Convidados


O REFORMATÓRIO NICKEL

De: RaMell Ross
Com: Ethan Herisse, Brandon Wilson, Aunjanue Ellis-Taylor
28.02.2025
Por Thiago Vicente
Um olhar subjetivo sobre a violência racial nos Estados Unidos e as memórias de um passado que insiste em voltar

O reformatório Nickel, filme indicado ao principal prêmio do Oscar e também a Melhor Roteiro Adaptado, dirigido por RaMell Ross, transpõe para as telas o romance de Colson Whitehead inspirado em eventos reais. Numa tentativa de denunciar os horrores do racismo nos Estados Unidos, a narrativa resgata o passado esquecido enquanto dialoga com as consequências desse esquecimento no presente.

A história gira em torno da vida de Elwood (
Ethan Herisse), um jovem negro que vive na Flórida com sua avó, Hattie (Aunjanue Ellis-Taylor). Ao finalizar o ensino médio, ele sonha em entrar para a faculdade, mas, após ser envolvido de maneira injusta em um roubo de carro, é enviado para o reformatório Nickel, uma instituição para jovens infratores. Nela, Elwood conhece Turner (Brandon Wilson), o outro grande personagem da história, e se depara com uma separação racial dos jovens.

De início, há uma estranheza ao se deparar com a câmera subjetiva na perspectiva dos personagens. Afinal, poucos são os filmes que fazem essa tentativa, e mais raros ainda são os que funcionam bem dessa forma. Mesmo assim, a escolha se justifica e se mostra uma decisão estilística cujo objetivo é aproximar a audiência da subjetividade dos personagens — ora de Elwood, ora de Turner — e, principalmente, sensibilizá-la, pensando em um contexto estadunidense marcado por tensões raciais e pelo avanço da extrema direita. Em determinado momento, há uma fala que diz o seguinte: “Se fosse o seu filho, o que você faria?”, o que deixa clara a tentativa de conquistar um público adepto a ideais avessos aos apresentados. Se, por um lado, a aproximação forçada pela câmera obriga o espectador a lidar com a situação de maneira direta, por outro, em alguns momentos, o filme tropeça no texto, que deixa a desejar, tornando-se literal e manifesto demais.

Se o texto está aquém, é na montagem que a força da obra se revela, rompendo com uma linearidade clássica, misturando tempos históricos e integrando momentos-chave da humanidade, desde a corrida espacial até o assassinato de Martin Luther King. Ficam claros os paralelos traçados pelas imagens, que ora apresentam o lançamento da sonda espacial Apollo 8 pelos Estados Unidos e o que aquilo representa, ora retornam para o internato onde os jovens se situam, evidenciando a contradição de um país que se propõe a explorar e colonizar o espaço enquanto há uma política de segregação racial em curso. É por meio da montagem, também, que o filme mostra, de maneira mais impactante do que no texto, como aqueles jovens de fato se sentem. A constante presença de crocodilos, animal muito comum na Flórida, representa justamente a sensação de estarem em perigo, cercados por predadores.

Em outro exemplo, a cena que apresenta um trecho do filme
Os acorrentados (1958), cujos personagens se encontram em situações semelhantes às dos protagonistas, cria um diálogo entre o reconhecimento simbólico da representatividade negra do ator Sidney Poitier — primeiro homem negro a vencer o Oscar — e a brutalidade institucionalizada contra corpos negros, seja na ficção, seja na realidade. É na forma de retratar essa brutalidade que reside um dos maiores acertos do filme. Ao evitar a exposição gráfica do sofrimento e as imagens comuns para traçar paralelos com a escravidão — como costas marcadas por chibatadas ou rostos ensanguentados, já amplamente exploradas no cinema —, a narrativa opta por uma abordagem atmosférica e onírica, utilizando som, iluminação e enquadramentos para comunicar a violência de maneira subjetiva. Essa estratégia lembra, em certos momentos, o terror psicológico de Jordan Peele, ao construir a tensão sem precisar exibir o sofrimento de forma explícita.

Um exemplo é a cena em que um dos personagens está sendo torturado pelos agentes da instituição, e a escolha feita é a de retratar essa tortura apenas pelo som, enquanto se mostram fotos de outros internos. Nesse gesto, a tortura deixa de ser individual e passa a ser coletiva. Outro ponto importante é a investigação geográfica do espaço: se os protagonistas são os jovens, outra atuação que merece destaque não é necessariamente a de uma pessoa, e sim a do próprio reformatório, que, em algumas cenas, como na citada anteriormente, parece ganhar vida e representar todo o sofrimento que ali havia.

A montagem reforça ainda mais o teor crítico ao intercalar imagens documentais com a ficção e estabelecer conexões entre eventos do passado e do presente. O filme passa não só a contar a história de Elwood e Turner, mas também faz um retrato dos Estados Unidos, seja o da década de 1960, seja o de hoje. Se, por um lado, é uma decisão válida e ousada, por outro, os personagens principais acabam deixados um pouco de lado em prol dessa grande narrativa. De qualquer forma,
O reformatório Nickel é um dos bons filmes desta safra do Oscar, e é de se pensar por que, em mais um ano, o único dos indicados a Melhor Filme a não chegar às telas brasileiras seja um filme estrelado por negros. Assim como no ano passado, quando Ficção americana só foi distribuído por streaming, Nickel Boys repete a dose — e no mesmo streaming, o Prime Video.



* Thiago Vicente é estudante da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO/UFRJ).


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