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REVISIONISMO BASTARDO EM TECNICOLOR

19.10.2009
Por Luiz Nazario
REVISIONISMO BASTARDO EM TECNICOLOR

Luiz Nazario é Crítico e Professor de Cinema da UFMG, autor dos livros Todos os corpos de Pasolini, As sombras móveis e Da natureza dos monstros.





Bastardos inglórios, de Quentin Tarantino, é um filme detestável. Seu humor é sádico e grotesco; sua violência, vulgar e grosseira, de um típico pastelão de sangue; os diálogos são perfeitos para imbecis que se acham inteligentes “sacando” a “inteligência dos diálogos”. Um verdadeiro lixo. As referências ao cinema nazista podem parecer profundas e inusitadas para quem não conhece o cinema nazista, mas como fiz doutorado sobre esse cinema, percebo os buracos.



Georg Wilhelm Pabst, por exemplo, é citado com admiração, pois Tarantino só deve conhecer a fase alemã muda e a fase francesa dele, não a fase nazista (Komödianten, Paracelsus, Der Fall Molander). Assim, ele critica a Riefenstahl, mas preserva o Pabst, anunciado “sem necessidade” (como nota o jovem soldado Zoller) no cartaz de Pitz Palü, que não foi produzido na Alemanha nazista, mas na República de Weimar.



Claro, uma “Semana Alemã” em uma sala de cinema de Paris sob a Ocupação poderia estar exibindo uma reprise. Mas por que não algum filme nazista de Veit Harlan ou Hans Steinhoff? Ah, sim, a dona do cinema é uma jovem judia camponesa escapada de um massacre graças ao estranho “au revoir” do supostamente impiedoso “caçador de judeus”; ela chegou caminhando, ou sabe Deus como, do interior da França até a Paris ocupada, onde herdou legalmente, sabe Deus como, um cinema em plena Ocupação; e, claro, cinéfila inveterada, ela mantém um arquivo de filmes, de onde sacou esse velho filme, embora deteste Riefenstahl, exibindo Pitz Palü apenas como uma homenagem a Pabst...



Ora, precisamente nessa altura Pabst estava trabalhando na Alemanha nazista (ele devolveu ao governo francês, dois meses antes da declaração de guerra, uma medalha da Legião de Honra que ganhara, e com a eclosão da guerra, em 1939, ele retornou à Áustria, de onde seguiu para a Alemanha para realizar filmes de propaganda nazista a convite de Goebbels, ajudando, inclusive, a Riefenstahl – que a jovem judia camponesa proprietária de cinema e cinéfila inveterada detesta – na direção de algumas cenas em que ela atuava em seu Tiefland...



Em certa cena, uma canção cantada por Zarah Leander é ouvida ao fundo, mas o nome da maior diva nazista não é mencionado, apenas o da secundária Brigitte Fossey e da veterana Pola Negri (personagens no jogo de adivinha) e o de Lilian Harvey (inglesa que após trabalhar em alguns filmes nazistas imigrou para os EUA, onde não fez sucesso; o Goebbels de Tarantino fica furioso no cinema quando lembram o nome dela).



Já a estrela nazista Bridget von Hammersmark (Diane Kruger), que ajuda os “Bastardos”, parece vagamente inspirada em Olga Tchekova (que espionava para o NKVD, diretamente subordinada a Beria, segundo a recente biografia escrita por Antony Beevor, que também revela o trabalho de espionagem para os soviéticos de Zarah Leander, subordinada a Zoia Ribkina) e em Renate Müller (que tinha um amante judeu na Inglaterra, para onde escapava às escondidas, e que acabou sendo “suicidada” pela Gestapo).



De qualquer forma, as referências ao cinema nazista são sempre vagas e imprecisas – como a súbita irrupção de um nada parecido Emil Jannings na seqüência da estréia do filme-dentro-do-filme “O Orgulho da Nação”... Na crônica “Bastardos gloriosos” (Folha de S. Paulo, 13/10/2009), João Pereira Coutinho perguntou: “Vocês, caros leitores, estão habituados a filmes sobre o Holocausto onde os judeus são meros carneiros nas matanças nazistas? Filmes de um sentimentalismo vulgar (...)? [Em "Bastardos Inglórios"] os judeus, agora, não são apenas vítimas; também são vingadores (...)”. Ou seja, os filmes que tentaram apreender a verdade sobre o Holocausto, como Ostatni Etap, Ulica Graniczna, Daleká Cesta, Professor Mamlock, A Orquestra de Auschwitz, Shoah, As 200 Crianças do Dr. Korczak, A Lista de Schindler, O Pianista, etc são “de um sentimentalismo vulgar” porque neles os judeus são vítimas... Quando não o foram?



