A autora é formada em Psicologia Clínica e Mestre em Artes Visuais, com ênfase em Cinema.
O filme Batman – o cavaleiro das trevas foi produzido nos EUA, em 2007, com roteiro e direção de Christopher Nolan. É a continuação de Batman Begins (2005), do mesmo diretor e está centrado na relação entre Bruce Wayne/Batman e seu inimigo mortal, o Coringa. Entre os dois, surge a figura de Harvey Dent, promotor distrital que utiliza a sua imagem a serviço da justiça, usando todos os recursos que possui para colocar ordem na cidade. E graças ao seu empenho contra o crime, ele se transforma em celebridade. Depois, ele é o vilão "Duas Caras".
Bruce Wayne/Batman é um jovem milionário, introspectivo e angustiado pelo seu trauma de infância, por ter presenciado a morte de seus pais, assassinados por um ladrão. Com a ajuda do comissário Gordon e do promotor, Bruce luta para combater o crime organizado que ainda continua destruindo Gotham City. O comissário Gordon é o único tira honesto da cidade e o principal aliado de Batman na polícia.
Alfred Pennyworth, o fiel mordomo e assistente mais próximo, serve à família Wayne há muitos anos. Depois da morte dos pais de Bruce ele criou o menino como se fosse seu próprio filho. Lucius Fox era o braço direito do pai de Bruce nas empresas Wayne, mas é relegado a funções menores, depois da morte do amigo. Com a volta de Bruce, ele fabrica o batmóvel e a roupa que o homem-morcego utiliza na pele de Batman. O executivo é o responsável pelo setor de protótipos das empresas e especialista em armas e tem pleno conhecimento da vida dupla de seu chefe.
Rachel Dawes é a melhor amiga de Bruce e foi sua paixão de infância. Atualmente, namora o promotor Harvey Dent. O Dr. Jonathan Crane é um psiquiatra do Asilo Arkham que desenvolve substâncias que causam pavor nas pessoas e também é aliado dos bandidos. Os doentes mentais que ele deveria cuidar são transformados em seus “soldados”.
Outro vilão é o alucinado Coringa, que só quer instalar o caos, subvertendo a ordem na cidade. Ele reúne um exército de bandidos mascarados para provocar uma onda de violência e para combater Batman. Sua lógica (se é que ele possui alguma) é que o homem-morcego deve ser eliminado, mas ele descobre que o seu inimigo dá sentido à sua existência. Com suas roupas extravagantes, gargalhada sinistra, rosto deformado e muito sadismo, ele compõe este personagem perturbador.
Em O Cavaleiro das Trevas, este personagem é um misto de masoquismo e humor negro que ganha uma nova dimensão a partir da sua relação com Batman, que é de despeito e escárnio. Ele diz: “Você me completa”. Esta frase do Coringa dirigindo-se à Batman, nos revela a dualidade do palhaço do crime, que reconhece as ações nobres do seu inimigo, entrando em contradição.
Heath Ledger, falecido em janeiro de 2008, baseou a construção de seu personagem em Sid Vicious/Malcolm McDowell do filme Laranja Mecânica, de Stanley Kubrick. O ator revela uma excelente performance e nos dá a noção da maldade e loucura de seu personagem, considerando que não distingue a realidade da insanidade, pois queima até dinheiro. O diretor diz que não reinventou o personagem do Coringa, apenas foi buscar suas origens nos anos 1940.
Testemunha do assassinato de seus pais, quando criança, o milionário Bruce Wayne/Batman, sofreu um profundo trauma (que em grego significa ferida) psíquico que moldou sua personalidade. As perdas familiares são consideradas fontes geradoras de traumas psicológicos, mas ele encontra a própria cura, quando parte numa jornada de sete anos para entender a mente dos seus inimigos e posteriormente, derrotá-los. E nesta busca, ele acaba encontrando a si mesmo. Ele também resolve enfrentar sua fobia quando se coloca junto aos morcegos na batcaverna. Depois, Bruce utiliza o símbolo deste animal, como um equivalente símbólico, que transfere para a fantasia de Batman.
