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QUANDO ALMODÓVAR ENCONTRA LACAN

17.07.2019
Por Carla Rodrigues
Ou uma carta sempre chega ao seu destino

São muitas as delicadezas, ternuras e belezas de "Dor e Glória", o mais recente filme de Pedro Almodóvar, protagonizado por Antonio Banderas numa atuação minuciosa. Repleto de detalhes e referências internas que se desdobram ao longo do filme, estão lá os elementos da obra almodovariana - a homossexualidade, a identificação com a mãe, a crítica ao saber-poder da medicina, a cultura espanhola, a relação entre o moderno e o arcaico, a morte, o luto e o passado - presentes com mais ou menos intensidade em todos os seus filmes. Há em "Dor e Glória", no entanto, uma ênfase no próprio fazer cinematográfico, que também se desdobra sobre si mesmo quando, ao final, abre seu enquadramento diante do espectador, promovendo uma relação ambígua entre imagens do passado e imagens de cinema.

Em vez das discussões sobre ser ou não um filme autobiográfico, ou mesmo da possibilidade de responder a essa discussão com um "tudo é autobiográfico" que encerraria o debate tanto estéril quanto ultrapassado, o que me parece que vale a pena pensar com o percurso do personagem de Salvador - um significante forte para batizar um protagonista - é a como o cinema pode nos fazer experimentar a temporalidade do inconsciente, essa que não distingue passado-presente-futuro. Não por acaso há referências explícitas a Lacan, com uma frase que é quase uma citação: "Não importa quanto tempo levou, o importante é que a carta chegou ao seu destino", diz Salvador, mas também poderia ter dito Lacan quando escreveu sobre "A carta roubada", o conto de Edgar A. Poe.

A tão em voga clínica da letra, do chamado "último Lacan", também está lá, quando Salvador ainda menino ensina um colega a escrever e diz: "As letras são como desenhos que formam palavras". É verdade que em ambos os casos eu poderia convocar as interpelações da filosofia de Jacques Derrida ao Jacques que o antecedeu, mas não é o lugar para retomar essa velha querela entre psicanálise e filosofia.

Salvador está doente, mas o que ele tem é um problema na coluna vertebral. Ou seja, na sua sustentação, eu poderia mesmo dizer que lhe doem os nós - as vértebras - que deveriam dar suporte ao seu esqueleto. O real da dor se mistura, no entanto, com uma impotência excessiva - porque não dizer, imaginária - em relação aos efeitos dessas hérnias, impossíveis de serem simbolizadas por um diretor e roteirista de cinema que parou de escrever, de filmar e de criar.

Muitos lutos se acumulam sobre o corpo de Salvador, assim como sobre o corpo de cada um de nós. Somos um sistema de cicatrizes, como tão bem definiu Adorno, e algumas delas doem mais do que as outras. Na minha experiência, a dor do luto pesou sobre a minha estrutura muscular e esquelética de maneira tão intensa que acredito ter antecipado como se sente uma senhora de 90 anos. A interpretação de António Banderas contribui para o espectador ter a impressão de que Salvador está às voltas com um peso maior do tempo sobre o corpo do que seus prováveis quase 60 anos. É de novo o cinema oferecendo a experiência de uma velhice que no tempo cronológico ainda virá, mas que já se apresenta em cada movimento de levantar da cama ou entrar no táxi.

Há o uso das drogas, suas consequências inesperadas - Salvador quer aplacar a dor física, e acaba por encontrar a glória das memórias do passado, formando assim uma possibilidade de entendimento do título do filme, "Dor e glória"-, sua história autobiográfica dentro daquilo que se apresenta como sua ficção. Mas há muito mais do que isso: a infância e identificação com a mãe, a descoberta da sexualidade, um amor de juventude e suas consequências trágicas. Sobretudo, há no presente a solidão de quem "mora com seus quadros", como ele diz quando lhe pedem que empreste algumas das obras para uma exposição em Madri.

Assim como a literatura, o cinema conhece inúmeras estruturas narrativas que se sobrepõem umas dentro das outras, como as matrioskas, as bonecas russas que performatizam numa brincadeira infantil o quadro dentro do quadro dentro do quadro… Por isso, quando Salvador diz que “mora com seus quadros” (eu também moro com os meus, e esse foi só mais um ponto de identificação com o personagem), pode-se entender que ali há tanto a referência às obras de arte do apartamento “que parece um museu” quanto a implícita relação entre cinema e enquadramento.

O cinema de Almodóvar brinca com a estrutura atemporal do cinema até o fim do filme, de tal modo a provocar uma experiência de dúvida sobre o que se acabou de assistir, fazendo com que o embaralhamento entre passado, presente e futuro permaneça em quem sai do cinema. É, de novo, uma aposta lacaniana: a carta de Almodóvar chega ao seu destino, não importa quanto tempo o filme se demore habitando a memória do espectador.



CARLA RODRIGUES é filósofa, professora da UFRJ e pesquisadora da Faperj

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Outros comentários
    4914
  • Maria
    17.07.2019 às 08:24

    O filme é maravilhoso, mais uma obra de arte de Almodóvar. E sua crítica reflete toda a delicadeza e potência do filme. Parabéns!
  • 4915
  • Rosely
    18.07.2019 às 07:05

    Excelente texto! Repleto de experiências emocionais! Parabéns!
  • 4916
  • Eliana Costabile
    21.07.2019 às 06:55

    No meu olhar simplório, abriu-se muitos quadros de entendimento. Ouso expor uma cena interessante :Qdo Salvador já na caverna, Olha pra cima e a claridade, a mim,representou um quadro de Van Gogh. Essa leitura despertou a vontade de rever o filme. PARABÉNS! !!
  • 4917
  • Adriana Pavlova
    23.07.2019 às 10:35

    Lindo e tocante, Carla. Obrigada. Admiro muito sua delicadeza.
  • 4919
  • Heve Barros
    31.07.2019 às 08:59

    Agradeço à Carla pelas ligações feitas em proveito da psicananálise e, em especial, de Lacan. Sua escrita primorosa evoca a letra e deixa que se aviste as marcas por onde se desenha o semblante, um discurso de amor que se diz literalmente ao não se engasgar. Salvador vive entregue à morbidez melancólica em que a dor é sintoma, o gozo enamorado da morte que encontra na afanise do sujeito drogado o a mais. O ponto de virada aparece no ressurgimento do amado. O personagem se salva da culpa por ter cedido de seu desejo podendo então se reescreve na forma de narrativa, de arte na borda onde as pegadas, como marcas na areia, conduzem ao destinatário, desde o primeiro desejo, o primeiro amor.