Texto escrito para debate sobre a obra do cineasta malaio, naturalizado chinês, Tsai Ming-liang, realizado no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) do Rio de Janeiro no dia 4 de dezembro de 2010.
O cineasta, montador, roteirista e crítico Inácio Araújo, um dos grandes nomes da mídia impressa diária no nosso País, costuma dizer que a arte do cinema é substituir o hábito do olhar pela real observação das aparências. O cineasta malaio, naturalizado chinês e que vive em Taiwan, Tsai Ming-liang, parece colocar em prática essa frase lapidar de Inácio Araújo, extraída da sua diminuta coluna de televisão no jornal Folha de São Paulo, com toda certeza um espaço de resistência e sempre de muita clarividência no deserto analítico que parece tomar conta da mídia brasileira, de modo geral, sobretudo os grandes jornais, cada vez mais obcecados por grifes, apurações excessivamente editorializadas e textos que mais parecem pílulas televisivas. Uma lástima, diga-se de passagem.
Mas, digressões à parte, Tsai Ming-liang, com sua rigorosa arquitetura de quadro, quase sempre parado, parece estilhaçar o mundo das aparências que nos envolve com diversas camadas de imagens dentro de um único plano: camadas de vidros, vitrines, aquários, espelhos, sombras e reflexos. Como uma ciranda fragmentada de aparências instigando o nosso olhar, que, pouco a pouco, sai da resignação e do marasmo do hábito até encontrar no ponto de fuga dos longos planos gerais do cineasta malaio a essência de um “real” que irrompe sempre de maneira muito sugestiva.
Nas imensas imagens de Tsai Ming-liang, há frequentemente uma água que escorre em forma de chuva, torneiras que explodem, vazamentos, rios, fontes, banheiras, amplas poças de água parada em esqueletos de prédios abandonados ou edifícios que mais parecem cortiços. A obsessão por essa água que escorre, à primeira vista, talvez possa sugerir um parentesco com a obra de Andrei Tarkovski, outro obcecado pela recriação do tempo na arte cinematográfica. Com seus longos planos cobertos de água, córregos e poças, o cineasta russo tentava esculpir a passagem do tempo, materializá-lo dentro da própria imagem, enquanto Tsai Ming-liang parece querer vislumbrar as pulsões líquidas e as secreções vitais que escorrem pelos corpos dos seus desalentados e solitários personagens, deserdados sociais deambulando sem horizontes pelas ruas, viadutos e corredores dos conjuntos habitacionais de Taiwan. As imagens aquosas do cineasta malaio parecem escorrer como seivas coaguladas de personagens ainda atormentados por desastres ambientais: secas, incêndios florestais, chuvas torrenciais e epidemias. Lágrimas, suor, urina, esperma, saliva; há sempre uma humanidade que desliza claudicante pelos corpos dos personagens de Tsai Ming-liang.
Uma das características mais marcantes do cinema do diretor malaio é o rigor nos enquadramentos, como já foi dito. Suas imagens são quase sempre planos gerais, arquitetônicos, captados no tripé. A câmera se movimenta por vezes em pan, ou seja, na horizontal; há momentos raros e esplendorosos registrados com steady-cam, como nas sequências finais de Vive L’Amour (1994), antes do longo choro final da personagem que é uma corretora de imóveis; mas a grande maioria absoluta dos quadros de Tsai são parados, imensos, planos gerais, com várias camadas e molduras dentro da própria imagem, além de uma complexa movimentação dentro do quadro, uma “mise-en-cadre”, como diria Eisenstein, muito elaborada, embora aparentemente simples.
Há um constante desalento, uma incômoda impotência, impossibilidade, desemprego, ausência de sentido e saudade, muita saudade, nos filmes de Tsai Ming-liang. Saudade de um ente querido que morreu. Saudade de uma paixão súbita por alguém que partiu. Saudade de uma vida menos árdua na luta pela sobrevivência. Saudade de uma humanidade que se perdeu no mundo individualista em que vivemos, na alienação de uma sociedade do espetáculo que virtualiza tudo o que encontra pela frente. E a nossa humanidade mais animalesca, mais essencial; nossas seivas vitais estão cada vez mais coaguladas em meio a esse atordoante caleidoscópio de aparências e de imagens vazias de qualquer sentido, que apenas fazem cócegas nos nossos olhos, como disse Federico Fellini ao se referir às imagens da televisão.
Mas Tsai Ming-liang é um romântico por excelência, ele acredita no amor, essa mais que banalizada utopia da condição humana, sobretudo na grande mídia, em que qualquer impulso apaixonado surge de maneira intragável e melodramática, edulcorado com o que há de mais chavão, apelativo e abominável, sobretudo nas produções de Hollywood e nos programas televisivos. Em seus filmes, com o intuito de quebrar o naturalismo tristonho e desalentador dos seus personagens em suas árduas rotinas de sobrevivência, o cineasta malaio usa um recurso feérico para romper o realismo: números musicais. É interessante que ele cria um ilusionismo naturalista ao acompanhar o cotidiano de seus personagens e, subitamente, descortina um estranhamento estonteante, de sonho, evasão para aquele sufocante dia-a-dia dos personagens, e faz desfilar pela tela belos números musicais, que trazem à tona as fantasias e as inquietações românticas de tantos personagens dilacerados pela falta de perspectiva de uma vida com horizontes mais poéticos.