Bruce Wayne reveste-se de disfarces como o de um playboy (que representando o social, o ego) e da roupa de Batman (o morcego cujo animal representava sua fobia, o lado negro de seu inconsciente), para inibir a descoberta de sua verdadeira identidade. O batmóvel e o Batpod, são complementos que também fazem parte de seus disfarces. Ele utiliza parte de sua fortuna para cobrir os gastos com os seus equipamentos.
O trauma psíquico foi descoberto pela primeira vez por Sigmund Freud, como o afluxo de excitações excessivas em relação à capacidade do indivíduo de dominá-las e elaborá-las. Atualmente se considera que traumas psicológicos podem afetar a qualidade de vida das pessoas com grande impacto, caracterizando-se no transtorno de stress pós-traumático (TEPT) e se manifestando por recordações aflitivas, pensamentos indesejáveis recorrentes, estado de alerta, ansiedade, insônia, entre outros sintomas.
Este filme nos revela um Batman que não fica só escalando paredes, raso, dotado de super-poderes. Com sua máscara negra ele invade a noite em Gotham City para combater o crime.
Mas, ele sente-se culpado e com raiva e deseja agredir o inimigo. Os impulsos irracionais querem governar a sua mente e determinam os seus pensamentos, os seus sonhos e as suas ações, sendo capazes de trazer à luz os seus instintos agressivos e as necessidades que estão profundamente enraizadas dentro dele. As necessidades podem vir disfarçadas, impossibilitando o seu reconhecimento, mas governam as suas ações.
Para reconhecê-las será necessário que Bruce deixe as portas abertas do seu consciente e inconsciente para receber o material psíquico na sua mente e elaborá-lo, eliminando assim, o desgaste e o sofrimento provocados pela sua neurose. E para ele obter este processo psíquico com sucesso, paga-se um alto preço. Bruce ao presenciar a morte dos seus pais, quando saíam do teatro após o término de um espetáculo, não pode combater o assaltante que levou as jóias de sua mãe. O pai e a mãe foram baleados vindo a falecer. E neste momento, o menino internalizou a culpa por não ter salvo os pais, vinculando-a aos seus sentimentos e criando em si o caráter neurótico.
Segundo Freud, o caráter neurótico representa a incapacidade de adaptação às situações e gera a angústia no homem. A civilização nega ao indivíduo uma completa gratificação instintiva, mas essa negativa era necessária ao progresso da civilização e formadora da cultura. Em sua obra “O Mal-Estar na Civilização”, de 1929, demonstrou a existência de um conflito entre o homem e aquilo que seu meio exige dele, em contraposição a um universo dos impulsos que regem a vida do indivíduo.
Bruce/Batman desenvolveu alguns sintomas neuróticos que interferem na sua vida. Ele trava uma luta incessante entre o seu consciente (ego) e o seu inconsciente (seus instintos/impulsos), gerados pelo seu sentimento de culpa. Freud afirma que o sentimento de culpa conflita com os mecanismos de representação dos desejos individuais do homem, favorecendo nele a vivência constante deste sentimento. A substituição do poder individual pelo poder de uma comunidade é a saída encontrada, sendo o passo decisivo da civilização. Sua essência reside no fato de os membros da comunidade garantirem que uma lei, uma vez criada não pode ser violada em favor de um único indivíduo.
Batman em Gotham City simboliza a lei, a justiça e a ordem, tendo que sacrificar seus instintos de vingança e interesses particulares em prol do bem-estar da cidade. Ao renunciar aos seus instintos e desejos, que lhe são atribuídos naturalmente, então só lhe resta a sublimação destes desejos. A sublimação do instinto constitui um aspecto particularmente evidente do desenvolvimento cultural, tornando possível as atividades ideológicas, como no caso de Bruce. Ele desempenha de um papel importante na vida da cidade, ao proteger seus habitantes contra os bandidos. Desta forma, ele sublima seus impulsos agressivos.
