Vertigem, do latim vertigine: no dicionário, rapidamente se identifica o campo semântico da tontura. Vertigem, ou, em inglês, Vertigo: no cinema, equivale ao título original de Um Corpo que Cai (1958). Democracia em Vertigem, sugere Petra Costa: “como lidar com a vertigem de ser lançado num futuro que parece tão sombrio quanto nosso passado mais obscuro?”, pergunta-se a diretora e narradora. Respostas possíveis talvez se encontrem nessa mesma palavra, apresentada aqui em três diferentes contextos.
O primeiro deles corresponde também ao primeiro plano do longa-metragem. De dentro de um carro, a câmera trêmula enfrenta ofuscantes flashes fotojornalísticos. No campo sonoro, âncoras televisivos assustam-se com a rapidez da prisão do ex-presidente Lula. Uma certa vertigem, portanto, produzem a cintilante iluminação e o oscilante enquadramento. Vertiginosamente, em outras palavras, comportam-se aqueles fotógrafos, desesperados por um clique. Seus colegas de trabalho, por sua vez, carregam surpresa na voz. A entonação daqueles telejornalistas não passa, porém, de simulacro. As mesmas mídias, afinal, contribuíram para a ascensão do antipetismo a qualquer custo.
Chega-se, assim, ao segundo uso do termo vertigem. Enquanto imagens de arquivo mostram a posse de Dilma Rousseff, a voz de Petra Costa identifica um “precipício” entre a ex-presidente e seu vice, Michel Temer. “Precipício”: uma enormidade vertical, escolhida para representar a distância horizontal do plano. Por quê? Diante de tal abismo, sente-se vertigem. Sente-a especialmente alguém com acrofobia - medo de lugares altos -, como o protagonista de Vertigo. Paralisado pela fobia, o detetive Ferguson não percebera a trama de Gavin. Paralisada pelo entusiasmo, Petra tampouco percebera a reveladora tensão corporal de Temer. Muito menos a perceberam os milhões de eleitores. Mal podiam imaginar, anos depois, a queda de Dilma, derrubada como Madeleine. Mal podiam imaginar, em outros termos, a queda da democracia, substituída por um duplo, por uma imitação cujo poder de convencimento não se compara ao de Judy, femme fatale de Alfred Hitchock.
Se o paralelo com Um Corpo que Cai soa forçado, uma cena de Democracia em Vertigem corrobora semelhante leitura. Nela, a narração é assertiva: “A Lava Jato logo se converte em um thriller policial brasileiro”. Por vez ou outra, então, a trilha musical ganha contornos hitchcockianos. Reforça, desse modo, o tom investigativo do filme, a preocupação em escrever uma história paralela à oficial dos autos jurídicos. A cineasta assume, desde o início, um ponto de vista, isto é, o de uma mulher nascida na ditadura e filha de militantes de esquerda. Nesse sentido, Petra Costa jamais nega sua “parcialidade” - ideal reivindicado, no cinema documental, apenas por leigos ou desonestos. Escancara, de outra forma, a indevida parcialidade de um sistema judiciário e a inconfessada parcialidade das mídias.
“Como lidar com a vertigem de ser lançado num futuro que parece tão sombrio quanto nosso passado mais obscuro?”, retoma-se a pergunta. A resposta, delineada ao longo do texto, agora transparece. Contra uma narrativa midiática que se pretende totalizante, urge superar o medo - tal como Ferguson venceu a acrofobia - e produzir discursos. O cinema de Petra Costa é o cinema do dissenso.
Luiz Baez é Mestrando em Comunicação e Bacharel em Cinema pela PUC-Rio. Integra a Equipe Editorial da Revista Alceu.