O romantismo de Tsai Ming-liang o aproxima do universo de François Truffaut, a grande referência do cineasta malaio, que homenageou o diretor francês em filmes como Que Horas São Aí? (2001) e Visage (2009) com trechos da grande obra-prima de Truffaut, Os Incompreendidos, e a presença de colaboradores artísticos do francês, como Jean-Pierre Leaud, Jeanne Moreau e Fanny Ardant. Mas afinal qual é o parentesco artístico de Tsai Ming-liang com François Truffaut? O cineasta francês já declarou na imprensa que tinha repulsa ao corpo masculino e o diretor malaio não se cansa de filmar em detalhes o corpo do seu ator-fetiche Lee Kang-sheng, que vem singrando os filmes de Tsai Ming-liang em vários casos como o mesmo personagem, uma parceria completamente similar a que Truffaut manteve durante muitos anos com o seu alter-ego Jean-Pierre Leaud. Um exemplo: o personagem de Lee Kang-sheng vende relógios em Que Horas São Aí?” (2001), faz teste para fazer filmes eróticos no curta The Skywalk is gone (2002) e vira ator pornô em O Sabor da Melancia (2005). Tsai Ming-liang é um romântico inveterado como Truffaut, só que a sua visão do amor tem a abertura para a diversidade sexual do mundo contemporâneo.
Há quem veja influência de Robert Bresson na obra de Tsai Ming-liang. Talvez a crueza do malaio possa de algum modo dialogar com a essencialidade epifânica do grande mestre francês, principalmente no apreço pelo som direto, uma das obsessões de Bresson em seus últimos trabalhos, em que foi abandonando a música para criar uma complexa partitura de ruídos. Já Tsai, como já foi dito, encontrou nos números musicais a possibilidade de romper o desalento do cotidiano com uma espécie de estranhamento ilusionista, por mais paradoxal que possa parecer, para materializar no quadro os devaneios amorosos de seus personagens. Apesar de vislumbrar alguma possibilidade remota de parentesco entre os universos de Bresson e o de Tsai Ming-liang, como apontam alguns críticos, o mestre francês é metonímico por excelência, ou seja, exacerba essa característica fragmentária da linguagem do cinema, apostando em planos-detalhe de maneira radical e única, trabalhando com ações nas bordas ou fora do quadro, que em muitos momentos são apenas ouvidas pelos espectadores. Já o diretor malaio é um artista de planos gerais, imensos, como já enfatizado, e, embora os dois mundos sejam decupados com extremo rigor no que diz respeito à arquitetura de quadro, são universos que, para mim, não possuem grandes semelhanças.
Uma outra influência possível nos filmes de Tsai Ming-ling, principalmente em O Sabor da Melancia, é o surrealismo de Luis Buñuel. As formigas que andam pelos corpos dos personagens dessa produção de 2005, que enfrentam uma tremenda seca com a chegada do verão em Taiwan, podem ter raízes em Um Cão Andaluz, do mestre espanhol em parceria com Salvador Dalí, o marco inaugural do surrealismo na arte cinematográfica, em que os mesmos insetos, simbolizando talvez a morte, saem de buracos de mãos crispadas. Além disso, há na obra de Tsai Ming-liang um onipresente elemento simbólico, a água, ou a falta dela, o que gera uma profusão de metáforas e metonímias cinematográficas, outra característica a afastar o mundo do cineasta malaio do antes mencionado Robert Bresson, que não trabalhava com símbolos em seus filmes, sempre em busca do “real” na ficção propriamente dita, ou melhor, do “sobrenatural”, que, para o mestre francês, era “o real com precisão”, mas sempre fruto de uma materialidade cinematográfica muito intensa, sem símbolos ou artifícios, uma criação minimalista por subtração na concretude do que era colocado dentro do quadro, e daí irrompia talvez a epifania que Bresson tanto buscava. Já Tsai Ming-liang não tem medo de símbolos, de um cinema de metáforas e metonímias, o que talvez o aproxime também do cinema de poesia de Pasolini.
Água. Água e secreções vitais. São uma chave para se entrar no mundo do cineasta malaio. Em seu primeiro longa, Rebeldes do Deus Neon (1992), o vazamento de água, ralos entupidos, pulsões e desejos represados em várias vidas estagnadas. Em Eu Não Quero Dormir Sozinho (2006), bicas que gotejam, mangueiras que escorrem, água parada na garagem de prédios inacabados. As próprias locações parecem escorrer como corpos coagulados em suas secreções vitais. Como um dos personagens de Lee Kang-sheng em Eu Não Quero Dormir Sozinho, o que foi espancado e que não consegue urinar. Como todos os outros personagens do mesmo filme, intensos, mas travados em seus impulsos sexuais apaixonados. Ainda no mesmo filme, o amor e o desejo cada vez mais coagulados após uma estranha fumaça invadir a cidade, proveniente de incêndios florestais, represando ainda mais os instintos primitivos e animalescos das pessoas.