Segundo a teoria freudiana a liberdade do indivíduo não constitui um dom da civilização, mas sim, é o preço que se paga para o homem poder viver coletivamente e culturalmente. A civilização impõe sacrifícios hercúleos ao homem, não apenas relacionada à sua sexualidade e suas restrições, mas também à sua agressividade e pode-se deduzir como é difícil ser feliz na nossa civilização ou mesmo em Gotham City.
BRUCE/BATMAN E O MITO DE PERSEU - O SENTIDO ESTÁ EM SERVIR
Bruce Wayne quando veste a roupa do homem-morcego, ele muda também de personalidade e de atitude. Comporta-se como um herói, maneja armas, torna-se valente, violento e vingativo, impulsionado pelo seu ódio ao crime. Neste sentido, poderíamos dizer que ele deixa literalmente de ser Bruce Wayne, relativamente independente da vestimenta que usa e torna-se um herói.
Um herói é definido como valente, justiceiro, prestativo, inteligente e enigmático, cujas características são semelhantes da personalidade de Bruce/Batman e que também encontrei no mítico Perseu.
Vou relatar aqui a lenda de Perseu e a Medusa, baseada nas versões dos autores: Roberto Carvalho de Magalhães e de Menelau Stephanides. Posteriormente, ou estabelecer a conexão entre os dois personagens e analisar o que ambos tem em comum.
Acrísio, rei de Argos, tinha ido a Delfos para consultar o famoso oráculo de Apolo, que lhe predisse a profecia segundo a qual, seria possível a vinda de um menino ao mundo e que teria como conseqüência o assassinato do seu pai ou do avô.
Como o rei de Argos tinha somente uma filha e para fugir à tal profecia, Acrísio encerra a sua filha Dânae, num aposento subterrâneo de bronze, construído sob o pátio do seu palácio, a fim de evitar que ela pudesse engravidar e ter um filho, o qual iria matá-lo mais tarde.
Mas, isso não bastou para impedir que Zeus, arrebatado pela beleza da jovem, penetre na câmara, na forma de uma chuva de ouro e a fecunde.
Com a cumplicidade de sua ama, Dânae dá à luz a um menino, que é chamado de Perseu e o mantém escondido do avô. Acrísio, contudo, descobre o ocorrido e, não querendo acreditar na versão da filha, que afirmava ter sido seduzida por Zeus, encerra-a com o menino numa arca e abandona-os no mar, para livrar-se do neto e do risco de ser morto por ele.
A arca vai dar na ilha de Sérifo, onde os dois náufragos são recolhidos pelo pescador Díctis, irmão de Polidectes, o tirano local. Díctis hospeda Dânae em sua casa e cria o menino. Enquanto isso, ela havia suscitado, à própria revelia, o desejo de Polidectes, que não via a hora de possuí-la.
Mas, Perseu que se tornara um jovem muito belo e forte, mantinha a guarda cerrada em torno da mãe. Polidectes então, inventa um estratagema para distrair Perseu e convida-o, junto com outros amigos, para um jantar e pergunta a eles o que pretendem lhe oferecer como presente de seu casamento com Hipodâmia. Todos respondem que o presente adequado a um rei era um cavalo.
Perseu, criado por um pescador, não podia fazer a mesma oferta e diz que, se Polidectes assim o desejasse, iria trazer-lhe a cabeça da Medusa, uma das górgonas, que transforma em pedra, quem as contempla. O tirano aceita a oferta de Perseu, que parte imediatamente, em busca do monstro. Mas, ele era filho de Zeus que nunca iria deixar que seu filho morresse. Assim, ordenou aos deuses Atena e Hermes para auxiliá-lo em missão.
