunda parte, localizada inteiramente no presente, está estruturada em torno da perda de algo que não pode nunca ser reparado. A perda articulada com a ausência do professor de quem é mostrada apenas a cadeira desocupada, e a memória traumática de sua ex-amante, a viúva (Saadia Ladib), mãe de um de seus ex-alunos, que, determinada pelo que seu amor ainda lhe oferece, é marcada como uma figura de resistência, diretamente conectada ao passado mediado por lembranças e um forte investimento imaginativo e espiritual. Mas também é metafórica representada pela perda da autoridade paterna, pela ausência da masculinidade.
Levando a lógica do impacto traumático nos mecanismos psíquicos de bloqueio, agonia, sofrimento até as últimas consequências na Casablanca de hoje, quase ao final do filme, a frase síntese, “Casablanca não foi filmada no Marrocos” é dita pelo dono do bar do reencontro dos personagens onde se tocava no piano “As Time Goes By”, e que se tornou um ícone da cidade:
Dinara Gouveia Machado Guimarães é autora dos livros em Psicanálise, Cinema e Literatura: "Voz na Luz", Ed. Garamond; "Vazio Iluminado: o olhar dos olhares", Ed. Garamond; "Escuta do desejo", Ed. Cia de Freud.