Em O Rio (1997), a metáfora do córrego pútrido. A equipe de filmagem precisando de um corpo vivo para simular a morte. Um manequim não era convincente o suficiente boiando naquele rio. É então convidado o rapaz vivido por Lee Kang-sheng para “interpretar” o cadáver. Após a queda, a contaminação, o cheiro ruim no corpo, dores por todo lado, uma torcicolo insuportável e tudo desaguando no sexo com o próprio pai numa sauna, uma das cenas mais brutais do cinema contemporâneo.
E mais chuvas, goteiras, a água que insiste em escorrer pela vida das pessoas. Será que a condição humana veio da água, dos mares, ou é um vírus do espaço que contaminou o planeta? Às vezes me pergunto vendo os filmes de Tsai Ming-liang. A melancia, metáfora e metonímia da paixão, uma fruta que é quase água em estado sólido, carne vermelha suculenta, desejo que desliza do fundo da alma e que escorre em secreções vitais pelo nosso corpo. A melancia é um elemento bastante recorrente nos filmes do diretor malaio. Surge em Vive L’Amour e vive o seu apogeu em O Sabor da Melancia, em que a seca na cidade promove um lucro absurdo com a venda do suco da fruta, que inspira cenas musicais e vira objeto erótico no set de um pornô que está sendo rodado dentro do próprio filme. Melancias flutuam por um rio no mesmo filme.
Como se come, como se bebe água e como se vai ao banheiro nos filmes de Tsai Ming-liang. Em Vive L’Amour, o personagem de Lee Kang-sheng bebe muita água antes de tentar cortar o pulso num apartamento que está para alugar e que é invadido por ele. O rapaz é vendedor de urnas funerárias, se apaixona por um camelô e não hesita em beijar uma melancia, tentando sublimar o próprio desejo. O cansaço, o suor, o desespero, as lágrimas, o impulso sexual, a água que escorre pela boca, secreções que deslizam incômodas e inevitáveis pelo corpo. Vômito. O desejo e a sede. O amor que umedece as entranhas dos corpos, das locações e das cidades. A urina contida. Mais uma vez represada. O vendedor de urnas funerárias se veste de mulher e lava as roupas do camelô, sempre com curiosidade sexual. O camelô se envolve com uma corretora de imóveis e, na cama, ela suga a mama masculina, uma das mamas do camelô, como se buscasse alento para a própria sobrevivência na estafante e inútil rotina de trabalho. Em vão.
Em O Buraco (1998), abundância de água com a chuva que não para de desabar sobre a cidade, infestada por uma epidemia. A natureza em desordem. Tudo contaminado. O “vírus de Taiwan” se espalha. Vão cortar a água encanada nas zonas de quarentena, onde se passa a ação do filme de Tsai Ming-liang. Os seres humanos acabam vivendo como baratas e ratos escondidos nos esgotos.
Em Que Horas São Aí?”, o jovem que vende relógios urina em garrafas plásticas em seu quarto durante a noite, com medo de encontrar o espírito do pai que acaba de falecer no meio do corredor. A mãe à espera da reencarnação do marido. O rapaz obcecado pelo tempo, pelo fuso horário na França, em Paris, para onde foi a moça por quem se apaixonou. Ele tenta dormir em sua cama, não consegue, liga a televisão e assiste ao DVD de Os Incompreendidos, de Truffaut, especificamente a cena em que o menino interpretado por Jean-Pierre Leaud rouba uma garrafa de leite na rua e bebe o líquido com fome e necessidade, como se mamasse no seio da própria mãe. O vômito da moça num banheiro de um hotel na França. A solidão. O abandono. A saudade. A carência do amor. Ela tenta um relacionamento com uma chinesa que encontra num bar de Paris, mas não dá certo. Acaba fugindo do hotel onde estava abrigada, sua mala é roubada numa praça, mas reaparece boiando num pequeno lago e é logo resgatada pelo espírito do pai do vendedor de relógios, que reaparece na França simbolizando a ausência e o sentimento de saudade que movem o filme.
Com seu rigor de enquadramento e dramaturgia sugestiva pontuada de símbolos humaníssimos, Tsai Ming-liang já se firmou como um dos grandes criadores da arte cinematográfica contemporânea e é justamente por isso que está sendo realizada uma retrospectiva de sua obra seminal no Brasil e também no resto do mundo. Um artista com uma autoralidade tocante, que não se curvou à lógica mercantilista da indústria e que se tornou um cineasta cultuado na França talvez por causa desse seu romantismo dilacerado, mas vivo e pulsante na atmosfera onírica dos belos números musicais que vem criando em seus trabalhos mais recentes.