Hermes presenteou Perseu com única espada que poderia cortar de uma só vez a cabeça da terrível Medusa. Enquanto Atena, deu a ele um escudo tão reluzente que podia servir de espelho. Depois, o herói recebe também as sandálias aladas das ninfas, com as quais ele poderia voar e o capacete de Hades (deus dos mortos), que o tornaria invisível; também ganhou o saco mágico para colocar dentro a cabeça do monstro. Esta, mesmo depois de decepada, ainda tem o poder de transformar em pedra quem olhar para ela.
Perseu logo que apanhou os apetrechos, partiu. Logo depois, chegou à ilha das górgonas e se lança sobre a Medusa, que dormia, decapitando-a. Do pescoço da Medusa saem os dois seres gerados pela união dela com Poseidon, o cavalo alado Pégaso e Crisaor, o homem da espada de ouro.
Ao retornar para casa, Perseu passou pela Etiópia, onde reinava Cefeu e descobriu que Andrômeda, a sua filha, havia sido exposta como presa de um monstro marinho. De fato, Cassiopéia, a esposa de Cefeu, ousara desafiar as Nereidas (deusas do mar) a uma competição de beleza, vangloriando-se de ser a mais bela de todas. As Nereidas sentiram-se ofendidas e foram reclamar a Poseidon que enfureceu-se e mandou uma inundação para devastar todo o território e enviou também o monstro marinho que nadava ao redor da moça, à fim de devorá-la.
Perseu logo que avistou Andrômeda acorrentada numa rocha, se aproxima da moça e ouve a sua triste história: “Meu nome é Andrômeda e sou filha de Cefeu, rei deste país. Fui amarrada à rocha, pobre de mim, porque preciso pagar por um delito que não cometi! Minha mãe, a rainha Cassiopéia, cometeu um erro terrível, quis medir em beleza com as belíssimas Nereidas, filhas de Nereu, o adivinho do mar. E não foi só isso, pois no final ela brigou com elas, insistindo que era a mais bela de todas”.
Perseu ficou imediatamente comovido e já estava apaixonado pela linda moça e queria muito salvá-la para fazer dela sua mulher. Então, ele matou o terrível monstro do mar.
Depois, o herói após assegurar-se de que a fera estava mesmo morta, soltou as correntes que prendiam Andrômeda às rochas, tomou-a cuidadosamente nos braços e foi deixá-la sobre terra firme, junto a seus pais, que a abraçaram e choraram de emoção.
No dia seguinte, preparam-se as núpcias no grande salão do palácio e todos reuniram-se para comemorar o casamento de Perseu e Andrômeda. Mas, a moça estava prometida ao seu tio Fineu, que surgiu de repente para destruir festa. Perseu usou a cabeça da Medusa contra os homens de Fineu que iam caindo mortos pelo chão, mas ele trazia consigo um exército inteiro e a luta era ainda muito desigual, pois caíram também os companheiros de Perseu.
Por último restou o próprio Fineu, que, ao ver o mal que se abatera sobre seus companheiros, caiu apavorado aos pés de Perseu e implorou que tivesse compaixão. O herói, no entanto, mostrou-lhe na hora a cabeça da górgona e o transformou em pedra. Assim, Fineu ficou petrificado na posição mais humilhante, a do guerreiro que suplica que lhe poupem a vida.
Perseu desposou Andrômeda, mas não quis prolongar sua permanência no palácio de Cefeu, pois precisava voltar para casa e partiu com a esposa. Quando chegaram em Séfiros, Perseu foi primeiro à procura de sua mãe e soube que Polidectes a mantinha prisioneira. Viu-o em um terraço ao lado do palácio, a beber, comer e farrear com os amigos. Mal surgiu Perseu, todos ficaram embasbacados. E para se vingar do tirano, o herói usou a cabeça da Medusa transformando todos em pedra.
