São muitas as delicadezas, ternuras e belezas de "Dor e Glória", o mais recente filme de Pedro Almodóvar, protagonizado por Antonio Banderas numa atuação minuciosa. Repleto de detalhes e referências internas que se desdobram ao longo do filme, estão lá os elementos da obra almodovariana - a homossexualidade, a identificação com a mãe, a crítica ao saber-poder da medicina, a cultura espanhola, a relação entre o moderno e o arcaico, a morte, o luto e o passado - presentes com mais ou menos intensidade em todos os seus filmes. Há em "Dor e Glória", no entanto, uma ênfase no próprio fazer cinematográfico, que também se desdobra sobre si mesmo quando, ao final, abre seu enquadramento diante do espectador, promovendo uma relação ambígua entre imagens do passado e imagens de cinema.
Em vez das discussões sobre ser ou não um filme autobiográfico, ou mesmo da possibilidade de responder a essa discussão com um "tudo é autobiográfico" que encerraria o debate tanto estéril quanto ultrapassado, o que me parece que vale a pena pensar com o percurso do personagem de Salvador - um significante forte para batizar um protagonista - é a como o cinema pode nos fazer experimentar a temporalidade do inconsciente, essa que não distingue passado-presente-futuro. Não por acaso há referências explícitas a Lacan, com uma frase que é quase uma citação: "Não importa quanto tempo levou, o importante é que a carta chegou ao seu destino", diz Salvador, mas também poderia ter dito Lacan quando escreveu sobre "A carta roubada", o conto de Edgar A. Poe.
A tão em voga clínica da letra, do chamado "último Lacan", também está lá, quando Salvador ainda menino ensina um colega a escrever e diz: "As letras são como desenhos que formam palavras". É verdade que em ambos os casos eu poderia convocar as interpelações da filosofia de Jacques Derrida ao Jacques que o antecedeu, mas não é o lugar para retomar essa velha querela entre psicanálise e filosofia.
Salvador está doente, mas o que ele tem é um problema na coluna vertebral. Ou seja, na sua sustentação, eu poderia mesmo dizer que lhe doem os nós - as vértebras - que deveriam dar suporte ao seu esqueleto. O real da dor se mistura, no entanto, com uma impotência excessiva - porque não dizer, imaginária - em relação aos efeitos dessas hérnias, impossíveis de serem simbolizadas por um diretor e roteirista de cinema que parou de escrever, de filmar e de criar.
Muitos lutos se acumulam sobre o corpo de Salvador, assim como sobre o corpo de cada um de nós. Somos um sistema de cicatrizes, como tão bem definiu Adorno, e algumas delas doem mais do que as outras. Na minha experiência, a dor do luto pesou sobre a minha estrutura muscular e esquelética de maneira tão intensa que acredito ter antecipado como se sente uma senhora de 90 anos. A interpretação de António Banderas contribui para o espectador ter a impressão de que Salvador está às voltas com um peso maior do tempo sobre o corpo do que seus prováveis quase 60 anos. É de novo o cinema oferecendo a experiência de uma velhice que no tempo cronológico ainda virá, mas que já se apresenta em cada movimento de levantar da cama ou entrar no táxi.
Há o uso das drogas, suas consequências inesperadas - Salvador quer aplacar a dor física, e acaba por encontrar a glória das memórias do passado, formando assim uma possibilidade de entendimento do título do filme, "Dor e glória"-, sua história autobiográfica dentro daquilo que se apresenta como sua ficção. Mas há muito mais do que isso: a infância e identificação com a mãe, a descoberta da sexualidade, um amor de juventude e suas consequências trágicas. Sobretudo, há no presente a solidão de quem "mora com seus quadros", como ele diz quando lhe pedem que empreste algumas das obras para uma exposição em Madri.
Assim como a literatura, o cinema conhece inúmeras estruturas narrativas que se sobrepõem umas dentro das outras, como as matrioskas, as bonecas russas que performatizam numa brincadeira infantil o quadro dentro do quadro dentro do quadro… Por isso, quando Salvador diz que “mora com seus quadros” (eu também moro com os meus, e esse foi só mais um ponto de identificação com o personagem), pode-se entender que ali há tanto a referência às obras de arte do apartamento “que parece um museu” quanto a implícita relação entre cinema e enquadramento.
O cinema de Almodóvar brinca com a estrutura atemporal do cinema até o fim do filme, de tal modo a provocar uma experiência de dúvida sobre o que se acabou de assistir, fazendo com que o embaralhamento entre passado, presente e futuro permaneça em quem sai do cinema. É, de novo, uma aposta lacaniana: a carta de Almodóvar chega ao seu destino, não importa quanto tempo o filme se demore habitando a memória do espectador.
CARLA RODRIGUES é filósofa, professora da UFRJ e pesquisadora da Faperj