Um escuro cubículo comporta dois homens. Acometido de grave doença, Heinz pouco fala. Georg, seu companheiro, entedia-se no trajeto. Ambos alemães, os homens fogem de uma Paris ocupada pelos nazistas. O trajeto até Marselha é longo. Em busca de um passatempo, Georg entrega-se a um manuscrito. Nesse momento, uma terceira voz toma conta de Em Trânsito.
Para a surpresa do espectador, as palavras faladas não correspondem às impressas. De um lado, imagens mostram as estrofes do poeta Weidel, cuja morte descobriu há pouco o protagonista. Do outro, a narração acompanha as personagens, como se ali houvesse um observador externo. Trata-se da primeira de muitas disjunções promovidas pelo cineasta Christian Petzold.
Georg, interpretado com comedimento por Franz Rogowski, iniciara uma formação técnica, interrompida pelo início do fascismo. Homem simples, ele guarda, aparentemente, pouca semelhança com Weidel, erudito poeta. Se, para o trabalhador manual, impera a vivência, para o intelectual, há que rememorá-la. Essa distinção, contudo, revela-se ilusória.
Em uma “tacada de mestre”, Petzold conjuga duas identidades no mesmo corpo. Com o objetivo de escapar da França nazista, Georg precisa se passar por Weidel. Como equivaler, porém, um técnico e um escritor? A solução, mais próxima do que se imagina, encontra-se na própria atividade do protagonista.
Antes de uma análise mais profunda, talvez seja frutífero recorrer a Walter Benjamin. Em texto de 1933 - e, portanto, prévio ao contexto do filme -, o ensaísta alemão aponta como resultado da Primeira Guerra a pobreza de experiências comunicáveis. No caso de Em Trânsito, noção semelhante radicaliza-se na figura de Melissa. Esposa do amigo Heinz, a imigrante africana compartilha com Georg a mudez. Para ela, impossibilidade física; para ele, indisposição: a ausência de diálogos parece confortável. Afastadas por uma certa incomunicabilidade, as personagens se aproximam de outro modo. Tal modo, como já mencionado, relaciona-se com o fazer do protagonista.
Nas salas de espera de hotéis e consulados, refugiados trocam palavras. Não só Georg, os burburinhos incomodam também o público. As experiências deixaram de vincular as pessoas, diria Benjamin. Um sentimento geral de vergonha as domina, completa o narrador. Há, no entanto, a reiterada exceção. Técnico de rádio e TV, o protagonista trabalha diretamente com o imaginário popular.
No quarto de Driss, filho de Melissa, Georg descobre um rádio quebrado. Ao consertá-lo, lembra-se de uma tradicional cantiga e entoa alguns versos. A sequência caminha, então, para um improvável desfecho: superando as barreiras fisiológicas, a música estabelece um diálogo entre dois “mudos”. Assim opera o cinema de Petzold.
“Experiência e pobreza” encerra-se com um novo e positivo conceito de barbárie. Assumida a pobreza de experiências, a língua se mobiliza para transformar a realidade, e não mais descrevê-la. Como Benjamin, para quem os sonhos compensam a tristeza e o desânimo do dia, Petzold reserva para seu protagonista outras possibilidades do “eu”.
Nessa jornada - processualidade bem traduzida pelo título Em Trânsito -, convergem o técnico Georg e o artista Weidel. A arte, enfim, é o que apaga a diferença entre os dois homens.
Luiz Baez é Mestrando em Comunicação e Bacharel em Cinema pela PUC-Rio. Organizou o seminário "Rostos de Bergman: vida e morte em um plano".