Depois de libertar a sua mãe, fez de Díctis rei da ilha e em seguida, juntamente com Dânae e Andrômeda, voltou para Argos. Assim que chegou, agradeceu a deusa Atena, que tanto o havia ajudado e ofereceu a ela a cabeça da Medusa. A deusa aceitou e pôs a oferenda em sua égide (couraça-escudo feita por Zeus com a pele da cabra Aix).Depois, o herói tomou o rumo das ninfas e devolveu as sandálias aladas, o capacete de Hades e a sacola mágica.
Perseu queria rever o avô, Acrísio, o qual, tendo sabido de sua iminente chegada, refugiou-se em outro país. Lá ocorre um evento do qual Perseu participa e arremessa o disco, golpeando involuntariamente um dos pés do avô, que está camuflado em meio ao público, provocando a morte dele. E assim se realiza o oráculo de Delfos.
Desconsolado pelo acontecido, Perseu não ousa reclamar o reino, que era seu de direito e troca-o pelo de Tirinto, do qual era rei seu primo Megapentes. O herói construiu uma bela cidade chamada Micenas, onde viveu uma longa vida com sua família.
O HOMEM DUPLO: A REALIDADE E A FANTASIA DE BATMAN
O poeta francês Gérard de Nerval (1808-1855) disse que: “O homem é duplo”, pois ele via a identidade própria como uma dualidade, um desdobramento, apto às vezes para indefinidas ressonâncias e disfarces, segundo J. P. Richard em Poésie et profondeur. (Cirlot, 2005)
Para Nerval, o homem possui uma identidade com possíveis desdobramentos e ressonâncias, que desembocam numa dualidade. E a dualidade se observa também em suas obras e para alguns estudiosos o seu desdobramento ou duplicação, se referem a uma consciência da alteridade em suas narrativas de viagem.
Nerval, considerado por muitos como o precursor do Surrealismo era um sujeito atormentado com as suas crises de esquizofrenia, o que não o impediu de traduzir “Fausto”, a obra de Goethe.
Bruce/Batman é um ser dual na medida em que vive um conflito moral e em luta consigo mesmo considerando o homem (Bruce) e a sua fantasia (o homem-morcego), vivendo sob disfarces para não ser identificado, ocultando uma ambivalência essencial em sua vida, em relação à sua verdadeira identidade. A sua duplicação é também como uma imagem no espelho, um símbolo da consciência, um eco da realidade, que é Bruce Wayne. Enquanto que Batman é uma fantasia, é o outro lado do mesmo espelho. O seu objetivo é matar os bandidos que destroem Gotham como uma forma simbólica de matar o ladrão que assassinou seus pais.
Mas agora, ele se questiona até que ponto deve ir para não se assemelhar ao inimigo. E para resolver o seu conflito moral ele precisa descobrir até que ponto o seu desejo de justiça é o seu desejo de vingança, pois uma linha tênue separa ambos desejos.
Segundo Nolan, o que Batman faz é extremista, até mesmo dentro das forças da Lei existe uma dúvida se ele é um fora-da-lei ou não. A meu ver, as atitudes aparentemente negativas de Bruce/Batman, que o diretor considera “extremista”, são as suas ações refletindo a sua agressividade e que ele transforma em uma intencionalidade assistencial e heróica.
Com o surgimento do Coringa, seu inimigo mortal, o homem- morcego teme ter que revelar sua verdadeira identidade e, se não o fizer, o palhaço do crime poderá matar inocentes, todos os dias, conforme sua promessa. Mas, ele percebe que a fantasia que usa é muito importante porque foi a saída que ele encontrou para salvar a cidade sem se expor, sem ser identificado, protegendo-se dos inimigos.
A fantasia de Batman também é seu remédio, sua terapia, na medida em que ele pratica suas ações em prol do bem-estar da cidade, por meio do disfarce. Quando ele veste o uniforme negro, Bruce se revela intensamente perturbado. Entretanto, isso se explica porque seus impulsos agressivos ainda não estão totalmente controlados e são resquícios de sua obsessão em matar o ladrão que assassinou os seus pais. Ele é um indivíduo único e intenso.
