Ao receber Sede de paixões (Törst, título original) neste mês de agosto, a Paradise Vídeo - que é principalmente um paraíso de clássicos e cults - está agregando o trigésimo sétimo DVD à sua Coleção Ingmar Bergman - já na reta final para constituir um Bergmanorama completo. É a sétima realização (1949) do cineasta que estarreceu as platéias com sua aptidão para mergulhar nas regiões abissais do drama humano, como se estivesse "espionando" a alma.
Quando programei o primeiro Cinema de Arte brasileiro (o Cine Alvorada, em Copacabana) - em parceria com o crítico Alberto Shatovsky - tive o prazer de incluir Sede na primeira temporada, 1960, um ano antes do lançamento em Paris. Anos depois seria exibido em mostra da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio e, em seguida, sumiu de circulação - até agora - quando amplia o repertório em DVD da Versátil, que lançou este ano os seis filmes anteriores (e ainda menos conhecidos) de Bergman.
Como outros filmes de Bergman, o sétimo tem como tema central a quase "inviabilidade" do casal. Na cabine de um trem de volta à Suécia, Bertil (Birger Malmsten) mata a mulher, Rut (Eva Henning)...em sonho. Acorda com o sentimento inverso e diz:
BERTIL - "Eu não quero viver sozinho e independente. Isso é pior."
RUT - "Pior do que o que?"
BERTIL - "Do que o inferno em que estamos vivendo. Afinal de contas nós temos um ao outro".
Esse beco-sem-saída sobre trilhos fala da impossibilidade de harmonia na relação de casal: os defeitos dos homens e das mulheres se somam e se ampliam. Provavelmente será sempre impróprio falar nisso como "um inferno", porque a solidão é descrita pelos protagonistas como algo mais infernal. Curiosamente, em Sede, Ingmar Bergman alcançou um resultado muito coerente com seu universo de autor, embora não tenha participado da elaboração do roteiro (o aconteceu poucas vezes em sua carreira), baseado em quatro histórias curtas do livro "Törst", da atriz Birgit Tengroth, que interpreta o papel de Viola. Na adaptação de Herbert Grevenius, os quatro relatos se tornam - mediante paralelismos e flash-backs - afluentes da mesma torrente dramática.
A construção do roteiro é inteligente e original, baseada em coincidências providenciais, em um paralelismo insólito entre presente e passado, e em uma interpenetração constante dos problemas íntimos dos personagens e dos ambientes que atravessam. Ao lado da linha central da trama (o casal em conflito, no quarto de hotel e no trem em marcha), desenvolvem-se os reflexos do passado de Rut. Esses reflexos, ampliados pelas discussões, ganham vida própria, e fazem com que se cruzem no tempo presente da narrativa outros personagens evocados pelo casal.
.
A multiplicidade do material literário original justifica o caráter compósito dos estilos utilizados por Bergman. Um expressionismo sóbrio marca as visões enquadradas pela janela do trem (ruínas noturnas da Alemanha do pós-guerra) e as aparições de turbas famintas às margens da ferrovia. Uma das tiradas muito suecas do roteiro surge na voz de Bertil, quando se refere aos alemães flagelados pela guerra: "Eles vivem tão ocupados tentando manter o corpo e a alma que não têm tempo para pensar em qualquer vida interior. Não posso negar que os invejo".
O livro Sede alcançou enorme sucesso quando lançado na Suécia. Pelo talento da ficcionista e a ousadia de sua abordagem das relações amorosas. Bergman fez questão de contar com a autora no papel de Viola. "Senti intensamenrte que precisava de sua colaboração em vários níveis" - disse. "Com seu tato, com sua maneira discreta, ela me ajudou a dar forma ao episódio lésbico. Isto, naquela época, foi matéria explosiva e, naturalmente, os censores cortaram um pedaço substancial da cena dramática entre Birgit e Mimi Nelson - um corte que deixa o final da cena incompreensível".
"Birgit Tengroth também deu uma contribuição diretorial que não esquecerei; ensinou-me algo novo e decisivo. As duas mulheres estão juntas, sentadas, em um crepúsculo de verão, partilhando uma garrafa de vinho. Birgit, bastante ébria, pega um cigarro de Mimi, que o acende para ela. Então Mimi, lentamente, aproxima de seu rosto o fósforo aceso e o mantém por um momento perto de seu olho direito, até que se apague. Isso foi uma idéia de Birgit. Lembro-me claramente disso, porque eu nunca havia feito nada parecido. Construir a trama com pequenos detalhes sugestivos e quase imperceptíveis, tornou-se um componente especial de minha maneira de fazer cinema".
Para desenvolver nas cenas de trem a técnica de planos longos que começara a experimentar em Prisão, seu filme anterior, Bergman precisou encomendar a construção de um vagão cenográfico "monstro", que podia ser desmembrado em diferentes seções, para que a câmera se movimentasse pelas cabines e corredores sem atrair atenção para a proeza técnica. Sede é um marcante momento de decolagem visual na obra de Bergman. Nesse filme ele começa a ganhar distância de certo teatralismo evidente em Crise (1945), sua primeira direção, e nos subsequentes Chove sobre nosso amor, Barco para as Índias, Música na escuridão, Porto (este mais "arejado" pela influência do neo-realismo italiano) e "Prisão" (enclausurado por motivação dramática).
Apesar da importância de Prisão, que começou a desenhar o universo autoral de Bergman, Sede dá um grande passo à frente como conquista de linguagem e de atrativo espetacular
.
Ao contrário de tantos gênios "al primo canto", Bergman tinha uma preocupação com o público que externou claramente em artigo publicado em 1958.
"Para quem nós trabalhamos? Para o público. (...) Nosso caso é o mesmo do artista que, por livre vontade, executa o salto mortal do ponto mais alto do circo para a satisfação dos espectadores. Nós também temos que arriscar a nossa reputação e a nossa vida para atender às necessidades do cinema. Devemos executar um salto perfeito. Tão cuidadosamente controlado que os espectadores se esqueçam de si próprios, esquecendo-se da vida, dos aborrecimentos, das contas a pagar. E é só quando conseguimos isso é que podemos nos considerar totalmente justificados".
(*) Homenagem do crítico aos 18 anos da Paradise Vídeo, de Luis Carlos Teixeira Mendes - um baluarte de resistência ao processo de desertificação cultural de Copacabana. Rua Figueiredo de Magalhães, 581-C - Copacabana. Metrô Siqueira Campos.