O cronista e seus leitores preferem a “inversão de estereótipos” do “Cirque de Soleil” sangrento de Tarantino. Não percebem que o cineasta, sem qualquer cultura (ou, antes, formado pela subcultura de filmes de Kung Fu e Blaxploitation, com algumas doses da Nazi-exploitation que inclui títulos como Ilsa, She Wolf of the SS; La bestia in calore; L’ultima orgia del III Reich; Quel maledetto treno blindato - que nos EUA recebeu o título agora reutilizado por Tarantino -, etc.) cai nos estereótipos mais antigos sobre os judeus: a gangue dos “Bastardos” – assim como a esquizofrênica Shosanna Dreyfus (nome escolhido a dedo) – são movidos pelo ódio vingativo como o Shylock de O Mercador de Veneza, de Shakespeare; o Judeu Errante, de Eugene Sue; ou o Samuel Mayer do romance mediúnico A Vingança do Judeu, do “espírito” J. W. Rochester, revelando-se tão carniceiros quanto os “judeus” das caricaturas de Der Stürmer...



No revisionismo dos trapalhões escalpeladores de Tarantino, os principais dirigentes nazistas, incluindo Joseph Goebbels (Sylvester Groth) e Adolf Hitler (Martin Wuttke), são mortos pelos judeus Bastardos. Todos são representados por atores tão pouco parecidos quanto o grotesco Winston Churchill caracterizado por Rod Taylor, escondido como uma aranha num canto de seu sombrio gabinete. E os judeus ainda são aí homens-bombas terroristas e massacradores de nazistas “indefesos” (eles incendeiam um cinema lotado e queimam vivos uns 400 nazistas desarmados na platéia).



É incrível como a sensibilidade do público deteriorou-se, a ponto de tantos acharem inteligente, divertido e até excitante ver judeus arrancando a faca o couro cabeludo dos corpos nazistas – o escalpe “apache” que, em 1975, Pasolini associou para sempre aos torturadores fascistas de Salò... Há uma tendência moderna que consiste em saciar o sadismo das massas fascistóides contra os “vilões”. Tarantino radicaliza essa tendência, fazendo com que seus vilões nazistas sofram “como judeus” nas mãos de “judeus nazistas” que, supostamente bons, podem praticar todas as atrocidades contra eles: escalpo, cremação em massa, estouro de miolos, etc.



É notável, nesse sentido, que o personagem de Brad Pitt, o Kapo americano não-judeu que organiza os “Bastardos”, nunca suje suas mãos, a não ser para marcar os nazistas. Ele encarrega os judeus de todo o trabalho sujo, eles é que têm de esmigalhar crânios e arrancar escalpos, supostamente se vingando, como um bando de cães, lobos ou ursos amestrados a serviço de seu “dono”. O Kapo Aldo Raine reserva-se apenas o privilégio de enfiar o dedo na ferida da estrela que trai os nazistas e de rabiscar a facão suásticas nas testas dos nazistas que deixa escapulir. E aí está mais uma ambigüidade do filme, pois ao mesmo tempo em que o personagem afirma que essa escarificação tornará os nazistas “visíveis” mesmo ao se livrarem de seus uniformes, o fato é que a escarificação de suásticas nas testas das vítimas é uma conhecida prática de gangues neonazistas.



Em resumo, no filme de “clichês trocados” de Tarantino, os verdadeiros nazistas são os judeus e a alcunha que o Coronel Hans Landa (Christoph Waltz) recebe, de “caçador de judeus”, é uma “indireta” dirigida ao “caçador de nazistas” Simon Wiesentahl. Com exceção do assassinato da família Dreyfus no começo do filme (seqüência copiada de A lista de Schindler, de Steven Spielberg, e de A lenda do cavaleiro sem cabeça, de Tim Burton), são sempre os judeus que trucidam, bombardeiam, metralham, cremam vivos, “tatuam” os inimigos na carne e queimam bens culturais – o auto-de-fé nazista de livros é aí transformado num judaico auto-de-fé de filmes.



Em “Tarantino Touch” (Folha de S. Paulo, 18/10/2009), Coli chegou a comparar Bastardos Inglórios à magistral e sofisticada comédia antinazista Ser ou não ser, de Ernst Lubitch, e o “discurso vingador” de Shosanna ao emocionante discurso final de O Grande Ditador, de Charles Chaplin, com desvantagem para esse último: o discurso de Tarantino “nada tem do tom didático [de Chaplin] ... é uma esplêndida apoteose feita com o prazer de filmar para o prazer de assistir”. O grosseiro pastiche de Tarantino evocaria o Lubitch Touch e superaria a obra-prima de Chaplin!!! Quanta baboseira...



Sintomático que o ato final de barbárie da “heroína” vingadora tenha sido interpretado por Coli e outros críticos como uma prova do grande “amor” que o “genial Tarantino” dedicaria ao cinema. Estranho amor, que se demonstra queimando películas e atribuindo esse terrorismo a uma judia e a um negro... E depois Tarantino tem o desplante de ir a Israel mostrar seu filme, talvez esperando que o “exército nazista” do Estado Judeu (na visão dos novos antissemitas) se “reconheça” nos seus personagens aplaudindo Bastardos Inglórios, como as platéias alheias à História que gargalham nos cinemas multiplex que fedem a mofo e pipoca amanteigada...



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