Para o autor Julio Cabrera, ao contrário de outros personagens que sofrem metamorfoses no cinema, se transformando em qualquer coisa, Batman não sofre nenhuma alteração em seu corpo (como sofre, por exemplo, Drácula), ele simplesmente veste uma roupa, utiliza um equipamento e adota uma personalidade nova, desenvolvendo atos insólitos do ponto de vista da vida habitual do milionário Bruce Wayne. A transformação é puramente externa, não afeta a corporalidade de Bruce, mas somente sua atuação e seu comportamento seriam plausíveis, dizer que Batman e Bruce Wayne são, sem dúvida nenhuma, a mesma pessoa. (Cabrera, 2000)
O autor acrescenta também que, quando ele está vestido e age como Batman, Bruce Wayne se torna irreconhecível para os outros. Ninguém diria que ele é Bruce Wayne, porque ele parou de agir como Bruce, de falar e de se comportar como Bruce. Parece que o comportamento funciona melhor como identificador do que a mera vestimenta. O critério que está considerando aqui é o reconhecimento por parte dos outros, isto é, um critério social, por meio do comportamento e não da roupa. E o verdadeiro critério é algo que não pode ser socialmente reconhecido, ou seja, a autoconsciência íntima e pessoal, precisamente o que permite que Bruce Wayne continue preservando sua identidade dupla, tão importante para o combate ao crime na cidade.
O filme Batman Begins (2005) apresentou uma interessante construção do super-herói dos HQs: Batman. O personagem do diretor Christopher Nolan estava centrado num Batman por trás da máscara negra, focava no homem e não no super-herói.
E agora na continuação do filme, seu objetivo é de salvar a cidade, combatendo o crime, mas escondendo a sua real identidade, na figura de playboy e milionário. Só que ele sofre uma crise de consciência porque está em dúvida se está ou não fazendo bem para Gotham City e se é a hora de deixar a capa e a máscara.
Com a chegada do Coringa, alguém sem regra e sem conduta, ele desiste da idéia e continua com sua cruzada contra o crime. A sua atitude é assertiva e ele resolve enfrentar os inimigos (a sua Medusa) que destrõem a cidade, ao invés de fugir da situação.
Ele aceita o seu destino, paradoxalmente, conduzindo a modificação desse mesmo destino. Ao parar de fugir (realizando as longas viagens), ele perde sua neurose (conflito interno) e conquista o equilíbrio. O resultado é uma atitude diferente (ausência do medo da vida) que se expressa num caráter mais solidificado e se associa a um destino próprio. Terá coragem de viver e morrer, com consciência de que a sua missão é servir em Gotham City.
No caso de Perseu, o mito também apresenta características de duplicidade, na medida em que precisa de disfarces e de auxílio dos deuses para combater a górgona, sem ser reconhecido. É a forma que ele encontrou para realizar com sucesso a sua tarefa de decapitar a Medusa. Os instrumentos que utiliza no combate ao monstro são importantes porque ocultam a sua verdadeira identidade, a fim de realizar o bem contra o mal. Ele só não aparenta ter dúvidas em relação à sua missão de decapitar a górgona. Lembrando que os personagens mitológicos não conhecem o sentimento de culpa, isto não existe para eles.
O herói começa tentando salvar a sua triste mãe, mas acaba recebendo muito mais. Ele corresponde ao amor materno, arriscando sua própria vida, auxiliado pelos deuses para poder enfrentar a Medusa. E utiliza com sensatez e modéstia a sua força. Depois de executar a Medusa ele oferece a cabeça desta como presente a Atena, que tanto o auxiliou. A deusa deu a Asclépio dois frascos do sangue de Medusa. Venerado como o fundador da medicina, Asclépio era habilidoso na cirurgia e no uso de remédios. Ele usou o sangue do lado esquerdo de Medusa para levantar os mortos; o sangue do lado direito que provocava a morte instantânea. O fato de o sangue de Medusa poder tanto curar como matar demonstra que a figura da Medusa não era estritamente negativa e destruidora, tendo em si as forças curativas positivas, o que lhe dava equilíbrio, segundo a autora Marta Robles (2006).
A autora acrescenta ainda que, desde a sua origem a Medusa simboliza o inimigo que deve ser vencido. Reinterpretadas ao longo do tempo, as górgonas evocam as deformações da consciência consideradas, em Psicanálise, pulsões pervertidas.
As três górgonas moravam no Jardim das Espérides, que simboliza o fim do mundo (o inconsciente). Seu santuário formava fronteira com o reino da Noite. Essas irmãs, filhas imortais de Fórcis e de sua irmã e esposa Ceto, chamavam-se Medusa (a ladina), que era mortal, Estero (forte) e Euríale (a que corre o mundo). Medusa provocou a ira de Atena ao fazer amor com Poseidon num dos santuários desta.
Atena tornou-a mortal e a transformou e às suas irmãs, em feias megeras, as repugnantes. Medusa era a mais feia e petrificadora das três. O terrível olhar das górgonas era tão intenso que transformava os mortais em pedra e por toda a volta da caverna em que viviam podiam-se ver figuras de homens e animais que tinham olhado casualmente para elas e foram petrificados por essa visão, segundo a autora.
Para o autor Adam McLean, podemos vê-las como figuras guardiãs, protetoras das fronteiras dos antigos mistérios primais, guardiãs do limiar. O autor cita Robert Graves, entre outros e sugere que as sacerdotisas usavam na celebração dos Mistérios, máscaras de górgonas para afastarem os não-iniciados. Cabeças de górgonas, na forma de grotescos entalhes, eram colocadas com freqüência nos muros das cidades gregas para aterrorizarem os inimigos.
Medusa é um dos monstros da mitologia clássica mais figurados na história da arte, como uma horrenda figura. E na arte moderna ela só conserva a cabeleira de serpentes, numa demonstração de que o uso da mitologia na arte não tem um fim exclusivamente ilustrativo, mas sim é livre e, com freqüência até contradiz as fontes antigas (Magalhães, 2007).
A meu ver, a Medusa simboliza as pulsões, o mundo arcaico (o inconsciente) e a inveja, a agressividade, são serpentes na nossa cabeça. A górgona pode simbolizar também o outro no homem (o seu duplo), o seu caos, a sua deformidade, o seu “Coringa”.
O olhar da Medusa que petrifica, que gera o medo traduz a difícil elaboração de conflitos internos. Julgo que ela possue a bipolaridadea do bem e o mal, são dois lados de uma mesma moeda, simbolizando a duplicidade deste mito e do comportamento humano.
A monstruosidade da Medusa e o sadismo do Coringa resultam numa destrutividade que gera a violência. A mesma monstruosidade facial do Coringa se assemelha ao olhar petrificador da górgona.
Narra Hesíodo em sua Teogonia que, quando Perseu cortou a cabeça da Medusa, brotando o imenso Crisaor e Pégaso, o animal abandonou a terra em pleno vôo e foi para junto de Zeus, auxiliando-o a carregar o raio e o trovão.
O cavalo alado Pégaso e o guerreiro Crisaor, com uma espada de ouro na mão, surgem completamente desenvolvidos. Filhos gerados de Poseidon e Medusa, no templo de Atena.
Crisaor pode significar as pulsões aprisionadas (monstros dentro de nós). Enquanto que, Pégaso, o cavalo alado simboliza a imaginação criativa ou a espiritualidade do ser humano e possibilidades de transformação.
Ambas as narrativas contam a morte de entes queridos que geram a culpa e a agressividade. Mas, nossos heróis sabem sublimar fazendo o bem.
Se considerarmos a possibilidade da Medusa simbolizar o outro no homem, Perseu conseguiu harmonizar o seu interior ao decapitá-la, isto é, trouxe para seu consciente suas energias destrutivas e obteve a fortificação de seu ego.
E quando ele se apaixona é destemido, considerando que Andrômeda (como Rachel) está prometida para outro homem. Ele protege a amada contra os inimigos e também luta pelo seu amor. O herói pega a cabeça da Medusa e salva Andrômeda do dragão, restituindo-a aos seus pais. O monstro com cabeça de javali simboliza as forças negativas, tanto quando a Medusa.
O nome de Perseu significa “destruidor” e descreve seu papel de matador de Medusa, mas Acrísio só vê essa destruição em relação a si mesmo. Esta narrativa de luta e sacrifício e inicia pelo medo. Mas o herói é hábil e corajoso ao eliminar a górgona. Ele perdoa Acrísio, por não ser vingativo e rancoroso. Sua história é de amor e de coragem, que vence o medo e o ódio e reflete o modo como o divino está presente em toda a sua criação. (Greene, 2001)
Simbolicamente, Perseu ao entrar em contato com seu lado obscuro (Medusa/inconsciente), descobre o tesouro que guardava dentro de si, a sua força interior. Este mito retrata a batalha íntima que o homem trava para enfrentar seus medos e reencontrar a si próprio. Ele é um herói extraordinário e sobrevivente, pois foi criado em cativeiro, apesar de ser protegido de Zeus. Simboliza o novo e que traz a transformação, pois conseguiu harmonizar dentro de si a sua consciência ao enfrentar a Medusa, mesmo usando seus disfarces.
Batman é o mais humano dos super-heróis, não tem nenhum super-poder, tanto quanto Perseu, que é um simples mortal (mesmo sendo filho de Zeus). E eles também só castigam aqueles que merecem punição. Acrescento a isso, o que os torna parecidos são os impulsos humanos que os levam, por forças dos instintos mais sombrios, a tentarem transformar estes impulsos ou instintos agressivos em algo positivo, ou seja, fazer o bem.
O personagem do HQ foi criado em 1939 e trata-se inicialmente de um herói de Histórias em quadrinhos. Mas o Batman de Nolan se diferencia dos outros das filmagens anteriores, pois trata-se de um herói muito mais próximo do ser humano, com sua face dualista e mais atual do que nunca.
E são as características psicológicas destes heróis, a autoconsciência no processo mental que possibilita ambos personagens dizerem: “eu sou eu, independente da roupa ou dos disfarces que utilizo para atingir meus objetivos”.
Eles protegem as pessoas e com isso conduz à resolução do seu conflito individual porque percebem que sua missão é a de servir simplesmente. E como diz Batman, o cavaleiro que submerge de suas próprias trevas: “Ou você morre herói ou vive o bastante para se tornar o vilão. Posso ser os dois...Sou o que Gotham quer que eu seja.”
Bibliografia
1) CABRERA, Julio. O cinema pensa: uma introdução à filosofia através dos filmes. Rio de Janeiro: Rocco, 2006.
2) CIRLOT, Jua-Eduardo. Dicionário de Símbolos. São Paulo: Centauro, 2005.
3) GREENE, Liz. Uma viagem através dos mitos: o significado dos mitos como um guia para a vida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
4) FREUD, S. - Obras Completas de Sigmund Freud. São Paulo: Imago, 1989.
5) MAGALHÃES, Roberto Carvalho de. O grande livro da mitologia: a mitologia clássica nas artes visuais. Rio de Janeiro: Ediouro, 2007.
6) MCLEAN, ADAM. A deusa tríplice – em busca do feminino arquetípico. São Paulo: Cultrix, 1989.
7) ROBLES, Martha. Mulheres, Mitos e Deusas: o feminino através dos tempos. São Paulo: Aleph, 2006.
8) Revista SET – julho de 2008.
9) Revista VIVER MENTE & CÉREBRO – outubro de 2005
10) STEPHANIDES, Menelaos. Teseu, Perseu e outros mitos. São Paulo: Odysseus, 2000